Imprimir acórdão
Processo n.º 1325/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 90/2014:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério Público, os primeiros vêm interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 4ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, em 25 de setembro de 2013 (fls. 2303 a 2330), para que seja apreciada “(a) interpretação conferida pelo Tribunal a quo às normas contidas nos artigos 30º, 77º, 217º, 218º e 256º, n.º 2 do CP, este último na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, no sentido de entre o crime de burla e de falsificação de documentos existir pluralidade de resolução criminosa, incorrendo os agentes na prática de ambos os ilícitos em concurso real, é manifestamente inconstitucional por violadora do disposto no artigo 29º, n.º 5, da CRP” (fls. 2356).
Tudo visto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido em 13 de novembro de 2013 (fls. 2358), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que algum ou alguns deles não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. O Tribunal Constitucional só pode conhecer de interpretações normativas que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos (cfr. artigo 79º-C da LTC). Ora, conforme nota a decisão recorrida:
«Porém, na sua argumentação esquecem que, neste caso, o crime de falsificação do documento nem sequer nem sequer é crime meio, nem tão pouco foi instrumental do crime de burla qualificad[a] que cometeram (com efeito a falsificação de documento reporta-se ao abuso de assinatura de outras pessoas no contrato de arrendamento aludido nos pontos 31 a 37 dos factos provados).» (fls. 2324)
Daqui resulta que a decisão recorrida começou por fundar-se na conclusão de que o crime de falsificação não configurava um meio instrumental para que o crime de burla tivesse sido perpetrado. Ora, do objeto do presente recurso – tal como livremente fixado pelos recorrentes – não resulta, de modo algum, nenhuma alusão ou concretização desta específica interpretação normativa. A tal ponto que, mesmo que o Tribunal Constitucional viesse a conceder provimento ao recurso interposto, sempre subsistiria esse fundamento alternativo de decisão que obstaria a que o tribunal recorrido modificasse o sentido final da sua decisão. Tal fundamento alternativo esvazia, assim, de interesse processual o recurso ora sob apreciação, razão pela qual se recusa conhecer do objeto do mesmo.
Acresce ainda que, não tendo os recorrentes incluído aquela específica interpretação normativa como objeto do presente recurso, tal geraria, de igual modo, a impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso, em estrita aplicação do artigo 79º-C da LTC.
Para além do mais, mesmo que assim não fosse – o que não se admite, mas por mera exaustão de fundamentação se pondera –, certo é que já pré-existe jurisprudência neste Tribunal, no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação normativa que o recorrente elegeu como objeto do presente recurso. Disso são exemplo os Acórdãos n.º 303/2005 e n.º 375/2005, bem como a Decisão Sumária n.º 645/2011, posteriormente confirmada pelo Acórdão n.º 62/2012, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/. Por essa razão, mesmo que outras razões não obstassem ao conhecimento do objeto do recurso – como já supra se demonstrou – sempre se podia concluir ser a questão simples e, portanto, passível de uma decisão sumária de indeferimento, mediante remissão para jurisprudência anteriormente proferida.
III – Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformados com a decisão proferida, os recorrentes vieram deduzir a seguinte reclamação:
«1. Os arguidos reclamantes, interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, recurso este, com base na alínea b) do artigo 70.º da Lei 28/82 de 15 de novembro.
2. Sucede que, por despacho proferido em 4 de fevereiro de 2014, foram os arguidos reclamantes notificados do indeferimento do recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional.
3. Os arguidos reclamantes não podem aceitar o indeferimento do recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional, até pelos motivos que constam daquele indeferimento, conforme se passa a expor:
4. O despacho de que ora se reclama, indeferiu o recurso para o Tribunal Constitucional, por um lado por entender que o arguidos reclamantes não arguiram de forma adequada a inconstitucionalidade de qualquer norma, e por outro lado por considerar também que o recurso não seria de admitir, por essa norma não ter sido aplicada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
5. Quando na realidade foi suscitada de forma expressa a inconstitucionalidade dos artigos 30.º, 77.º, 217.º, 218.º e 256.º n.º 1 do Código Penal, este último na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, no sentido de entre o crime de burla e de falsificação de documentos existir pluralidade de resolução criminosa, incorrendo os agentes na prática de ambos os ilícitos em concurso real, é manifestamente inconstitucional por violadora do disposto no artigo 29.º n.º 5 do CRP.
6. Ao que acresce ainda o facto de a questão ter sido corretamente suscitada, de modo processualmente adequado, nos termos do disposto no artigo 72.° n.º 2 da Lei 28/82 de 15 de novembro, pelo que os arguidos reclamantes consideram inaceitável o indeferimento do recurso com base numa suposta 'incorreta' arguição da inconstitucionalidade.
7. Até porque, aquilo que é processualmente exigido aos recorrentes, é que este coloque a questão perante o tribunal de forma a que este possa dela conhecer.
8. A interposição do recurso para o Tribunal Constitucional está limitada às hipóteses legalmente previstas, e ás condições lá estabelecidas.
9. Neste caso, os arguidos reclamantes, interpuseram recurso com base na alínea b) do artigo 70.° da Lei 28/82 de 15 de novembro.
10. Ora, quando o recurso para o Tribunal Constitucional tem por objeto as alíneas b) ou n do artigo 70.°, dispõem ainda o artigo 75.° - A do mesmo diploma, que o requerimento de interposição de recurso deve conter ainda, para além da referência expressa à alínea do artigo 70.° ao abrigo da qual o recurso é interposto, a indicação da norma ou princípio constitucional que se considera violado, bem como a peça processual em que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade.
11. Os arguidos reclamantes cumpriram assim todos os requisitos legais para a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
12. Assim sendo, e atento todo o exposto, deve o recurso ser admitido, uma vez que não se encontra verificada nenhuma causa de indeferimento de acordo com o disposto no artigo 76.º da citado diploma legal.
13. Acresce ainda que, nos termos do disposto no número 5 do artigo 75.º-A da Lei 28/82 de 15 de novembro, caso o requerimento de interposição de recurso não indique qualquer um dos elementos legalmente exigidos, devem os requerentes serem convidados a prestar tal indicação no prazo de 10 dias.» (fls. 2370 a 2378)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público, na qualidade de recorrido, veio apresentar a seguinte resposta:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 90/2014, não se conheceu do objeto do recurso porque, não havendo coincidência entre a dimensão normativa questionada pelo recorrente e a efetivamente aplicada na decisão recorrida, tal, por um lado, levava ao esvaziamento do interesse processual na apreciação do recurso e, por outro, gerava a impossibilidade de conhecimento do objeto “em estrita aplicação do artigo 79.º-C da LTC”.
2º
Acrescenta-se que “para além do mais”, como a questão de constitucionalidade colocada era simples face à jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal matéria, sempre seria de proferir “decisão sumária de indeferimento”.
3º
Na reclamação agora apresentada, o recorrente insiste que suscitou adequadamente, e durante o processo, uma questão de inconstitucionalidade normativa e que cumpriu as exigências constantes do artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC.
4º
Ora, não foi esse o fundamento que levou ao não conhecimento do objeto do recurso.
5º
Sobre o efetivo fundamento – não coincidência entre a dimensão normativa questionada e a aplicada – nada se diz.
6º
Quanto ao não ter sido proferido o despacho-convite a que alude o artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6 da LTC, tal não se revestia de qualquer utilidade, uma vez que aquele convite destina-se, exclusivamente, a dar a possibilidade aos recorrentes de suprirem deficiências formais de que o requerimento de interposição do recurso padeça.
7º
Ora, o não conhecimento do objeto do recurso ficou a dever-se à não verificação de requisitos de admissibilidade.
8º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Antes de mais, deve sublinhar-se que a decisão reclamada não adotou, em momento algum, a fundamentação que o reclamante invoca, ou seja, não se fundou numa eventual falta de suscitação processualmente adequada da inconstitucionalidade da interpretação normativa que constituía objeto do presente recurso, pelo que não fará qualquer sentido apreciar a argumentação vertida na reclamação.
Pelo contrário, a referida decisão só não conheceu do objeto do recurso por considerar que ele não correspondia, integral e fidedignamente, à interpretação normativa que foi efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido. Ora, quanto a este ponto, os reclamantes nem sequer esboçam um mínimo de argumentação que a pudesse abalar.
Além disso, a razão pela qual não se conheceu do objeto do recurso também não incidiu na ausência de indicação dos elementos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 75º-A da LTC, pelo que não teria tido qualquer utilidade um convite ao aperfeiçoamento, ao abrigo do n.º 6 do artigo 75º-A da LTC. Cabe aos recorrentes fixar o objeto do recurso, através do requerimento de interposição de recurso, não sendo a fase de aperfeiçoamento a sede própria para reformular o objeto de um recurso já perfeitamente delineado, corrigindo a ausência de identidade entre a norma jurídica aplicada e aquela que foi razão determinante da decisão recorrida, mas apenas para corrigir imperfeições formais detetadas pelo Relator.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 6 de Março de 2014.- Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.