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Processo n.º 1335/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação para a conferência assume o seguinte teor:
«(…)
1.º
A decisão sumária proferida nesta sede extraordinária assenta em que “(…) não se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do art.º 70.º, da LTC.” sem, no entanto, fixar qual(is) deles está(ão) incumprido(s).
2.º
Ora no referido requerimento de interposição do recurso verifica-se sem dificuldade que:
a) o preceito tutelar do recurso está indicado - art.º 70.º, n.º l, al. b), LTC;
b) as normas pretensamente violadas estão identificadas - 514.º e 515.º, CPC;
c) a lei processual aplicável foi cautelarmente fixada - redação anterior à Lei 41/2013;
d) a tese havida por errada, no que se entende da decisão recorrida, mostra-se também sumariada - é irrelevante para a decisão da causa a declaração médica que não contenha o historial clínico;
e) a norma constitucional violada foi perfeitamente invocada - art.º 26.º, n.ºs 1 e 2;
f) foi determinado o momento e local processual em que a questão foi suscitada - recurso TRL;
g) o entendimento que se tem por correto foi exposto sucintamente, mas de forma entendível não n.º 5 do requerimento em causa, como antes em sede de recurso para o TRL.
3.º
Confessa o recorrente não percecionar deficiência bastante que fira o princípio da adequação formal ou torne impercetível a vexata quaestio, mas num exercício de especulação cautelar sempre se atreverá agora a explicitar com maior rigor a delimitação do recurso suscitado que possa ter engulhado a sua escorreita apreciação em sede vestibular.
5.º
E, sem sombra de dúvida, lido atentamente o texto da decisão de a instância que rejeitava a declaração clínica sub judice, o recorrente não logra alcançar que a norma ali aplicada tenha sido somente a do art.º 543.º, da lei processual civil, convocada unilateralmente pela Veneranda Relação a quo, sem correspondência no texto do recurso ordinário que lhe estava submetido.
6.º
E, por isso mesmo, afastado do presente recurso tal preceito adjetivo cuja letra e espírito não está, nem nunca esteve, em causa na questão controvertida, devendo entender-se essa avocação pelo TRL como um auxiliar de entendimento da decisão a tomar que poderia e parecia sustentar a de 1ª instância que se estava apreciando.
7.º
Mas, repete-se, a controvérsia jurídica não vem da presumida aplicação daquela norma processual, mas das razões que a fundamentam que se resumem “A referida declaração médica tem data de 13-02-2013, não contém qualquer história clínica do Autor, mas apenas a afirmação supra mencionada”, sobre esta a de “perturbações depressivas e diabetes tipo II”, como se alcança do parágrafo anterior dessa parte decisória.
8.º
Daqui reflui que a decisão de rejeição do documento em causa – ainda que com sustentação legal naquela norma, ali não especificada – foi ancorada numa declarativa que violaria, no entender do decisor, um dever de concretização do historial clínico e esta interpretação sim, consubstancia injustificada violação da reserva da vida privada.
9.º
Na verdade, é esta concreta fundamentação que viola o direito constitucional do recorrente à reserva da vida privada, na componente saúde que a lei fundamental, no texto e no espírito do preceito aduzido como violado – art.º 26.º, n.ºs 1 e 2 – tutela, com as salvaguardas próprias de poder precludir ante interesse superior, como a prevenção geral de doenças contagiosas, entre outras causas e apenas por mero exemplo.
10.º
Se outra razão tivesse sido invocada pelo tribunal para a inadmissão da declaração médica poderia caducar, eventualmente, o direito do recorrente a rebelar-se contra ela, porque a sobredita norma do art.º 543.º, n.º 1, do CPC a cobriria.
11.º
Porém, a fundamentação foi direta ao facto da simples consignação – não impugnada por ninguém – de “perturbações depressivas”, sem especificação concreta de razões da sua existência é que se torna atentatório da dignidade do cidadão que se apresenta à justiça para obter reconhecimento de danos morais.
12.º
E a reforçar uma tal violação está a imputação direta dessas maleitas psíquicas a uma muito concreta alegação formulada em petitório, o artigo 16.º da petição inicial do A., aqui recorrente, em cujo texto se encontra a imputação ao facto de ser sido injusta e ilegalmente processado os motivos de uma tal situação mental “(...)causando-lhe constrangimentos, vexames, sofrimentos psíquicos e desgostos morais.”.
13.º
Ora, uma tal realidade é, segundo uma mui vasta jurisprudência, desnecessitada de prova específica por caber num conceito geral de regras de experiência de vida percetíveis pelo cidadão comum, presunção essa que é de conhecimento oficioso do julgador e merece atendimento, até porque nem tudo se pode provar e os danos morais são uma muito concreta especialidade em que só se obtém juízo por meio de presunções e ilações retirados pelas regras gerais de senso comum e do bom senso do julgador.
14.º
E é esta a questão que sustenta o recurso de insubmissão da tese aplicada ao direito constitucionalmente consagrado, a da desnecessidade de provar objetivamente os danos morais genéricos emergentes da submissão dum cidadão à condição de réu cível por dívidas não provadas mas, ainda assim, sujeito ao vexame público atentatório da sua honra, bom nome, consideração e crédito, violação que é genericamente presumida e cujos danos não carecem de prova mais ampla.
15.º
Pelo que as normas – sem expressão textual – que deficientemente aplicadas na decisão de rejeição de declaração médica sobre o estado depressivo inerente a essa situação vergonhosa, exigindo ainda um maior vexame ao pretender impor relato detalhado das perturbações constatadas, são as violadas não se colocando qualquer questão quanto à aplicação da regra do art.º 543.º que, com outros fundamentos, poderia não acolher motivos de crítica constitucional.
16.º
Vertente interpretativa que dá corpo e fundamento à questão trazida ao superior juízo deste Tribunal Constitucional e que não teve eco na decisão sumária que, na senda da distorção trazida à disputa pela Veneranda Relação de Lisboa, – e não de Coimbra como, certamente por lapso, nela vem escrito (pág. 3, § 1.º) – se limitou àqueloutra norma cuja interpretação não é objeto deste recurso, olvidando o que de complementar tem a aplicação das regras sindicadas, as dos art.ºs 514.º, n.º 2 e 515.º, CPC, para a presunção fáctica que afasta a necessidade de prova específica sobre os naturais danos morais e psíquicos causados pelo coercivo arrastamento dum cidadão a juízo sem motivo comprovado, e do conhecimento oficioso que os tribunais têm para atender essas presunções, dispensadas de prova pela sua natureza e especificidade.
(…)»
3. Notificada da reclamação deduzida, a recorrida não apresentou resposta.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem a seguinte redação:
«(…)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de setembro de 2013, pretendendo ver apreciada «a inconstitucionalidade das normas contidas nos art.ºs 514.º, e 515.º do Código de Processo Civil, na redação anterior à vigência da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, com a interpretação que vem sucintamente expressa no acórdão recorrido – ante a ausência dela na decisão de 1.ª instância – no sentido de que, em súmula, a declaração médica em causa assume uma impertinência e desnecessidade visto o seu laconismo, “(…) não assumindo qualquer relevância para a decisão da causa (…)”, por não conter a história clínica nem a emitente ser especialista de doenças mentais».
2. O recorrente intentou ação declarativa de condenação com processo sumário contra B., S.A., pedindo que a mesma fosse condenada a pagar-lhe a quantia indemnizatória de 7.550, 00€, a título de compensação por danos não patrimoniais. A mandatária do Autor, já na fase de julgamento, requereu a junção aos autos de uma declaração médica, datada de 13 de fevereiro de 2013, incidente sobre o estado de saúde daquele. Sobre tal requerimento, proferiu o tribunal de 1.ª instância o seguinte despacho:
«(…)
Requereu o Autor a admissão de uma declaração médica emitida pela Exma. Sr.ª Dr.ª C., a pedido do Autor, onde consta que “sobre de perturbações depressivas e diabetes tipo II”.
A Referida declaração médica destina-se a demonstrar a matéria alegada no facto 16.º da petição inicial onde se consignou que “sem qualquer rigor e cuidado instaurou a Ré ações destituídas de fundamentação não se coibindo, como vimos, de devassar a tranquilidade, a honra, consideração social e imagem do Autor, causando constrangimentos, vexames, sofrimentos psíquicos e desgostos morais.”
A referida declaração médica tem data de 13-02-2013, não contem qualquer história clínica do Autor, mas apenas a afirmação supra mencionada.
Face ao que precede não é tal declaração médica, manifestamente, suscetível de demonstrar a matéria ínsita no art.º 16.º da petição inicial a qual se reporta às datas em que terão ocorrido as ações judiciais instauradas pela aqui Ré, máxime as suas audiências de julgamento.
Pelo exposto, não admito o documento ora apresentado pelo Autor.
(…)»
Inconformado com tal despacho, veio o autor recorrer do mesmo, concluindo o requerimento de recurso da seguinte forma:
«(…)
I – Exceção feita aos casos expressos na lei e/ou justificados com valor ou interesse superior, o historial clínico de um qualquer cidadão não pode fazer parte de simples declaração médica de emergência de quadro clínico de uma determinada maleita, por constituir esse relatório detalhado violação da reserva da vida privada, segundo as regras do art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa.
II – É consabido pelas mais elementares regras de experiência comum do cidadão médio que sofrer de “perturbações depressivas” é ocorrência dilatada no tempo, eventualmente com momento e/ou factos iniciais determináveis, em tudo consentâneo com alegação de “sofrimentos psíquicos e desgostos morais”, como foram efetuados no texto invocado como objeto da prova que se pretendia fazer.
III - Tanto assim é que nem sequer o R. se opôs à requerida junção dessa declaração médica, como está consignado em ata.
IV - Destarte, a declaração médica rejeitada é admissível porque justificada plenamente a sua pertinência e relevância para a discussão da causa em complementaridade e concordância com os depoimentos das três testemunhas arroladas pelo recorrente e com a postura física de aparente descomposição emocional manifestada por este em sessão judicial, tornando manifesto o atendimento da prova segundo as regras dos art.ºs 514.º, n.º 2, e 515.º da citada lei adjetiva.
IV – Sendo que a interpretação dada pela instância recorrida às sobreditas normas processuais, as dos art.ºs 514.º e 515.º, ainda que imperfeitamente expressa mas emergente da decisão e com ela compaginável no sentido decidido que não pode ser admitida como prova declaração médica de manifestação de quadro clínico depressivo que omita a história clínica do doente e que seja emitida em momento posterior à ocorrência dos factos invocados como suscetíveis de lhe dar origem, sempre viola, sem razão superior, o princípio do direito à reserva da vida privada, acolhido nos imperativos do art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa.
V – Inconstitucionalidade interpretativa que aqui se deixa arguida para todos os efeitos legais, tendo-se por correta a que resulta clara das conclusões que antecedem, coroando as alegações respetivas, que aqui se têm todas por integralmente reproduzidas.
VI – Carecendo, por tudo isto, a decisão recorrida de revogação e substituição por outra superior, que ordene a admissão como prova da declaração médica rejeitada, com todas as consequências de lei, mormente a anulação dos atos e diligências probatórias subsequentes e correspondente sentença que venha a ser proferida.
(…)»
Concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão tirado em 19 de setembro de 2013, que o documento em apreço “não revela qualquer pertinência para a causa, sendo irrelevante para comprovar a factualidade a que se destinava”. Já quanto à questão de constitucionalidade delineada no requerimento de recurso, considerou o Tribunal não vislumbrar “em que medida é que o art.º que levou à não admissão do documento – o citado art.º 543.º do Código de Processo Civil – se mostra ferido de inconstitucionalidade (não fere quaisquer dos direitos pessoais protegidos pelo art.º 26.º), sendo porém certo que o Recorrente se reporta à inconstitucionalidade dos artgs. 514.º e 515.º, os quais, como se disse, não estão na base da não admissão do documento”. Por conseguinte, julgou a apelação improcedente, mantendo o despacho recorrido.
3. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
4. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
In casu, porém, não é isso que sucede. Com efeito, talqualmente sublinhado pelo tribunal recorrido, não há coincidência entre a norma que foi fundamento da decisão recorrida – a saber, o artigo 543.º, do Código de Processo Civil (na versão aplicável aos presentes autos), relativo a documentos indevidamente recebidos ou tardiamente apresentados – e as normas e correspondentes dimensões normativas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente e que ora integram o recurso de constitucionalidade interposto. Daí resulta, portanto, que os artigos 514.º e 515.º, do CPC, incidentes, respetivamente, sobre “factos que não carecem de alegação ou de prova” e sobre “provas atendíveis”, não constituíram fundamento determinante da decisão recorrida, circunstância que se tem por obstativa do conhecimento do presente recurso.
Há que concluir, portanto, no sentido de que não se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
5. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(…)»
5. A reclamação apresentada pelo reclamante não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
Como se disse na decisão sumária e resulta limpidamente do acórdão da Relação de Lisboa, os preceitos cuja constitucionalidade o então recorrente pretendia ver apreciada não constituíram fundamento determinante da decisão recorrida nem foram nela “deficientemente aplicados”. É bom de ver, aliás, que a existência de coincidência estrita entre o fundamento normativo subjacente a esta decisão, por um lado, e aquele que integra o objeto do recurso de constitucionalidade interposto, por outro, configura um pressuposto de admissibilidade não negligenciável e que inere, aliás, à própria teleologia do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Ora, considerou o tribunal recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 543.º, do Código de Processo Civil (na versão aplicada nos autos), que a declaração médica submetida se afigurava impertinente para a decisão da causa, não sendo, portanto, de admitir.
Visto que tal juízo de inadmissibilidade não assentou numa qualquer interpretação, ainda que imperfeitamente expressa, dos artigos 514.º e 515.º daquele Código, há que reiterar o juízo de não conhecimento do objeto do recurso vertido na decisão sumária reclamada.
III. Decisão
6. Termos em que o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 3 de março de 2014.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.