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Processo nº 800/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
Recorrente(s): V. C. Recorrido(s): Ministério Público
I. Relatório:
1. O recorrente interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Lisboa, de 27 de Outubro de 1999.
Pretende que seja apreciada 'a inconstitucionalidade da interpretação normativa ou com a interpretação que foi aplicada na decisão recorrida quando revogou a sentença proferida em 1ª instância quanto à questão da excepção do caso julgado por referência ao disposto nos artigos 496º a 498º do Código de Processo Civil aplicáveis por força do artigo 4º do Código de Processo Penal, conjugadas com o conceito penal de culpa resultante do artigo 30º do Código Penal', uma vez que – diz – 'tal interpretação normativa viola o disposto no nº 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa que afirma o princípio constitucional ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime'.
Diz o recorrente que 'a questão da inconstitucionalidade foi oportunamente suscitada pelo recorrente nos autos a fls. (...) no decurso da audiência de julgamento em 1ª instância e posteriormente na resposta às alegações de recurso do Ministério Público'.
O relator proferiu decisão sumária a não conhecer do recurso, com fundamento em que se não verificam os respectivos pressupostos.
2. Dessa decisão sumária reclama o recorrente para a conferência, pedindo a sua revogação por outra que mande prosseguir o recurso. Alega, em síntese, que 'foi oportuna e claramente suscitada a questão da constitucionalidade sub iudicio o que permitiu ao tribunal a quo apreciar devidamente a questão da constitucionalidade suscitada, maxime o voto de vencido exarado na decisão recorrida'. E acrescentou que 'a decisão recorrida adoptou uma interpretação dos preceitos legais em causa diferente da que comummente tem sido feita pelos tribunais superiores, maxime pelo Tribunal da Relação de Lisboa'.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que, 'por faltarem, de forma ostensiva, os pressupostos de admissibilidade de tal recurso', deverá a reclamação ser julgada improcedente: na verdade – disse -, 'as razões aduzidas pelo reclamante em nada abalam o teor da douta decisão sumária proferida – sendo evidente e inquestionável que o recorrente não curou de suscitar, de forma idónea e adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de suportar o recurso que interpôs, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82'.
3. Cumpre decidir. II. Fundamentos: Escreveu-se na decisão sumária: O Tribunal não pode, porém, conhecer do recurso, pois que se não verificam os respectivos pressupostos, a saber: ter o recorrente suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma legal (ou de uma interpretação da mesma) e haver o acórdão recorrido, não obstante essa suscitação de inconstitucionalidade, aplicado tal norma (ou tal interpretação normativa) como ratio decidendi da respectiva decisão. De facto, o que o recorrente disse a propósito da questão de constitucionalidade, na alegação do recurso para a Relação – e só esta afirmação importa, pois que a suscitação da inconstitucionalidade há-de fazer-se 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (cf. o nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional) – foi o seguinte: O crime imputado ao arguido nos presentes autos, não obstante consumar-se com a exploração das máquinas, tem necessariamente como acto de execução a sua prévia importação, donde resulta que se está perante uma única acção, em que o arguido importa com uma única motivação as ditas máquinas para as explorar, independentemente de as máquinas em causa se terem destinado a diferentes lugares ou estabelecimentos abertos ao público. Em consequência não pode o arguido ser julgado tantas vezes quantos os processos que tem contra si, pois isto significa a violação do princípio fundamental do
'ne bis in idem', consagrado no nº 5 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa 'ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime', donde resulta que se está perante uma excepção dilatória do caso julgado, definida nos artigos 497º e 498º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º do Código Penal. Como se vê, o recorrente não suscita a inconstitucionalidade de qualquer interpretação normativa. Limita-se a afirmar que, por se estar no caso perante uma única acção e uma única motivação, se verifica a excepção de caso julgado; e a sublinhar que, por esse motivo (ou seja: por se estar em presença de uma única acção e de uma única motivação – e, assim, de uma situação coberta pelo caso julgado), ele não pode ser julgado tantas vezes quantos os processos que correm contra si, pois a tal se opõe o princípio constitucional do ne bis in idem. Mas, mesmo admitindo que o recorrente tivesse suscitado, embora de forma processualmente inadequada, a inconstitucionalidade da interpretação de determinadas normas jurídicas, o certo é que o acórdão recorrido, para
–contrariamente ao que fizera a 1ª instância – concluir pela inexistência de caso julgado, não aplicou os artigos 496º a 498º do Código de Processo Civil com qualquer interpretação diferente daquela que decorre, imediatamente, dos seus próprios dizeres; ou seja: não os aplicou com qualquer interpretação que pudesse ter sido acusada de inconstitucionalidade. De facto, depois de dizer que a excepção prevista nesses preceitos legais
'pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, isto é, que tenha transitado em julgado', acrescentou que, por isso, 'ao decidir-se pela verificação desta excepção deve invocar-se a sentença já transitada que, face à identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, obsta à condenação do arguido'. Mais adiante, disse que 'a causa de pedir é, aqui, o facto jurídico concreto que fundamenta a aplicação de uma pena ao arguido' e que 'o pedido é a pretensão de reconhecimento jurisdicional de que aquele facto constitui crime pela prática do qual o arguido é acusado, da sua responsabilidade criminal e consequente aplicação da sanção legal'. Precisou a seguir: 'a identidade da causa de pedir refere-se aos factos já julgados e aos que se pretendem julgar em novo julgamento'. Depois de expor estes princípios, recordou o acórdão recorrido que o crime por que o arguido está acusado se consuma com a exploração das máquinas de jogo, e não com a aquisição e importação das mesmas – e, assim, que 'o âmbito da norma incriminadora não abrange a importação das máquinas de jogo mas a sua exploração fora dos locais legalmente autorizados'. A seguir, disse o mesmo aresto: Não está provado que a exploração daquelas máquinas se deveu a uma única e inicial resolução do arguido antes se depreende da prova produzida em conjugação com as regras da experiência comum que a exploração das máquinas importadas teve início em diversos momentos e localizou-se em diversos estabelecimentos comerciais. As máquinas referidas noutras decisões não são as mesmas máquinas, a exploração processava-se em locais diferentes, com diferentes proprietários que compartilhavam os lucros da exploração. Tem pois que se concluir que não existe identidade objectiva integradora dos pressupostos do caso julgado. Decorre do que acaba de dizer-se que o acórdão recorrido concluiu no sentido da inexistência de caso julgado, em virtude de se não ter provado a existência de uma única acção e de uma única motivação (ou seja: por não existir identidade objectiva), e não por que tivesse adoptado uma qualquer interpretação estranha dos artigos 496º a 498º do Código de Processo Civil. Dizendo de outro modo: a inexistência de caso julgado afirmou-a o acórdão sob recurso, baseado em que os factos provados são diferentes daqueles por que o arguido anteriormente fora julgado, e foram por ele praticados em obediência a uma diferente motivação. Não foi, assim, por adoptar uma interpretação daqueles preceitos legais diferente da que comummente deles é feita que o acórdão de que se recorre entendeu não se verificar a excepção de caso julgado.
Nada há a acrescentar ao que então se disse. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, não conhecer do recurso;
(b). condenar o recorrente nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2000 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida