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Processo n.º 1209/13
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 6 de setembro de 2013.
2. Pela Decisão Sumária n.º 735/13 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«1. Um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto é a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é requerida.
O recorrente requer a apreciação da «inconstitucionalidade dos art.º 374º, n.º 2 e art.º 379, n.º 1 n.º 1 a), do C.P.P., quando interpretados no sentido de não ser necessário fundamentar de facto e de direito o douto acórdão, bastando apenas fazer referências aos elementos de prova e uma referência ao exame crítico efetuado, bem como da interpretação em como é possível ao juiz, em sede de recurso, não explicar o raciocínio lógico para chegar a determinada decisão, designadamente não indicando os motivos que determinaram que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido aceitando um e afastando outro, não explicando o porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão».
É manifesto que o tribunal recorrido não aplicou aqueles preceitos legais na interpretação identificada pelo recorrente. Abona claramente nesse sentido a passagem transcrita no ponto 3. do Relatório, nomeadamente quando se afirma que o tribunal de 1.ª instância fez «uma apreciação conjunta, circunstanciada e crítica de toda a prova – direta e indiciária -, explicando o conteúdo e peculiaridade de cada uma, o critério de valoração seguido e a forma como foi alcançada a convicção, com a transparência necessária para que se possa ajuizar da sua correção».
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, há que concluir, nesta parte, pelo não conhecimento do objeto do recurso interposto, o que justifica a prolação desta decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
2. Um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é a suscitação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade cuja apreciação se requer.
O recorrente pretende a apreciação da «inconstitucionalidade dos artºs 187º e 188º, do C.P.P., do entendimento normativo de que não é necessário despacho do juiz para ordenar a junção aos autos dos dados obtidos através de localização celular, bem como não é necessária a sindicância da sua relevância para o processo, com vista nomeadamente, à exclusão e destruição dos dados “dados manifestamente estranhos ao processo”».
Sucede, porém, que perante o tribunal recorrido não foi questionada a conformidade constitucional de norma reportada àqueles artigos do Código de Processo Penal. Com efeito, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães o recorrente invocou a Constituição da República Portuguesa somente para retirar do n.º 8 do artigo 32.º a consequência da nulidade da prova obtida através da faturação detalhada.
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, há que não tomar conhecimento, também nesta parte, do objeto do recurso interposto, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
3. Um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto é a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é requerida.
O recorrente pretende a apreciação da «inconstitucionalidade do art.º 308º, n.º 2 do CPP, quando interpretado no sentido de que é possível ao juiz do julgamento julgar o arguido com base em factos, elementos e circunstâncias que levem a um agravamento da situação do arguido, quando o juiz de instrução na decisão instrutória, não pronuncia o arguido por tais factos, elementos e circunstâncias, retirando até factos da primitiva acusação».
É manifesto que o tribunal recorrido não aplicou aqueles preceitos legais na interpretação identificada pelo recorrente. Abona claramente nesse sentido a passagem transcrita no ponto 3. do Relatório, nomeadamente quando se afirma que «os factos dados como provados são os mesmos da pronúncia».
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, há que concluir pelo não conhecimento do objeto do recurso interposto, o que justifica a prolação desta decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«Quanto à primeira questão:
A quando da interposição do recurso, requereu o arguido que, após a admissão do recurso lhe seja concedido prazo para a apresentação das alegações, de acordo com o disposto no art.º 79º, nº 1 e 2 da Lei 28/82 de 15.11.
Seria, pois, em sede de tais alegações que o arguido/recorrente explanaria a sua motivação para o que alega.
Neste ponto, aliás como em todos, a Douta decisão sumária indica um pequeno excerto do Acórdão recorrido para fundamentar a sua rejeição, mas sem ter em conta a globalidade da decisão recorrida.
Na verdade, é entendimento do recorrente que a Douta decisão recorrida enferma de violação dos preceitos constitucionais. O arguido tem o direito constitucional de apresentar a quem de direito – Venerando Tribunal Constitucional – a sua argumentação, expressa nas alegações de recurso que pretende apresentar.
Salvo o devido respeito, decisão contrária, implica a violação dos direitos fundamentais do arguido previstos nos artigos 18º, n.º 2, 32º, n.º 1 e 8 e 34º n.º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, o que implica a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, não é pelo facto de o tribunal referir no relatório que «o tribunal de primeira instância fez uma apreciação conjunta, circunstanciada e crítica de toda a prova – direta e indiciária -, explicando o conteúdo e peculiaridade de cada uma, critério de valoração seguido e a forma como foi alcançada a convicção, com a transparência necessária para que se possa ajuizar da sua correção» que tal corresponda, de facto, ao que foi efetuada, bastará para isso atentar na motivação apresentada em sede de recurso, a qual, seria (será, espera) apresentada pelo reclamante nas alegações a apresentar neste Venerando Tribunal.
A expressão apresentada em sede do Acórdão proferido pelo TRG constitui, sempre com o devido respeito, uma redundância, pois, na prática, não concretiza ou explica a razão de tal conclusão, antes justificando a sua convicção, com base em expressões abstratas, o que, obviamente, limita os direitos de defesa do arguido e assim viola a Constituição da República.
Por essa razão e sempre como devido respeito por opinião contrária, tem o arguido, aqui reclamante, o direito de ver o recurso apresentado admitido e apreciado pela mais alta instância judicial do nosso País, devendo qualquer interpretação em sentido contrário, ser considerada inconstitucional.
Quanto à segunda questão:
Ao contrário do que se decidiu na, Douta decisão sumária, entende o reclamante ter, perante o Tribunal recorrido, suscitado a questão da inconstitucionalidade nos termos indicados sob o ponto II do recurso apresentado.
Uma análise atenta do ponto C) da motivação do recurso do arguido para o Tribunal da Relação de Guimarães, permite claramente, salvo melhor entendimento, perceber que a questão é, essencialmente, suscitada do ponto de vista da constitucionalidade.
Vejamos alguns dos pontos aí focados:
É pacífico que o processo penal é direito constitucional aplicado. Assim, na interpretação do disposto no art.º 269.º, n.º 1, al. e) do Cód. de Proc. Penal não podemos deixar de atender à parte dos 'direitos, liberdades e garantias' consagrados na Constituição da República Portuguesa.
· A Constituição da República Portuguesa depois de proclamar, no seu art.º 1º, a dignidade da pessoa humana como valor no qual se funda a República Portuguesa, declara no seu art.º 26.º, n.º 1, como expressão direta da dignidade da pessoa humana que «A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.»
· Porquanto a garantia de inviolabilidade da correspondência ou de outras comunicações proporciona a garantia de que a vida privada se pode exprimir através destes meios de comunicação, o n.º 1 do art. 34.º, da C.R.P. estabelece que 'o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis'.
· No âmbito desta proteção da intimidade da vida privada o n.º 4 do art.º 34.º declara que 'é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal'.
· Para o processo penal a C.R.P. prevê no seu art.º 32.º, n.º 8, que «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.».
· Os Profs Gomes Canotilho e Vital Moreira defendem, também, que a garantia do sigilo das comunicações abrange não apenas o conteúdo das comunicações, mas o próprio 'tráfego' como tal (espécie, hora, duração, intensidade de utilização). Aqui as restrições estão autorizadas apenas em processo criminal (n.º 4), e estão igualmente sob reserva de lei (art.º 18.º 2 e 3), só podendo ser decididas por um juiz. - cfr. Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, pág. 212. (negrito e sublinhado nosso)
· Compulsados os autos constata-se que inexiste despacho do senhor juiz a ordenar a junção do material colhido aos autos, a ponderar se o material solicitado tem todo ele, ou só parte, relevância a fim de ordenar a junção aos autos dos elementos com interesse para a prova e a ordenar a destruição do material que não é necessário para a prova
· A intervenção do senhor juiz de instrução, no inquérito, é direcionada para a defesa dos direitos fundamentais do cidadão,
Das citações supra referidas extraídas do recurso apresentado pelo arguido para o Tribunal da Relação de Guimarães, é claro que se suscita a inconstitucionalidade normativa nos termos em que o apresentou para o Tribunal Constitucional, ou seja, a inconstitucionalidade dos artºs 187º e 188º, do C.P.P., quando interpretados que não é necessário despacho do juiz para ordenar a junção aos autos dos dados obtidos através de localização celular, bem como não é necessária a sindicância da sua relevância para o processo, com vista nomeadamente, à exclusão e destruição dos dados “dados manifestamente estranhos ao processo” - por violação das garantias de inviolabilidade da correspondência ou de outras comunicações e proteção da intimidade da vida privada – art.º 32, nº 8 e art.º 34.º, nº 4 da C.R.P e art.º 126º nº 3 do C.P.P.
Logo em sede de recurso apresentado foi defendido que, nos termos dos normativos supra citados, resulta que ser proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal e tal não foi suscitado tão-somente do ponto de vista da nulidade processual mas também do ponto de vista da constitucionalidade normativa. Neste sentido veja-se o seguinte excerto retirado da motivação de recurso: “Aqui as restrições estão autorizadas apenas em processo criminal (n.º 4), e estão igualmente sob reserva de lei (art.º 18.º 2 e 3), só podendo ser decididas por um juiz. - cfr. Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, pág. 212.”
Entende assim o arguido, sempre com o devido respeito, que também neste segundo ponto não assiste razão à MM.ª Juíza relatora, pelo que tem o reclamante o direito de ver o recurso apresentado admitido e apreciado pelo Tribunal Constitucional, o que, em conferência, deverá ser decidido.
Quanto à terceira questão:
Sempre com o devido respeito, entende o arguido, ora reclamante, que, a decisão sumária de que ora se reclama é, na apreciação deste ponto concreto, a mais grave do ponto de vista dos direitos do arguido.
Tal como sucede na primeira questão, a MM.ª Juíza relatora entende que o Tribunal da Relação de Guimarães não aplicou os preceitos legais citados pelo recorrente e para isso, cinge-se a uma passagem transcrita no ponto 3 do relatório, nomeadamente quando aí, se afirma que «os factos dados como provados são os mesmos da pronúncia».
Sucede que tal não corresponde, de facto à verdade, sendo manifestamente insuficiente para apreciação da questão suscitada que se tenha em atenção somente o ponto 3 do relatório referido.
Uma análise atenta da questão permitirá, sem qualquer dúvida, concluir, que, aquilo de sucede de facto, no caso concreto, é que o arguido foi condenado por factos que, não só não estavam na pronúncia, como tinham até sido expurgados da primitiva acusação, tendo, quanto a esses, o arguido, sido despronunciado.
Apelamos, por isso, Meritíssimos Juízes, a que, se dignem, analisar, como fazem sempre, atenta e particularmente esta questão, porquanto estamos na presença de uma flagrante violação dos direitos do arguido, direitos esses, constitucionalmente consagrados.
Vejamos:
Para suportar a tese acusatória que demonstre que o arguido/recorrente se dedicava ao tráfico de produtos estupefacientes, o Ministério Público, indicou, na acusação deduzida, como meio de prova máximo as interceções telefónicas, imputando-lhe a posse e utilização de vários números de telefone identificados ao longo do inquérito.
Foram também as interceções telefónicas que permitiram ao MP concluir pela existência de indícios suficientes para o acusar com a materialidade constante dos pontos 1 e 2 da (primitiva) acusação e a relevância da utilização do telefone pelo arguido A., aqui recorrente, era tal que, o MP não só indicou como meio de prova os apensos, como até os citou no referido ponto 2) da acusação no próprio libelo acusatório.
Confrontado com estas imputações, que o arguido, aqui reclamante, entendeu não corresponder à verdade, requereu o arguido a abertura de instrução, refutando a acusação, concretamente o facto de ser ele o proprietário, possuidor e/ou utilizador de qualquer um dos números de telefone que lhe eram imputados no inquérito, designadamente o 918578593, 918598332, 910465114, 916575524, 916592110 e 915226693
Realizadas as diligências de instrução, veio a ser proferida decisão instrutória de fls… - ata de 8 de Junho de 2012, pela qual se alterou a acusação pública, eliminando além do mais os pontos 1) e 2) da mesma, tendo-se, igualmente concluindo pela não utilização pelo arguido de nenhum dos telefones cuja utilização, em sede de inquérito lhe haviam sido imputados.
Vejamos então o que consta a este respeito da decisão instrutória de fls…:
(…)
Em sede de julgamento, vem o Tribunal Coletivo, a «andar para trás» tendo em conta, na sua motivação aquilo que a MM.ª JIC havia arquivado, condenando-o por factos que despareceram da acusação por via do crivo judicial – decisão instrutória – o que constitui uma violação clara dos direitos de defesa do arguido previstos no CPP e CRP e gera a nulidade do Acórdão e isso resulta de forma evidente do Douto Acórdão recorrido, como V. Exc.ªas poderão verificar.
Pior que «fazer renascer os pontos 1 e 2 da primitiva acusação pública» o Tribunal “a quo” fez tábua rasa de uma decisão judicial transitada em julgado que, no mesmo processo, com os mesmos factos e meios de prova, considerou não ser o arguido A., aqui recorrente o utilizador dos telemóveis intercetados, nomeadamente o 915 226 693 que recebeu o contacto do co-arguido B. e isto apesar de a decisão instrutória supra citada e cujo teor integral se encontra junto aos autos – cfr. ata de 8-6-2012 ser clara no que aos números de telefone intercetados respeita: não existem indícios de que o recorrente os utilizou ou possuiu em algum momento, bem como não existiam indícios dos pontos 1 e 2 da primitiva acusação.
Com a decisão instrutória proferida não mais (pensava o arguido/reclamante) o arguido/recorrente teria que se preocupar com o teor das interceções telefónicas, com o facto de ter que se defender de não ser ele o possuidor ou utilizador dos números em causa nos autos, nomeadamente o 915 226 693, foi com esta expetativa, com estes elementos que foi a julgamento, pois estava certo que, não lhe tendo tal sido imputado em sede de pronúncia, disso não se tinha que defender, o que, na realidade, não sucedeu, como resulta dos autos.
A verdade é que o Tribunal Coletivo, sustentou a sua motivação factual, essencialmente, na questão das interceções telefónicas e utilização pelo arguido dos números de telefone referidos nos autos, quanto tal questão estava definitiva «arrumada» processualmente, isto é, resulta claro que a suposta e arquivada utilização dos números de telefone mencionados no inquérito foi a base mestra para a condenação do arguido, o que é nulo e constitui a violação dos direitos de defesa assegurados constitucionalmente.
Analisada a motivação da decisão sobre a matéria de facto, tal resulta evidente nas páginas seguintes do Douto Acórdão: pág. 12, pág. 13 e 14, 15, 16, 23, 24, 27/parte inicial, na parte final da página 27:
Resulta pois que o arguido foi condenado por factos pelos quais não foi pronunciado nos autos, nem constavam da pronúncia que, para efeitos de julgamento, lhe foi notificada.
A descoberta da verdade tem regras, regras essas definidas ab initio, sendo inadmissível, ilegal e nulo a alteração das mesmas a meio do processo, designadamente na fase do julgamento e a questão ora suscitada prende-se com temas fundamentais do processo penal, designadamente o do seu fim e o das garantias de defesa do arguido. Entendimento diverso viola além dos direitos de defesa previstos no art.º 32º da CRP, também e, essencialmente, o principio da legalidade, previsto no art.º 29 da CRP.
Ao interpretar a norma do art.º 308, n.º 2 do CPP nos moldes em que o fez, violou o Tribunal o princípio do direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P.), o princípio da legalidade (artigo 29.º, n.º 1, da C.R.P.
E o Tribunal recorrido (TRG) aplicou de facto esta interpretação ao validar o entendimento do Tribunal Coletivo que, conforme exposto, teve em consideração factos que não constam da pronúncia, sendo redundante a expressão do ponto 3 do relatório em sentido inverso, pois essa expressão não tem consonância com a realidade processual dos autos.
Como vem sendo entendimento da jurisprudência desse venerando Tribunal, o princípio da legalidade tem consagração não só no direito material, mas também no processual, sendo fundamental, do ponto de vista dos direitos de defesa do arguido, que, este tenha a certeza daquilo com que pode contar no processo, ou seja, de que é que se tem que defender.
E a questão sub judice é simplesmente, a de saber se, o entendimento do Tribunal recorrido, no sentido de que o arguido possa vir, em sede de Acórdão, a ser surpreendido por uma condenação baseada em factos que em sede de instrução, haviam sido despronunciados, é, ou não, violador dos princípios da nossa CRP.
A nós, e salvo melhor entendimento, parece-nos óbvio, como óbvio é que o Tribunal recorrido, na realidade, não obstante afirmar o contrário, ter aplicado o art.º 308º, n.º 2 do CPP, interpretando-o no sentido de que é possível ao juiz do julgamento julgar o arguido com base em factos, elementos e circunstâncias que levem a um agravamento da situação do arguido, quando o juiz de instrução na decisão instrutória, não pronuncia o arguido por tais factos, elementos e circunstâncias, retirando até factos da primitiva acusação.
Ora a interpretação da norma citada pelo Tribunal recorrido, violou as garantias de defesa do arguido (artigo 16º, 32.º, n.º 5, da C.R.P.) e o princípio da legalidade (artigo 29.º, n.º 1, da C.R.P.), por compressão dos direitos do Arguido, ora reclamante, o que deverá ser declarado.
Em face de tudo o exposto, APELAMOS a V. Excªs, se dignem verificar e concluir que, não obstante a expressão transcrita no ponto 3 do relatório do Acórdão recorrido, o tribunal recorrido, aplicou, DE FACTO, o preceito legal citado pelo arguido, aqui reclamante, pelo que se impõe a admissão e apreciação do recurso, oportunamente, interposto, para este Venerando Tribunal Constitucional».
4. Notificado da presente reclamação, o Ministério Público veio dizer o seguinte:
«4º
Quanto à primeira questão de inconstitucionalidade suscitada pelo arguido – arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP) -, considerou a Ilustre Conselheira Relatora (cfr. fls. 3710 dos autos):
“É manifesto que o tribunal recorrido não aplicou aqueles preceitos legais na interpretação identificada pelo recorrente. Abona claramente nesse sentido a passagem transcrita no ponto 3, do Relatório, nomeadamente quando se afirma que o tribunal de 1ª instância fez «uma apreciação conjunta, circunstanciada e crítica de toda a prova – direta e indiciária -, explicando o conteúdo e peculiaridade de cada uma, o critério de valoração seguido e a forma como foi alcançada a convicção, com a transparência necessária para que se possa ajuizar da sua correção».
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, há que concluir, nesta parte, pelo não conhecimento do objeto do recurso interposto, o que justifica a prolação desta decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).”
Ora, concorda-se inteiramente com esta apreciação da Ilustre Conselheira Relatora.
5º
Relativamente à segunda questão de constitucionalidade suscitada – arts. 187º e 188º do CPP -, entendeu a Ilustre Conselheira Relatora (cfr. fls. 3711 dos autos), merecendo esta sua posição igualmente a concordância do Ministério Público:
“Sucede, porém, que perante o tribunal recorrido não foi questionada a conformidade constitucional da norma reportada àqueles artigos do Código de Processo Penal. Com efeito, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães o recorrente invocou a Constituição da República Portuguesa somente para retirar do nº 8 do artigo 32º a consequência da nulidade da prova obtida através da faturação detalhada.
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, há que não tomar conhecimento, também nesta parte, do objeto do recurso interposto, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).”
6º
Finalmente, quanto à terceira questão de constitucionalidade suscitada pelo ora reclamante – art. 308º, nº 2 do CPP -, considerou a Ilustre Conselheira Relatora (cfr. fls. 3711-3712 dos autos):
“É manifesto que o tribunal recorrido não aplicou aqueles preceitos legais na interpretação identificada pelo recorrente. Abona claramente nesse sentido a passagem transcrita no ponto 3, do Relatório, nomeadamente quando afirma que «os factos dados como provados são os mesmos da pronúncia».
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, há que concluir pelo não conhecimento do objeto do recurso interposto, o que justifica a prolação desta decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).”
Ora, também se concorda inteiramente com esta apreciação da Ilustre Conselheira Relatora.
7º
Na sua reclamação para a conferência, nenhuma argumentação apresentada pelo arguido infirma as conclusões agora apresentadas, muito pelo contrário.
O arguido retoma, com efeito, argumentação já anteriormente expendida – e analisada pela Decisão Sumária ora reclamada -, para além de fazer considerações sobre o decurso do processo e as suas vicissitudes, que pouca relevância têm quanto às questões de constitucionalidade suscitadas.
8º
Nessa medida, pelo exposto, crê-se que a presente reclamação para a conferência não deverá merecer acolhimento por parte deste Tribunal Constitucional, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 735/13, de 12 de Dezembro, que determinou a respetiva apresentação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A decisão reclamada concluiu no sentido do não conhecimento do objeto do recurso interposto relativamente à «inconstitucionalidade dos art.º 374º, n.º 2 e art.º 379, n.º 1 n.º 1 a), do C.P.P., quando interpretados no sentido de não ser necessário fundamentar de facto e de direito o douto acórdão, bastando apenas fazer referências aos elementos de prova e uma referência ao exame crítico efetuado, bem como da interpretação em como é possível ao juiz, em sede de recurso, não explicar o raciocínio lógico para chegar a determinada decisão, designadamente não indicando os motivos que determinaram que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido aceitando um e afastando outro, não explicando o porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão». A decisão louvou-se na não verificação de um dos requisitos do recurso interposto – a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é requerida pelo recorrente.
O reclamante argumenta contra o decidido dizendo que em sede de alegações explanaria o que alega quanto à inconstitucionalidade da norma. Esta argumentação parece ignorar que é no requerimento de interposição que é definido o objeto do recurso de constitucionalidade, cabendo ao recorrente indicar nesta peça processual a norma cuja apreciação pretende (artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC). Mais se exigindo que tal norma tenha sido aplicada pela decisão recorrida como razão de decidir. E quanto a isto a reclamação nada argumenta que abale a decisão reclamada quando conclui que é manifesto que o tribunal recorrido não aplicou aqueles preceitos legais na interpretação identificada pelo recorrente. Abonando claramente nesse sentido a passagem em que se afirma que o tribunal de 1.ª instância fez «uma apreciação conjunta, circunstanciada e crítica de toda a prova – direta e indiciária -, explicando o conteúdo e peculiaridade de cada uma, o critério de valoração seguido e a forma como foi alcançada a convicção, com a transparência necessária para que se possa ajuizar da sua correção».
Reiterando o entendimento de que não se pode dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, há que confirmar, nesta parte, a decisão que é objeto de reclamação.
2. A decisão reclamada concluiu no sentido do não conhecimento do objeto do recurso quanto à «inconstitucionalidade dos artºs 187º e 188º, do C.P.P., do [no] entendimento normativo de que não é necessário despacho do juiz para ordenar a junção aos autos dos dados obtidos através de localização celular, bem como não é necessária a sindicância da sua relevância para o processo, com vista nomeadamente, à exclusão e destruição dos dados “dados manifestamente estranhos ao processo”». Louvou-se na não verificação do requisito da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade (artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC).
A presente reclamação em nada abala o decidido, uma vez que das passagens transcritas não decorre, de todo, o cumprimento do ónus da suscitação prévia. Por outro lado, o recorrente não contraria o entendimento, que agora se reitera, de que na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães invocou a Constituição da República Portuguesa somente para retirar do n.º 8 do artigo 32.º a consequência da nulidade da prova obtida através da faturação detalhada.
Há que confirmar, pois, também nesta parte, a decisão reclamada.
3. A decisão que é objeto da presente reclamação concluiu no sentido do não conhecimento do objeto do recurso quanto à «inconstitucionalidade do art.º 308º, n.º 2 do CPP, quando interpretado no sentido de que é possível ao juiz do julgamento julgar o arguido com base em factos, elementos e circunstâncias que levem a um agravamento da situação do arguido, quando o juiz de instrução na decisão instrutória, não pronuncia o arguido por tais factos, elementos e circunstâncias, retirando até factos da primitiva acusação». A decisão louvou-se na não verificação de um dos requisitos do recurso interposto – a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é requerida pelo recorrente.
A presente reclamação em nada contraria o decidido, na medida em que argumenta apenas no sentido de que o tribunal recorrido efetivamente condenou o arguido por factos que, não só não estavam na pronúncia, como tinham até sido expurgados da primitiva acusação, tendo, quanto a esses, o arguido sido despronunciado. Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional este tipo de apreciação, uma vez que lhe compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (artigo 221.º da Constituição).
Reiterando que o tribunal recorrido não aplicou, como ratio decidendi, a norma cuja apreciação foi requerida, há que confirmar, também nesta parte, a decisão reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. –Maria João Antunes –Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral