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Proc. nº 176/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - No recurso interposto para este Tribunal ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da LTC foi proferida a seguinte decisão sumária:
'Q.... e outras, identificadas nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, acção comum ordinária, com as especialidades da acção popular cível, contra o Estado Português e outros, formulando os seguintes pedidos: a. Condenação do Município de Viana do Castelo a abster-se de qualquer actividade, no sentido de apresentar para aprovação ou à deliberação da Assembleia Municipal, de qualquer plano, projecto ou obra na parte correspondente às plantas 26, 27 e 28 do Volume I – Zonamento e intitulado UP 4 e UP 5 do PUC para Viana do Castelo e correspondentes aos documentos juntos sob os nº s 9, 10 e 11 da providência cautelar nº 415/98 do 2º Juízo do Tribunal de Viana do Castelo e abster-se de apresentar para aprovação ou à deliberação da mesma Assembleia sobre a matéria dos artigos de 134 a 139 e 143 a 145 do respectivo Regulamento, junto à citada providência como documento nº 4; b. Condenação do Ministério do Equipamento, Planeamento e Administração do Território, Direcção Geral dos Portos, Navegação e Transportes Marítimos e Estado Português a abster-se de aprovar qualquer projecto, de executar ou deixar executar qualquer acesso rodo-ferroviário ou qualquer outra obra ou construção, na zona das plantas do PUC, identificado na alínea anterior e nas zonas abrangidas por aquela parte do Regulamento; e, sempre, em todo o caso, na hipótese de existência de qualquer projecto ou plano aprovado, sobre o espaço e matéria compreendida nas alíneas antecedentes c. Condenação de todos os Réus a abster-se de qualquer conduta, no sentido da execução de qualquer obra na parte correspondente às plantas 26, 27 e 28 do Volume I – Zonamento e intitulado UP 4 e UP 5 do PUC para Viana do Castelo e correspondentes aos aos documentos juntos sob os nºs 9. 10 e 11 da providência cautelar nº 415/98, do 2º Juízo do Tribunal de Viana do Castelo.
Por sentença de fls. foi declarada a incompetência em razão da matéria dos tribunais cíveis por se ter entendido ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação e decisão do caso.
Desta decisão interpuseram as AA recurso para a Relação do Porto que, por acórdão de fls. confirmou a sentença impugnada.
Para tanto e tendo em conta que na acção se punham em causa actos de entes públicos no exercício típico de gestão pública, começou por aceitar que nos termos do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87, de 7 de Abril, o conhecimento das acções a que se referiam os artigos 66º nº 3 da CRP, na redacção então vigente e
41º e 42º daquela Lei era da competência dos tribunais comuns.
Com a revisão constitucional de 89 os tribunais administrativos teriam passado a ser os tribunais comuns das relações jurídicas administrativas, devendo a partir de então ler-se o artigo 45º da Lei nº 11/87 como referindo-se aos tribunais comuns de cada jurisdição (em matéria civil e criminal ou administrativa); após a Lei nº 83/95, de 11 de Agosto, com a criação da acção popular e sua divisão em administrativa e civil, englobando aquela o recurso contencioso e a acção para defesa dos interesses sub judice, seguindo estas qualquer das formas previstas no processo civil, seria forçoso concluir, na esteira do entendimento de Gomes Canotilho (in RLJ, Ano 128º, pags. 265 e segs.), que o juiz comum dos litígios juridico-ambientais com base em relações jurídicas administrativas externas é o juiz dos tribunais administrativos.
Deste acórdão recorreram as AA para o Tribunal dos Conflitos.
Nas pertinentes alegações, as recorrentes sustentaram, em síntese, que 'a substituição do previsto no artigo 66º nº 3 da CRP pelo actual artigo 52º nº 3 não revoga tácita ou expressamente, total ou parcialmente, o regime estabelecido no artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87 (conclusão 6ª), que 'é ilegal e inconstitucional concluir-se que pelo facto do conteúdo daquele preceito na nova versão ter mudado para o artigo 52º nº 3, ipso jure, resulta um regime jurídico diverso e um tribunal materialmente competente diferente para apreciar factores potenciais de degradação do ambiente, consoante os mesmo venham a ser praticados pela administração no exercício de gestão pública ou com a utilização de meios privados' (conclusão 12ª) que 'é manifestamente ilegal e inconstitucional efectuar, como se fez no douto acórdão recorrido, uma interpretação restritiva do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87' (conclusão 15ª).
O acórdão do Tribunal dos Conflitos negou provimento ao recurso, mantendo a decisão de julgar materialmente competentes para a acção os tribunais administrativos.
É deste aresto que vem interposto o presente recurso.
Disseram as recorrentes no requerimento de interposição de recurso ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC que 'consideram que a interpretação e aplicação feita do artigo 52º nº 3, alínea a) da Constituição da República Portuguesa e do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87 de 7 de Abril no acórdão de fls... (...) constitui uma flagrante violação do disposto nos artigos
13º nº 1, 66º nºs 1 e 2 e 205º nº 2 da Constituição da República Portuguesa'; a questão de constitucionalidade fora suscitada nas alegações de agravo interposto da sentença de 1ª instância para o Tribunal da relação do Porto.
Feita esta breve síntese do ocorrido nos autos, vejamos se é de conhecer do objecto do recurso.
O acórdão recorrido que manteve a decisão de julgar competentes os tribunais administrativos para conhecer da acção intentada pelas recorrentes, fundamentou-se em duas distintas ordens de razões.
Em primeiro lugar, numa interpretação 'correctiva' da norma do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87, imposta pela revisão constitucional de 89, que teria 'reconfigurado' a jurisdição administrativa.
Entendeu, com efeito, o Tribunal dos Conflitos que a revisão de 89 erigiu os tribunais administrativos em tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal.
Considerou, a propósito, que 'pode duvidar-se do bom fundamento para que questões jurídicas de incidência ambiental sejam sempre da competência dos tribunais judiciais, sabido que é que os tribunais administrativos, face aos princípios e regras que regem actualmente a sua constituição e o seu funcionamento, não podem ser tidos como incapazes ou inidóneos para a sua apreciação.'
E, nesta ordem de razões, concluiu que 'o artº 45º nº 1 da Lei nº
11/87 está, devido à revisão constitucional, derrogado no tocante a relações jurídicas administrativas, onde se levantem questões ambientais, às quais não tem aplicação.'
Com este fundamento não subsistem dúvidas de que o acórdão recorrido aplica o citado artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87 (ainda que por alegado imperativo constitucional) com uma interpretação cuja constitucionalidade as recorrentes questionaram e pretendem sujeitar à apreciação deste Tribunal.
Sucede, porém, que o Tribunal dos Conflitos assenta a sua decisão também numa fundamentação alternativa que integra a segunda ordem de razões.
Na verdade, depois de expor o primeiro fundamento – impressivamente precedido de uma frase começada com a expressão 'Ainda que assim não fosse(...)'
– o acórdão recorrido fundamenta a decisão na revogação do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87, já não por força da revisão constitucional de 89, mas nos termos do artigo 12º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto (a acção popular passou a revestir duas modalidades principais: a acção procedimental administrativa, subdividida em acção para defesa dos interesses tutelados e no recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra actos administrativos lesivos dos mesmos interesses e a acção popular civil, não fazendo sentido esta distinção se ambas corressem nos tribunais judiciais – este o discurso argumentativo do acórdão) razão que era de algum modo adiantada no acórdão da Relação então impugnado e que já na altura não merecera qualquer crítica das recorrentes nas alegações de recurso para o Tribunal dos Conflitos, como no próprio acórdão recorrido se evidencia (fls. 323).
Trata-se, claramente, de um fundamento alternativo ao primeiro e que, nesta medida, se basta por si próprio.
Ora, poderia, desde logo, dizer-se que a norma aqui aplicada, como razão de decidir, deixara de ser a do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87, para ser a do artigo 12º da Lei nº 83/95.
A verdade, porém, é que, para a norma do artigo 12º da Lei nº 83/95 ter sido aplicada, se entendeu, como se disse, que ela revogara a do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87, o que sempre supõe uma determinada interpretação desta última, razão por que, e neste sentido, se pode admitir que o acórdão recorrido ainda a aplicou.
Simplesmente, não se vislumbra aqui qualquer interpretação 'restritiva' (pois foi esta que as recorrentes questionaram) da norma do citado artigo 45º nº 1, cuja constitucionalidade as recorrentes suscitaram perante o tribunal recorrido e pretendem ver apreciada por este Tribunal.
A interpretação é, aliás, a mesma que as recorrentes sempre sustentaram, ou seja a de que a norma atribuía competência aos tribunais judiciais para conhecer de acções que visassem prevenir, reparar ou indemnizar danos ambientais, fosse qual fosse a natureza dos actos em causa ou as entidades que os tivessem praticado
Por outras palavras, as recorrentes silenciaram qualquer impugnação, em termos de constitucionalidade, da norma do artigo 12º da da Lei nº 83/95 como revogatória da norma do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87 (entendida tal como as recorrentes a interpretaram), como aliás já o tinham feito no recurso para o Tribunal dos Conflitos relativamente ao apelo que o acórdão da Relação fizera também àquele comando.
Daí que um eventual juízo de inconstitucionalidade da norma do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87, na interpretação alegadamente 'restritiva' feita no aludido primeiro fundamento decisório do acórdão impugnado, por força da revisão constitucional de 89, sempre seria irrelevante, por persistir o segundo fundamento, alternativo, e, como tal, bastante, só por si, para nele se alicerçar a decisão de atribuição de competência aos tribunais administrativos.
Ora, tendo a fiscalização concreta de constitucionalidade um carácter instrumental – o que pressupõe a incidência directa do juízo feito por este Tribunal na decisão recorrida – manifesto é que, no caso, um eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87 seria de todo inútil.
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
............................................................................................................................'
É desta decisão que as recorrentes vêm agora reclamar sustentando, em síntese que, tendo suscitado a inconstitucionalidade do artigo 45º nº. 1 da Lei nº.
11/87, que contém norma que a própria decisão sumária considerou ter sido aplicada, 'sempre a inconstitucionalidade do artigo 12º da Lei nº. 83/95 de 31 de Agosto teria que ser necessariamente apreciada', o que se repercutiria sobre todo o acórdão proferido pelo Tribunal dos Conflitos.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir.
2 – A decisão reclamada interpretou o acórdão recorrido no sentido de que ele se fundara em duas ordens de razões alternativas: a primeira, assente no artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87, com uma interpretação 'corrigida', de acordo com a revisão constitucional de 89 (competentes, em razão da matéria seriam os tribunais de cada uma das jurisdições, administrativa, civil ou criminal); a segunda, assente na revogação daquele artigo pelo artigo 12º da Lei nº 83/95.
Considerando que o âmbito do recurso, delimitado pelas recorrentes, se circunscrevia à norma do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87, na referida interpretação 'corrigida' ou 'correctiva', aceitou-se que nada obstaria ao seu conhecimento.
Já o mesmo não aconteceria com a fundamentação alternativa. É que, embora se admitisse que, em certa medida, aquela mesma norma – mas, agora, não com a interpretação que as recorrentes atribuíam ao aresto – enquanto objecto da revogação operada pelo artigo 12º da Lei nº 83/95, tivesse sido aplicada, o facto de as recorrentes não terem arguido a inconstitucionalidade da norma deste ultimo artigo tornaria inútil o recurso. Na verdade, qualquer eventual juízo de inconstitucionalidade sobre a norma do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87 não se repercutiria na norma do artigo 12º da Lei nº 83/95 que, suporte da fundamentação alternativa do aresto impugnado, se manteria incólume.
Ora, contra isto, as recorrentes limita-se a afirmar que a inconstitucionalidade da norma do artigo 45º nº 1 da Lei nº 11/87 conduziria à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 12º da Lei nº 83/95.
Não se vê como, nem as reclamantes o dizem.
Não se verificando qualquer inconstitucionalidade consequencial da segunda norma, só um juízo autónomo, com fundamentos próprios, poderia conduzir a uma decisão de inconstitucionalidade dessa norma; mas, por um lado, tal juízo teria que ser requerido ao Tribunal, mediante uma definição do objecto do recurso que integrasse a mesma norma e, por outro, a inconstitucionalidade deveria ter sido suscitada perante o tribunal 'a quo' (artigo 72º nº 2 da LTC) - e, nem uma coisa, nem outra, as reclamantes fizeram.
Nada há, pois, a censurar à decisão reclamada, que, assim, se confirma.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 7 Ucs
(artigo 20º nº 3 da lei nº 83/95 e por se desconhecer se as reclamantes gozam do estatuto de organização não governamental do ambiente – artº 11º nº 2 da Lei nº
35/98)
Lisboa, 30 de Maio de 2000 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa