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Processo n.º 61/95 Messias Bento
Acordam no Pleno do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O PROVEDOR DE JUSTIÇA vem, ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 2, alínea d), da Constituição, requerer a este Tribunal a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas:
(a). a título principal, das normas constantes dos artigos 1º, nºs 1, 2 e 3, e
3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, 'na parte em que afectam situações jurídicas particulares, constituídas em momento anterior ao do início da vigência do citado acto legislativo, por violação directa dos artigos 2º, 18º, nº 3, 61º, nºs 1 e 2, da CRP (ex vi artigo 17º), bem como, independentemente da aplicação temporal, na parte em que violam o disposto no artigo 243º, nº 1, da CRP';
(b). e, consequencialmente, de todas as restantes normas do dito decreto-lei, na mesma parte ou medida, 'já que lhes escapa qualquer alcance e sentido útil, desprovidas que sejam das normas anteriormente [indicadas]'.
Fundamentou o pedido, dizendo, em síntese, o seguinte:
(a). O disposto no art. 18º, nº 3, da CRP, em articulação com as normas constitucionais dos arts. 17º e 61º, nºs 1 e 2, no segmento que se reporta à proibição de retroactividade das restrições a direitos, liberdades e garantias,
é violado pelas normas contidas nos art. 1º, nºs 1 e 3, e art. 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, na parte em que estas se aplicam às licenças e aprovações emitidas em momento anterior ao do início da vigência do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro.
(b). O princípio da tutela da confiança na congruência da ordem jurídica, extraído da formulação do art. 2º da CRP, ao submeter o Estado ao direito que ele próprio criou, é violado pelas normas enunciadas na alínea imediatamente precedente, na parte em que estas se aplicam a licenças e aprovações emitidas em momento anterior ao da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro.
(c). O princípio da limitação da tutela administrativa do Estado sobre as autarquias locais, contido no art. 243º, nº 1, é colidido pelo disposto no art.
1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, porquanto do mesmo resulta uma reapreciação do conteúdo de actos válida e eficazmente praticados pelos municípios à luz de um bloco de legalidade supervenientemente estendido.
(d). As restantes normas do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, padecem de inconstitucionalidade consequente, visto que lhes escapa qualquer alcance e sentido útil, desprovidas que sejam das normas anteriormente impugnadas, na medida em que o forem, ou seja, porque se reconhece a sua validade jurídico-constitucional, em tudo que não colida com os princípios e normas constitucionais supra invocados.
O Provedor de Justiça, com o seu requerimento, juntou:
(a). uma cópia de uma Recomendação que, sobre a matéria, dirigiu ao Ministro do Planeamento e da Administração Interna;
(b). três pareceres jurídicos, da autoria, respectivamente, dos Professores Doutores Diogo Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e Jorge Miranda. Posteriormente, veio requerer a junção de um outro parecer jurídico, da autoria do Professor Doutor José Manuel Sérvulo Correia.
2. O PRIMEIRO-MINISTRO, notificado para responder, veio dizer, em síntese, o seguinte:
(a). Nem as normas dos artigos 1º e 3º nem quaisquer outras do Decreto-Lei nº
351/93, de 7 de Outubro, violam os artigos 17º, nºs 1 e 2, 18º e 61º da Constituição, pois não comportam in se qualquer vestígio, subtil que seja, de eficácia retroactiva ou mesmo retrospectiva, pelo que não podem ser percebidas como supostamente restringentes de quaisquer direitos;
(b). Da mesma forma, e pelos mesmos motivos, também os citados dispositivos não ferem em circunstância alguma o princípio da tutela da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito constante do artigo 2º da Constituição, quer porque não se está perante qualquer direito fundamental – uma vez que a jurisprudência desse venerando Tribunal tem uniforme e constantemente perfilhado o entendimento segundo o qual o ius aedificandi não integra o conteúdo do direito de propriedade – quer ainda porque as soluções consignadas por tais normativos estão parametrizadas por critérios de equilíbrio, de proporcionalidade, de necessidade e de boa-fé;
(c). Também o nº 2 do artigo 1º não viola em momento nenhum o princípio da limitação da tutela administrativa do Estado sobre as autarquias locais, contido no nº 1 do artigo 243º da Constituição, visto que não existe nunca qualquer acto ministerial, posto que meramente administrativo, susceptível de proceder à alteração ou revogação de actos administrativos praticados por órgãos municipais;
(d). E tudo isto porque as situações que podem ser declaradas, isto é, reconhecidas, como estando caducadas, resultam da superveniente entrada em vigor do Prot com elas incompatível – porque superior – e não de qualquer juízo incidente sobre o teor material ou formal dos actos de aprovação ou licenciamento que fundaram tais situações;
(e). De resto, e em suma, o despacho ministerial de confirmação, ou não, da compatibilidade mais não é do que uma mera certificação de uma situação que lhe
é sempre, e em todos os casos, preexistente, qual seja a de reconhecer, também sempre de forma exclusivamente declarativa e jamais ablativa, se alguma anterior faculdade de construir caducou ou não face – única e exclusivamente – às normas dos Prots que determinam novas formas de uso, ocupação e transformação dos solos. Nestes termos, reafirma-se a plena conformidade constitucional das normas constantes dos nºs 1, 2 e 3 do artigo 1º, e do artigo 3º do Decreto-Lei nº
351/93, de 17 de Outubro, que 'estabelece o regime da caducidade dos pedidos e dos actos de licenciamento de obras, loteamentos e empreendimentos turísticos', devendo ser julgado integralmente improcedente o presente pedido de declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade daquelas normas.
O Primeiro-Ministro solicitou a junção aos autos de um parecer jurídico da autoria do Dr. Mário Esteves de Oliveira.
3. Discutido o memorando elaborado nos termos do artigo 63º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, foram os autos distribuídos a um relator. Cumpre, agora, decidir.
II. Fundamentos:
4. Observações prévias:
4.1. Convém começar por recordar que o objecto do pedido é constituído pelas normas que se contêm nos artigos 1º, nºs 1, 2 e 3, e 3º do Decreto-Lei nº
351/93, de 7 de Outubro, mas (salvo quanto à do nº 2 do artigo 1º, cuja constitucionalidade é questionada considerando mesmo a sua aplicação para o futuro) tão-só na parte ou na medida em que elas afectam as licenças e aprovações (de loteamento, de obras de urbanização ou de construção) já concedidas à data da sua entrada em vigor. (A declaração de inconstitucionalidade das restantes normas do mencionado decreto-lei, essa – recorda-se – apenas é pedida a título consequencial).
De recordar é, igualmente, que, tal como se sublinhou no memorando, ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, está subjacente, 'antes de mais, o entendimento de fundo de que, de harmonia com os princípios gerais de aplicação das leis no tempo (nomeadamente, do artigo 12º, nº 1, do Código Civil), a legalidade das ‘licenças’ e ‘aprovações’ em causa só pode e tem de aferir-se pelas normas urbanísticas – maxime, as dos planos regionais de ordenamento do território (PROT’s) ou a estas relativas – vigentes no momento da sua emissão (dessas licenças ou aprovações): doutro modo, teremos aplicação necessariamente ‘retroactiva’ de tais normas'. E acrescentou-se aí:
'Por outro lado, mas ainda em consonância com este entendimento, considera o Provedor de Justiça que, muito embora o legislador opere com a noção de
‘caducidade’ dos direitos titulados pelas licenças e aprovações em causa (em consequência da incompatibilidade com PROT posterior), tal figura, no seu sentido próprio (tendo a ver com a extinção de direitos pelo decurso do tempo), não cabe ao caso [...]. Do que se trata é de pôr em causa certos actos de licenciamento ou de aprovação – ressalvada a excepção prevista no nº 1 do artigo
4º do diploma legal em apreço -, com base naquela incompatibilidade [...], ou seja, de prever a ‘revogação’, com essa base, de ‘actos administrativos constitutivos de direitos’, a qual tanto pode assumir a forma de ‘revogação ope legis’ (se os interessados não requererem a confirmação de compatibilidade), como de ‘revogação administrativa’ (se, requerida a confirmação, ela vier a ser recusada)'.
Lembra-se também que o Primeiro-Ministro, na sua resposta, contestou um tal entendimento de fundo; tal como se sintetizou no memorando, ele sustentou que
'as normas dos PROT’s, enquanto ‘leis de ordem pública’ e também enquanto normas que, como se diz no artigo 12º, nº 2, do Código Civil, dispõem sobre o conteúdo de situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem [...], são
‘de aplicação imediata’, atingindo, por isso, as situações anteriormente constituídas, com fundamento em actos de licenciamento praticados antes da sua entrada em vigor. No Decreto-Lei nº 351/93 não está, pois, em causa – diz-se – a
‘validade’ destes ’actos’ ou a sua ‘revogação’: está só o reconhecimento da consequência da ‘caducidade’ – pois que é ainda, efectivamente, de uma modalidade deste instituto que se trata – das ‘situações jurídicas’ criadas com base neles, em consequência da sua incompatibilidade com as normas de um PROT subsequente [...]'. E o memorando continua:
'Nesta conformidade – continua-se na resposta do Primeiro-Ministro – o objectivo do Decreto-Lei nº 351/93 é, afinal, o de facultar aos interessados a possibilidade de obterem a confirmação de que as situações jurídicas entretanto constituídas não caducaram; e, para além disso, o de, através do mecanismo do nº
4 do artigo 1º, e da presunção ou ‘ficção’ de compatibilidade que aí se estabelece, excepcionar dessa caducidade as situações jurídicas constituídas que efectivamente são dignas de protecção'.
No memorando sublinhou-se ainda que, segundo a resposta do Primeiro-Ministro, 'o legislador não [prevê] a caducidade pelo facto de o interessado não solicitar a confirmação', donde resulta que, se o não fizer, 'tudo fica como dantes, à excepção do disposto no artigo 4º', o que – diz – 'demonstra que não há, como pretende o Provedor, revogação ope legis dos actos de licenciamento'.
4.2. Recorda-se, por outro lado, que este Tribunal já apreciou, em fiscalização concreta, a constitucionalidade das normas constantes do artigo 1º, nºs 1, 2 e
3, do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, na medida em que elas permitem a ablação do direito a uma licença de loteamento antes concedida – e, com ela, a afectação das expectativas do seu titular de ver aprovado o projecto de execução de obras de urbanização desse loteamento. Concluiu-se, então, que tais normas não são inconstitucionais, 'no entendimento de que elas se hão-de ter por integradas pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº
48.051, de 27 de Novembro de 1967, por forma a impor-se ao Estado o dever de indemnizar, nos termos deste último diploma legal, os particulares que, por aplicação daquelas normas, vejam ‘caducar’ as licenças que antes obtiveram validamente' (cf. o acórdão nº 329/99, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Julho de 1999).
Neste aresto, o Tribunal analisou, desde logo, as seguintes questões de constitucionalidade, que, nestes autos, não vêm questionadas:
(a). a questão da violação, por falta de autorização legislativa, da reserva parlamentar relativa ao estatuto das autarquias locais;
(b). a questão da violação, por igual motivo, da reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias, com referência ao direito de propriedade
(faculdade do ius aedificandi) e ao direito de iniciativa económica, que são direitos análogos àqueles.
No mesmo aresto, o Tribunal procedeu também ao confronto das ditas normas legais com as normas constitucionais atinentes ao direito de propriedade e à liberdade económica, ao instituto da tutela e ao princípio do Estado de Direito. Trata-se de questões de constitucionalidade, estas últimas, que, em direitas contas, se reconduzem às questões de inconstitucionalidade (material) colocadas pelo requerente, as quais, no memorando foram enunciadas como segue:
(a). violação, pelos nºs 1, 2 e 3 do artigo 1º e pelo artigo 3º, do 'princípio da proibição da retroactividade' das restrições de direitos, liberdades e garantias (e direitos fundamentais de natureza análoga), com referência ao direito de iniciativa económica: artigos 18º, nº 3, 17º e 61º, nº 1, da Constituição;
(b). violação, pelas mesmas normas, do 'princípio da tutela da confiança', que é corolário da ideia de Estado de Direito democrático: artigo 2º da Constituição.
(c). violação, pelo nº 2 do artigo 1º, do princípio da limitação da tutela das autarquias locais pelo Estado à tutela da legalidade (verificação inspectiva do cumprimento da lei): artigo 243º (agora 242º), nº 1, da Constituição.
4.3. Sendo isto assim, para decidir as questões de inconstitucionalidade colocadas pelo Provedor de Justiça, basta repetir o que se escreveu no citado acórdão nº 329/99 a propósito das questões de inconstitucionalidade material: é que, de um lado, o que então se disse a propósito do artigo 1º, nºs 1, 2 e 3, vale inteiramente para o artigo 3º; e, de outro, como o nº 2 do artigo 1º, tendo em conta a sua aplicação para o futuro, é questionado do ponto de vista do princípio da autonomia local, que o requerente considera violado, também o que então se escreveu a propósito deste princípio é para aqui inteiramente transponível.
4.4. Resta sublinhar, para concluir estas considerações, que, tendo em conta as razões que, no dito acórdão nº 329/99, conduziram o Tribunal a concluir pela não inconstitucionalidade do artigo 1º, nºs 1, 2 e 3, que aqui têm inteira aplicação, se torna desnecessário dilucidar, em definitivo, a questão atinente ao carácter retroactivo, ou não, do Decreto-Lei nº 351/91; bem assim, a do efeito deste diploma legal sobre as licenças ou aprovações emitidas anteriormente à entrada em vigor de um PROT, relativamente às quais se não haja solicitado, ou obtido, a 'confirmação de compatibilidade'; e, ainda, a da extensão ou âmbito da 'excepção' contemplada no nº 4 do artigo 1º do mesmo diploma legal. O que adiante se dirá é quanto basta para decidir as questões de constitucionalidade que os presentes autos colocam.
Prosseguindo, então.
5.Introdução:
5.1. O chamado processo urbanístico é, entre nós, regulado pelos planos de urbanização, que, assim, constituem uma forma de intervenção do Governo no planeamento e ordenamento do território.
Presentemente, é da Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto - que entrou em vigor 30 dias após a sua publicação (cf. artigo 36º) - que constam as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo. Definem-se aí - diz FERNANDO ALVES CORREIA [ 'Problemas Actuais do Direito do Urbanismo em Portugal', página 12 (separata da Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente)] - 'os grandes princípios ou as linhas de força estruturais da regulamentação jurídica do ordenamento do território e do urbanismo'. Tal lei 'contém o quadro orientador de um conjunto de legislação complementar' (ibidem). E, por isso, exige a publicação, no prazo de 1 ano, de diplomas legais complementares que definirão:
(a). o regime jurídico do programa nacional da política de ordenamento do território;
(b). o regime jurídico dos planos intermunicipais de ordenamento do território;
(c). as alterações aos regimes aplicáveis à elaboração, aprovação, execução, avaliação e revisão dos planos regionais de ordenamento do território, dos planos municipais de ordenamento do território e dos planos especiais de ordenamento do território;
(d). o regime dos instrumentos de política de solos, destinados a proporcionar as adequadas condições para a elaboração, desenvolvimento e execução dos instrumentos de planeamento territorial;
(e). o regime dos instrumentos de transformação da estrutura fundiária, da iniciativa da Administração Pública, necessários à execução dos instrumentos de planeamento territorial (cf. artigo 35º, nºs 1 e 2).
Preceitua o n.º 3 do artigo 6º da referida Lei n.º 48/98 que o ordenamento do território e do urbanismo devem assegurar a salvaguarda dos valores naturais essenciais, garantindo que:
(a). as edificações, isoladas ou em conjunto, se integrem na paisagem, contribuindo para a valorização da envolvente;
(b). os recursos hídricos, as zonas ribeirinhas, a orla costeira, as florestas e outros locais com interesse particular para a conservação da natureza constituam objecto de protecção compatível com a normal fruição pelas populações das suas potencialidades específicas;
(c). as paisagens resultantes da actuação humana, caracterizadas pela diversidade, pela harmonia e pelos sistemas sócio-culturais que suportam, sejam protegidas e valorizadas;
(d). os solos sejam utilizados por forma a impedir a sua contaminação ou erosão. Os solos são classificados em solos rurais e solos urbanos.
É solo rural 'aquele para o qual é reconhecida vocação para as actividades agrícolas, pecuárias, florestais ou minerais, assim como o que integra os espaços naturais de protecção ou de lazer, ou que seja ocupado por infra-estruturas que não lhe confiram o estatuto de solo urbano'. É solo urbano
'aquele para o qual é reconhecida vocação para o processo de urbanização e de edificação, nele se compreendendo os terrenos urbanizados ou cuja urbanização seja programada, constituindo o seu todo o perímetro urbano' (cf. artigo 15º, n.º 2). A classificação do solo determina o seu destino básico (cf. artigo 15º, n.º 2). A qualificação do solo regula, 'com respeito pela sua classificação básica', o seu aproveitamento 'em função da actividade dominante que neles possa ser efectuada ou desenvolvida, estabelecendo o respectivo uso e edificabilidade'
(cf. artigo 15º, n.º 3). O regime de uso do solo é estabelecido 'em instrumentos de planeamento territorial', que, para esse efeito, definem 'as adequadas classificação e qualificação' (cf. artigo 15º, n.º 4).
São instrumentos de planeamento territorial os planos municipais de ordenamento do território, que compreendem:
(a). o plano director municipal, que, 'com base na estratégia de desenvolvimento local, estabelece a estrutura espacial, a classificação básica do solo, bem como parâmetros de ocupação, considerando a implantação dos equipamentos sociais, e desenvolve a qualificação dos solos urbano e rural';
(b). o plano de urbanização, que 'desenvolve, em especial, a qualificação do solo urbano';
(c). o plano de pormenor, que 'define com detalhe o uso de qualquer área delimitada do território municipal' (cf. artigo 9º, n.º 2).
Os planos municipais de ordenamento do território têm 'como quadro de referência' os planos regionais de ordenamento do território. Estes estabelecem
'as orientações para o ordenamento do território regional e definem as redes regionais de infra-estruturas e transportes', 'de acordo com as directrizes definidas a nível nacional' no programa nacional da política de ordenamento do território, cujas regras devem integrar [ cf. artigo 10º, n.º 2, alínea b)] , e
'tendo em conta a evolução demográfica e as perspectivas de desenvolvimento económico, social e cultural' [ cf. artigo 9º, alínea b)] . E essas orientações têm carácter vinculativo para as entidades públicas competentes para a elaboração e execução dos planos municipais (cf. artigos 10º, n.º 3, e 11º, n.º
1).
Além dos planos regionais e dos planos municipais de ordenamento do território, pode ainda haver planos intermunicipais de ordenamento do território [ cf. artigo 9º, n.º 1, alínea c)] e planos especiais de ordenamento do território
(cf. artigo 9º, n.º 4). Os planos intermunicipais de ordenamento do território 'são de elaboração facultativa e visam a articulação estratégica entre áreas territoriais que, pela sua interdependência, necessitam de coordenação integrada' [ cf. artigo 9º, alínea c)] . Os planos especiais de ordenamento do território são 'os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas e os planos de ordenamento do orla costeira' (cf. artigo 33º). Tais planos
'traduzem um compromisso recíproco de compatibilização com o programa nacional da política de ordenamento do território e os planos regionais de ordenamento do território e prevalecem sobre os planos municipais e intermunicipais' (cf. artigo 10º, n.º 4).
Pode haver também planos sectoriais, que têm 'incidência territorial da responsabilidade dos diversos sectores da administração central, nomeadamente nos domínios dos transportes, das comunicações, da energia e recursos geológicos, da educação e da formação, da cultura, da saúde, da habitação, do turismo, da agricultura, do comércio e da indústria, das florestas e do ambiente' (cf. artigo 9º, n.º 3). A sua elaboração 'visa a necessária compatibilização com os planos regionais de ordenamento do território, relativamente aos quais tenham incidência espacial' [ cf. artigo 10º, n.º 2, alínea c)] .
Os planos regionais de ordenamento do território (PROT) acham-se disciplinados no Decreto-Lei n.º 176-A/88, de 18 de Maio (alterado, sucessivamente, pelos Decretos-Leis nºs 367/90, de 26 de Novembro, 249/94, de 12 de Outubro, e 309/95, de 20 de Novembro). Os planos regionais de ordenamento do território aprovados ao abrigo desta legislação 'continuam em vigor até à sua revisão obrigatória pelos órgãos das regiões administrativas' (cf. artigo 31º, n.º 1, da Lei n.º 48/98), a qual deve
'ocorrer nos três anos subsequentes à primeira eleição das assembleias regionais, após o que, caso não sejam revistos', 'deixarão de vincular os particulares' (cf. o n.º 2 do citado artigo 31º).
Os planos especiais de ordenamento do território (PEOT) estão regulados no Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 Junho (alterado pela Lei n.º 5/96, de 29 de Fevereiro). Estes planos especiais incluem, como já se referiu:
(1). os planos de ordenamento da orla costeira, que estão regulados pelo Decreto-Lei n.º 309/93, de 2 de Setembro (alterado pelo Decreto-Lei n.º 218/94, de 20 de Agosto, e parcialmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 de Junho);
(2). os planos relativos à Rede Nacional de Áreas Protegidas, cuja regulamentação consta do Decreto-Lei n.º 19/93 (alterado pelo Decreto-Lei n.º
213/97, de 16 de Agosto, e parcialmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 151/95, de
24 de Junho);
(3). e os planos de albufeiras de águas públicas (o Decreto-Lei n.º 45/94, de 22 de Fevereiro, regula o processo de planeamento dos recursos hídricos e a elaboração e aprovação dos planos dos mesmos recursos).
Os planos municipais de ordenamento do território (PMOT) estão regulados no Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março (alterado pelos Decretos-Leis nºs 211/92, de 8 de Outubro, e 155/97, de 24 de Junho. Cf. também o Decreto-Lei n.º 156/97, de 24 de Junho).
Nas palavras de FERNANDO ALVES CORREIA (Estudos de Direito do Urbanismo, Coimbra, 1997, página 113), a função primordial dos planos regionais de ordenamento do território 'é a fixação de regras e directivas respeitantes à ocupação e utilização do espaço - que traduzam a consideração de interesses regionais ou supramunicipais relevantes -, as quais devem ser desenvolvidas e pormenorizadas nos planos de âmbito municipal.'
Os planos especiais de ordenamento do território - sublinha o mesmo autor
(Estudos cit., página 114) - 'fixam princípios e regras quanto à ocupação, ao uso e à transformação do solo na área por eles abrangida, visando a satisfação de um interesse público concreto, através de um correcto ordenamento do território'
Como resulta do que se disse atrás e sublinha FERNANDO ALVES CORREIA (Estudos cit., página 45), está vedada aos municípios 'a inclusão nos planos municipais de disposições que contrariem as directivas dos planos regionais de ordenamento do território ou ponham em causa as opções fundamentais neles condensadas ou o destino geral dos solos neles traçado'. E isto, apesar de os municípios disporem de um amplo poder discricionário na escolha das soluções atinentes ao ordenamento do espaço municipal.
É o que se designa por princípio da hierarquia, na sua vertente de princípio da compatibilidade. Os planos municipais têm, pois, que compatibilizar-se com os planos regionais de ordenamento do território.
É também uma relação de hierarquia, mas agora 'na sua vertente mais rigorosa de princípio da conformidade', que comanda as relações entre os planos especiais e os planos municipais. E isto, porque as disposições dos planos especiais têm,
'em regra, um acentuado grau de concreteza' (cf. Estudos cit., página 118).
É ainda o princípio da conformidade que, em princípio, regula as relações entre os planos directores municipais e os planos de urbanização (estes devem desenvolver e especificar a disciplina urbanística das zonas destinadas por aqueles planos directores à construção) e entre os planos de urbanização e os planos de pormenor (estes devem conter a disciplina detalhada dos planos de urbanização em relação a áreas mais restritas).
5.2. Existem normas legais que contêm um regime jurídico específico para certo tipo ou categorias de solos. A sua disciplina tem, por isso, que ser observada na elaboração dos planos. Tais normas funcionam, assim, como limites à discricionariedade de planeamento. Dentre essas normas, destacam-se as seguintes:
(a). o regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional (REN), constante do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho (alterado pelos Decretos-Leis nºs 274/92, de 12 de Dezembro, e 278/95, de 25 de Outubro). O principal objectivo deste regime jurídico é garantir que os solos de maior aptidão agrícola possam ser efectivamente afectados à agricultura. E, por isso, o legislador procura resguardar tais solos de todas as intervenções (maxime, de intervenções urbanísticas) que destruam ou, mesmo, diminuam as suas potencialidades agrícolas;
(b). o regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (REN), constante do Decreto-Lei n.º 93/90, de 13 de Outubro (alterado, sucessivamente, pelos Decretos-Leis nºs 316/90, de 13 de Outubro, 213/92, de 12 de Outubro, e 79/95, de 20 de Abril). Visa este regime jurídico assegurar a protecção de ecossistemas e a permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao enquadramento equilibrado das actividades humanas;
(c). a disciplina jurídica da Rede Nacional de Áreas Protegidas, constante do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro (revogado, em parte, pelo Decreto-Lei n.º 151/95, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 213/97, de 16 de Agosto). Estas áreas protegidas, umas são de interesse nacional (parque nacional, reserva natural, parque natural e monumento natural), outras são de interesse regional ou local (área de paisagem protegida); outras ainda têm estatuto privado (sítio de interesse biológico);
(d). o regime jurídico da ocupação, uso e transformação do solo na faixa costeira consta do Decreto-Lei n.º 302/90, de 26 de Setembro - diploma que foi aprovado em execução da Carta Europeia do Litoral;
(e). do regime jurídico das áreas florestais, destacam-se a Lei n.º 33/96 , de
17 de Agosto (Lei de Bases da Política Florestal), o Decreto-Lei n.º 139/88, de
22 de Abril (ordenamento das áreas percorridas por incêndios florestais), o Decreto-Lei n.º 139/89, de 28 de Abril (protecção do relevo natural, solo arável e revestimento vegetal) e o Decreto-Lei n.º 327/90, de 22 de Outubro (alterado pelo Decreto-Lei n.º 54/91, de 8 de Agosto e pelo Decreto-Lei nº 34/99, de 5 de Fevereiro), que regula a ocupação dos solos onde tenham lavrado incêndios florestais;
(f). o regime jurídico das servidões administrativas e das restrições de utilidade pública consta de legislação a mais variada (cf. sobre a constituição de servidões administrativas, o Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, e o Decreto-Lei n.º 181/70, de 28 de Abril). Este regime traduz-se numa série de proibições, limitações e condicionamentos ao uso, ocupação e transformação do solo.
5.3. Disse-se atrás que os planos urbanísticos contêm regras atinentes à ocupação, uso e transformação dos solos. No entanto, o modelo territorial neles traçado só ganha vida com a sua execução.
Um dos instrumentos jurídicos da execução dos planos de urbanização é o loteamento urbano, cujo regime jurídico consta do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro (alterado pela Lei n.º 25/92, de 31 de Agosto, e pelos Decretos-Leis nºs 302/94, de 19 de Dezembro, e 334/95, de 28 de Dezembro, tendo este último sido alterado pelo Decreto-Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto). Estes diplomas legais contêm também o regime jurídico das obras de urbanização. As operações de loteamento promovidas pelos particulares estão sujeitas a licenciamento municipal (cf. artigo 1º, n.º 1). Tais operações são constituídas pelo conjunto de 'acções que tenham por objecto ou por efeito a divisão em lotes, qualquer que seja a sua dimensão, de um ou vários prédios, desde que pelo menos um dos lotes se destine imediata ou subsequentemente a construção urbana' [ cf. artigo 3º, alínea a)] e só podem realizar-se em áreas classificadas pelos planos municipais de ordenamento do território como urbanas, urbanizáveis ou industriais (cf. artigo 8º).
É à câmara municipal que cabe deliberar sobre os pedidos de licenciamento de operações de loteamento (cf. artigo 13º, n.º 1) e, bem assim, sobre os das obras de urbanização (cf. artigo 22º, n.º 1). O pedido para licenciamento de operações de loteamento tem que ser decidido pela respectiva câmara municipal no prazo de quarenta e cinco dias (cf. artigo 13º, n.º 5). O pedido para o licenciamento de obras de urbanização deve ser decidido, também pela câmara municipal, 'no prazo de 30 dias a contar da data da recepção do requerimento ou da correcção do mesmo' (cf. artigo 22º, n.º 3), sendo que esta correcção deve ser feita no prazo marcado pelo presidente da câmara, 'sob pena de rejeição do pedido' (cf. artigo 11º, n.º 3). Os pedidos de licenciamento de operações de loteamento e de licenciamento de obras de urbanização devem ser formulados nos termos do Decreto Regulamentar n.º
63/91, de 29 de Novembro (rectificado no 2º suplemento do Diário da República, I-B, de 29 de Fevereiro de 1992). A falta de deliberação da câmara municipal nos prazos indicados nos artigos 13º, n.º 5, e 22º, n.º 3, vale como deferimento (cf. artigo 67º, n.º 1). Trata-se de um deferimento tácito.
Claro é, no entanto, que - como assinala FERNANDO ALVES CORREIA (Estudos cit., página 132) - o acto tácito de deferimento não deixa de ser nulo, 'no caso de violação das disposições dos planos urbanísticos'.
Bem se compreende, de resto, que assim seja, pois os instrumentos de gestão territorial vinculam as entidades públicas (cf. artigo 11º, n.º 1 da citada Lei n.º 48/98); e os planos municipais e especiais são ainda vinculativos para os próprios particulares (cf. o dito artigo 11º, n.º 2). Por isso, o pedido de licenciamento de operações de loteamento pode ser indeferido, designadamente quando 'violar disposições do plano regional de ordenamento do território, plano municipal de ordenamento do território, normas provisórias, área de desenvolvimento urbano prioritário ou área de construção prioritária, bem como de quaisquer outras disposições legais ou regulamentares'
[ cf. artigo 13º, n.º 2, alínea a), do citado Decreto-Lei n.º 448/91] . O pedido de licenciamento de obras de urbanização pode ser indeferido, designadamente quando 'a operação de loteamento não estiver aprovada pela entidade competente ou o projecto de obras de urbanização não se conformar com as condições impostas na respectiva aprovação' [ cf. artigo 22º, n.º 2, alínea a), do mesmo diploma legal] . Uma vez deferido o pedido de licenciamento de uma operação de loteamento, se for necessário fazer obras de urbanização, a respectiva deliberação caduca se, no prazo de um ano a contar da sua notificação, não for requerido o licenciamento de tais obras (cf. artigo 14º, n.º 1). E essa deliberação também caduca se, não implicando a operação de loteamento a realização de obras de urbanização, a emissão do alvará não for requerida, no prazo de um ano a contar daquela notificação (cf. artigo 14º, n.º 2). O licenciamento das operações de loteamento e o das obras de urbanização é titulado por alvará. Este alvará é único, quando a operação de loteamento exija a realização de obras de urbanização (cf. artigo 28º, nºs 1 e 2). O alvará caduca, se a operação de loteamento implicar a realização de obras de urbanização e estas não forem iniciadas no prazo de quinze meses a contar da data de emissão do alvará; estiverem suspensas ou abandonadas por período superior a quinze meses (salvo se a suspensão decorrer de facto não imputável ao titular do alvará); ou não forem concluídas nos prazos fixados no alvará ou no prazo estipulado pelo presidente da câmara, quando tenha sido requerida a sua realização por fases (cf. artigo 38º, n.º 1). As condições estabelecidas no alvará vinculam a câmara municipal que o emite e o proprietário do prédio e, ainda, desde que constem do registo predial, os adquirentes dos lotes (cf. artigo 29º, n.º 3). A concessão do alvará é publicitada pela câmara municipal nos termos do artigo
33º (cf. também a Portaria n.º 216/92, de 20 de Março). As operações de loteamento e as obras de urbanização só podem iniciar-se após a emissão do alvará (cf. artigo 35º, nº1). Só quando as respectivas obras de urbanização 'se mostrem em estado adequado de execução' é que as câmaras municipais poderão emitir licença de construção dos edifícios a implantar nos lotes (cf. artigo 35º, n.º 2). O licenciamento de obras particulares, da competência das câmaras municipais, que para o efeito emitem alvará de licença de construção, acha-se regulado no Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro (alterado pela Lei n.º 29/92, de 5 de Setembro, pelo Decreto-lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, e pela Lei n.º 22/96, de 26 de Julho). (Cf. também o Decreto-Lei n.º 83/94, de 14 de Março, e o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro).
5.4. Os planos regionais de ordenamento do território - assinalou-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro - 'têm por objectivo concretizar, para a área por eles abrangida, uma política de ordenamento, definindo opções e critérios de organização e uso do espaço, estabelecendo normas gerais de ocupação e utilização que permitam fundamentar um correcto zonamento, utilização e gestão do território, tendo em conta a salvaguarda de valores naturais e culturais'. Tais planos regionais - sublinhou-se no mesmo preâmbulo - incorporam 'os regimes jurídicos constantes de outros instrumentos de planeamento de natureza inferior, das Reservas Agrícola e Ecológica Nacionais, bem como das regras de uso e ocupação do solo da faixa litoral'. Ora - diz-se aí -, 'verifica-se que existem situações de incompatibilidade entre as soluções por eles propostas e alguns actos praticados, anteriormente à data da sua entrada em vigência, pelas câmaras municipais e outras entidades que, nos termos da lei, autorizam, aprovam ou licenciam usos e ocupações de solos' - situações que 'ocorrem não só em relação aos planos regionais de ordenamento do território que já estão em vigor, como podem também vir a verificar-se no que respeita a planos ainda não aprovados e publicados'. Mas, sendo isto assim - acentuou-se no dito preâmbulo - é, então, 'forçoso concluir que esta sucessão de regimes veio operar a caducidade dos direitos conferidos por actos praticados anteriormente à entrada em vigor das novas normas de uso e ocupação do solo e cujo conteúdo seja contrário ao regime instituído'. Simplesmente - acrescentou-se -, existem situações em que 'não é clara a incompatibilidade entre o conteúdo dos actos praticados e o regime decorrente de cada plano regional de ordenamento do território, o que pode gerar incerteza sobre a efectiva caducidade dos direitos conferidos por aqueles actos, não constituindo esta, manifestamente, uma situação desejável'. Por isso, julgou-se útil 'facultar aos particulares um meio expedito de verificação da compatibilidade do conteúdo dos actos com regras de uso e ocupação do solo decorrentes de plano regional de ordenamento do território', a fim de 'permitir uma avaliação casuística da compatibilidade com os planos referidos, possibilitando a definição clara de todas as situações em causa' (cf. citado preâmbulo).
O mencionado Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, a que pertencem as normas aqui sub iudicio, dispõe como segue: Artigo 1º.
1. As licenças de loteamento, de obras de urbanização e de construção, devidamente tituladas, designadamente por alvarás, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território ficam sujeitas a confirmação da respectiva compatibilidade com as regras de uso, ocupação e transformação do solo constantes de plano regional de ordenamento do território.
2. A confirmação da compatibilidade é feita por despacho do ministro do Planeamento e da Administração do Território ou por despacho conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e do Comércio e Turismo, nos casos previstos no artigo 3º.
3. Caso seja confirmada a compatibilidade com as regras de uso, ocupação e transformação do solo constantes de plano regional de ordenamento do território, entende-se que os direitos das licenças referidas no n.º 1 não caducaram.
4. Sempre que o titular de alvará de licença de construção comprove que a obra se iniciou e não se suspendeu anteriormente à data da entrada em vigor do plano regional de ordenamento do território, ou dentro do prazo de validade fixado na respectiva licença, entende-se que esta é compatível com as regras de uso, ocupação e transformação do solo constantes daquele plano. Artigo 2º.
1. A confirmação da compatibilidade ou da verificação dos pressupostos previstos no nº 4 do artigo anterior deve ser solicitada no prazo de 90 dias, a contar da data de entrada em vigor do presente diploma ou da data da entrada em vigor do plano regional de ordenamento do território, consoante já exista ou não aquele instrumento de planeamento para a área em questão.
2. A confirmação da compatibilidade é emitida no prazo de 90 dias.
3. A ausência de decisão expressa no prazo referido no número anterior consubstancia uma declaração tácita de compatibilidade. Artigo 3º. O regime previsto no presente diploma é igualmente aplicável às aprovações de localização, às aprovações de anteprojecto ou de projecto de construção de edificações e de empreendimentos turísticos, emitidos pela Direcção-Geral de Turismo ou pelas câmaras municipais em data anterior à da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território. Artigo 4º. Os pedidos de licença de construção em terrenos loteados ao abrigo de alvará emitido anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território devem ser instruídos com documento comprovativo da confirmação da compatibilidade prevista no presente diploma. Artigo 5º. A realização de obras de urbanização e de construção efectuadas em violação do disposto no presente diploma é passível de embargo e demolição, nos termos do disposto nos artigos 57º e 58º de Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, e
61º e 62º do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro. Artigo 6º. A confirmação da compatibilidade é válida pelo prazo de 1 ano, findo o qual caducam automaticamente todos os direitos derivados dos actos ou títulos objecto de confirmação que não possuam prazo de validade e que não tenham sido exercidos. Artigo 7º. O presente diploma entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.
Foi, entretanto, publicado o Decreto-Lei n.º 61/95, de 7 de Abril, que veio dispor que o regime estabelecido neste Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não se aplica às áreas urbanas consolidadas, que são as identificadas nos diplomas que aprovem os planos regionais de ordenamento do território (cf. artigo 1º, nºs 1 e 3). Para este efeito, considera área urbana consolidada 'o conjunto coerente e articulado de edificações multifuncionais e terrenos contíguos, desenvolvido segundo uma rede viária estruturante, dispondo de vias públicas pavimentadas e de redes de abastecimento de água e de saneamento' (cf. artigo 1º, n.º 2). Este Decreto-Lei n.º 61/95 - depois de, no artigo 2º, dispor que 'são elevados para o dobro todos os prazos previstos no Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro' - acrescentou no artigo 3º, n.º 1, que 'a confirmação da compatibilidade a que alude o n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, pode ser requerida posteriormente ao termo do prazo fixado para o efeito no referido diploma, desde que o interessado demonstre ter havido justo impedimento'.
6. As questões de inconstitucionalidade:
6.1. As normas sub iudicio e o princípio da proibição da retroactividade das restrições de direitos, liberdades e garantias – recte, da liberdade de iniciativa económica privada: Na tese do requerente, as normas sub iudicio – recte, as normas constantes dos artigos 1º, nºs 1 e 3, e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro –,
'enquanto aplicáveis aos actos administrativos de licenciamento e aprovação emitidos antes da data' da sua entrada em vigor, violam os artigos 61º, nº 1, e
18º, nº 3, da Constituição (ex vi do artigo 17º), pois que operam, retroactivamente, 'fortes restrições ao ius aedificandi', o qual deve reconduzir-se à liberdade de iniciativa económica privada: de facto – diz -, nelas 'prevê-[se] a extinção dos direitos a exercer nos termos das licenças e aprovações emanadas'.
Pois bem: para decidir esta questão, não se torna necessário tomar posição sobre saber se, como sustenta alguma doutrina, o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade, sendo uma das faculdades em que ele se analisa, sucedendo apenas que o seu exercício está dependente de uma autorização da Administração; ou se, como pretende outro sector da doutrina, é, antes, 'o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico-urbanístico, designadamente dos planos' – ou seja, 'um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas' (cf., sobre isto, o acórdão nº 329/99 e a doutrina aí citada). E tão-pouco é preciso decidir se, como pretende o recorrente, um tal direito se deve reconduzir à liberdade de iniciativa económica privada.
O direito de propriedade é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, gozando por isso mesmo (ex vi do artigo 17º da Constituição), do respectivo regime naquilo que nele reveste natureza análoga
(cf. o citado acórdão nº 329/99 e a jurisprudência aí citada). E outro tanto se pode dizer da liberdade de iniciativa económica privada. Simplesmente, como se escreveu no mencionado acórdão nº 329/99, a liberdade de iniciativa económica privada 'não sofre restrição pelo facto de ser proibido construir num determinado solo ou de isso apenas se poder fazer dentro de certos limites ou com determinados condicionamentos. De todo o modo, mesmo que deva entender-se que a dita liberdade foi nalguma medida limitada pelas normas sub iudicio, uma coisa é certa: a garantia constitucional da liberdade económica privada há-de exercer-se sempre ‘nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral’ (cf. artigo 61º, nº 1, da Constituição). Ora, o interesse geral não pode deixar de atender às necessidades de ordenamento do território, pois que constitui tarefa fundamental do Estado ‘assegurar um correcto ordenamento do território’ [cf. o artigo 9º, alínea e), da Constituição]'.
As normas sub iudicio não violam, pois, o princípio da proibição da retroactividade das restrições de direitos – e, assim, as normas dos artigos
61º, nº 1, e 18º, nº 3 (ex vi do artigo 17º), da Constituição.
6.2. As normas sub iudicio e o princípio do Estado de Direito – recte, o princípio da tutela da confiança. Sustenta o requerente que as normas contidas nos artigos 1º, nºs 1 e 3, e 3º, do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, 'na parte em que se aplicam a situações pretéritas formadas em estrita consonância com a legalidade vigente' violam o
'princípio da confiança dos cidadãos na unidade da ordem jurídica, enquanto corolário da consagração do Estado de Direito (artigo 2º da Constituição)': de facto – diz – a aplicação dessas normas traduz-se 'numa intolerável quebra de confiança por parte dos cidadãos na estabilidade dos direitos que a ordem jurídica lhes havia legitimamente reconhecido'. Tal como se sublinhou no citado acórdão nº 329/99, o recorrente também neste ponto não tem razão. Escreveu-se aí, tendo, naturalmente, em conta os planos de ordenamento do território que interessavam ao caso: Pode, desde logo, questionar-se se as normas sub iudicio, ao determinarem (para o que aqui importa) a 'caducidade' das licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, que não forem confirmadas, são verdadeiramente retroactivas [cf. o acórdão nº 339/90
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas 333 e seguintes)]. De todo o modo, acontece que, fora do domínio penal, em que a retroactividade in peius é constitucionalmente inadmissível (cf. artigo 29º, nºs 1,3 e 4, da Constituição); do domínio fiscal, em que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva (cf. artigo 103º, n.º 3, da Constituição); e, bem assim, do domínio das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, em que a lei não pode ser retroactiva (cf. artigo 18º, n.º 3, da Constituição); este Tribunal tem sempre entendido que uma lei retroactiva não é, em si mesma, inconstitucional [ cf. acordão n.º 95/92
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21º, página 341 e seguintes)] . Fora dos domínios apontados - e isto é o que acontece no presente caso, como decorre do que se disse atrás -, uma lei retroactiva só será inconstitucional, se violar princípios ou disposições constitucionais autónomos. Será o que sucede, quando a lei afecta, de forma 'inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa' direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, de facto, que organize a 'protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida' [ cf. acórdão n.º
330/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas
277 e seguintes). Cf. também os acórdãos nºs 574/98 (por publicar) e 575/98
(publicado no Diário da República, II série, de 26 de Fevereiro de 1999)] . Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático [ cf., entre outros, o acórdão n.º 11/83 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 1º, páginas 11 e seguintes), o citado acórdão n.º 287/90, o acórdão n.º486/96 (publicado no Diário da República, II série, de
17 de Outubro de 1997) e os acórdãos nºs 574/98 e 575/98, citados por último ] . Pois bem: in casu, não pode dizer-se que a ablação do direito à licença de loteamento concedida (e, com ela, a afectação das expectativas da recorrente) - as expectativas de ver deferido o pedido, que apresentou em 13 de Outubro de
1993, de que fosse aprovado o projecto de execução de obras de urbanização do loteamento que lhe tinha sido licenciado em 25 de Setembro de 1992 - tenha sido arbitrária ou deva considerar-se demasiado onerosa. Por isso, não é ela intolerável. E, não o sendo, não é constitucionalmente inadmissível. A ablação do direito à licença de loteamento e a consequente afectação daquelas expectativas da recorrente seriam constitucionalmente inadmissíveis, porque arbitrárias, se não houvesse fundamento material (um interesse público) capaz de justificar a mutação operada na ordem jurídica - uma mutação que, então, se apresentaria como imprevisível e injustificada, não podendo os cidadãos contar com ela. No presente caso, porém, existe um interesse público – o interesse público num correcto ordenamento do território - com relevo suficiente para justificar que se condicione a aprovação do projecto de execução das obras de urbanização, requeridas pela recorrente, à confirmação da compatibilidade do loteamento 'com as regras de uso, ocupação e transformação do solo' constantes de plano regional de ordenamento do território posterior: no caso, o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano (PROTALI), aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 26/93, de 27 de Agosto.
É que, como se viu atrás, os planos municipais de ordenamento do território têm como quadro de referência os planos regionais de ordenamento do território. Estes, com efeito, visam 'o concreto ordenamento do território através do desenvolvimento harmonioso das suas diferentes parcelas pela optimização das implantações humanas e do uso do espaço e pelo aproveitamento racional dos seus recursos' (cf. artigo 1º do Decreto-Lei nº 176-A/88, de 18 de Maio) e têm os seguintes objectivos: 'concretizar para a área por eles abrangida a política de ordenamento'; 'definir as opções e estabelecer os critérios de organização e uso do espaço, tendo em conta, de forma integrada, as aptidões e potencialidades da
área abrangida'; 'estabelecer normas gerais de ocupação e utilização que permitam fundamentar um correcto zonamento, utilização e gestão do território abrangido, tendo em conta a salvaguarda de valores naturais e culturais'; e
'estabelecer directrizes, mecanismos ou medidas complementares de âmbito sectorial que forem consideradas necessárias à implementação do PROT' (cf. artigo 3º do citado Decreto-Lei nº 176-A/88, na redacção do Decreto-Lei nº
367/90, de 26 de Novembro). E, por isso, prescrevia o artigo 12º, nº 1, do mesmo diploma legal que 'as normas e princípios dos PROT são vinculativos para todas as entidades públicas e privadas, devendo com eles ser compatibilizados quaisquer outros planos, programas ou projectos de carácter nacional, regional ou local', acrescentando o nº 2 que 'a desconformidade de quaisquer planos, programas ou projectos enunciados no número anterior relativamente ao PROT acarreta a nulidade'. Com a publicação da Lei nº 48/98, de 11 de Agosto (Lei de
'Bases da Política de Ordenamento do Território e do Urbanismo'), os PROT deixaram, é certo, de ser vinculativos para os particulares, mas continuaram a sê-lo para as entidades públicas (cf. artigo 11º, nº 1). Ou seja: os municípios acham-se vinculados pelos PROT na elaboração e aprovação dos planos municipais. Estes – os planos municipais – é que, tal como os planos especiais, vinculam os particulares (cf. o nº 2 do citado artigo 11º). Por isso, está vedado aos municípios incluir nos planos municipais disposições que contrariem as directivas dos planos regionais de ordenamento do território ou ponham em causa as opções fundamentais neles condensadas ou o destino geral dos solos neles traçado. Daqui decorre, naturalmente, que os planos municipais de ordenamento do território do município de Grândola têm que compatibilizar-se com o Plano Regional de Ordenamento do Território do Litoral Alentejano (PROTALI), aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 26/93, de 27 de Agosto. Ora, tendo os planos municipais de ordenamento do território - que são vinculativos para os particulares - que ser elaborados com observância das regras constantes do respectivo plano regional, mal se compreenderia que, depois, as câmaras municipais pudessem conceder licenças para a execução de obras de urbanização que fossem incompatíveis com esse plano regional. Tanto mais que o actos praticados em violação das disposições dos planos urbanísticos, mesmo que se trate de actos tácitos de deferimento, são sempre nulos (cf. FERNANDO ALVES CORREIA (Estudos cit., página 132). Se as câmaras municipais pudessem passar licenças que fossem incompatíveis com os planos regionais de ordenamento do território, frustrar-se-ia um dos objectivos desses planos, que é – repete-se – o de definir opções e critérios de organização e uso do espaço por eles abrangido, estabelecendo 'normas gerais de ocupação e utilização que permitam fundamentar um correcto zonamento, utilização e gestão do território, tendo em conta a salvaguarda de valores naturais e culturais' (cf. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro). Frustrar-se-ia, em suma, o desiderato de conseguir que aos cidadãos seja assegurado um 'ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado', o que passa pela 'valorização da paisagem', por um correcto 'ordenamento do território' e pela promoção da 'qualidade ambiental das povoações e da vida humana, designadamente no plano arquitectónico' [ cf. artigo 66º, nºs 1 e 2, alíneas b) e e)] . Pois bem: foi, justamente, o facto de saber que existem situações de incompatibilidade entre as soluções propostas pelos planos regionais de ordenamento do território e 'alguns actos praticados, anteriormente à data da sua entrada em vigência, pelas câmaras municipais e outras entidades que, nos termos da lei, autorizam, aprovam ou licenciam usos e ocupações de solos' - situações que 'ocorrem não só em relação aos planos regionais de ordenamento do território que já estão em vigor, como podem também vir a verificar-se no que respeita a planos ainda não aprovados e publicados' - que levou o legislador a determinar 'a caducidade dos direitos conferidos' por esses 'actos praticados anteriormente' em desconformidade com os planos. Mas, ciente também de que existem situações em que 'não é clara a incompatibilidade entre o conteúdo dos actos praticados e o regime decorrente de cada plano regional de ordenamento do território', o mesmo legislador decidiu 'facultar aos particulares um meio expedito de verificação da compatibilidade do conteúdo dos actos com regras de uso e ocupação do solo decorrentes de plano regional de ordenamento do território', a fim de 'permitir uma avaliação casuística da compatibilidade com os planos referidos, possibilitando a definição clara de todas as situações em causa' (cf. citado preâmbulo). Foi a confirmação da compatibilidade do licenciamento do loteamento com o PROTALI que a Câmara Municipal de Grândola pediu que a recorrente solicitasse à entidade competente. A dita ablação do direito à licença de loteamento, com a consequente afectação das mencionadas expectativas da recorrente, seria também constitucionalmente inadmissível, se fosse demasiado onerosa, pois, em tal caso, ela seria intolerável. Sucede, no entanto, que, quando as licenças anteriormente concedidas, por serem incompatíveis com os planos regionais de ordenamento do território, houverem de
'caducar', a perda do direito à licença é, como se disse acima, compensada com o pagamento de uma indemnização. E, por isso, não pode a referida ablação do direito à licença de loteamento e a consequente afectação das mencionadas expectativas ser havida como demasiado onerosa. As normas sub iudicio não violam, assim, o princípio da protecção da confiança, que vai implicado na ideia de Estado de Direito, entendido aquele princípio como garantia de um direito dos cidadãos à segurança jurídica - da segurança que assenta no facto de os cidadãos poderem confiar na ordem jurídica para, nos limites dela, ordenarem e programarem as suas vidas. De facto - repete-se -, a mutação introduzida na ordem jurídica por essas normas tem a justificá-la um relevante interesse público: o interesse público de um correcto ordenamento do território. Ao que acresce que os efeitos da sua aplicação retroactiva, quando impliquem a 'caducidade' de licenças anteriormente concedidas, são minorados pelo pagamento de uma indemnização ao particular prejudicado. E mais: as licenças só 'caducam', se forem incompatíveis com o respectivo plano de ordenamento do território, salvo, ainda assim, se, em casos do tipo do destes autos, as obras de urbanização se iniciaram (e não se suspenderam) antes de entrar em vigor o plano ou começaram dentro do prazo de validade fixado na respectiva licença, pois, tal sucedendo, presume-se que a licença é compatível com as regras constantes do plano. É neste sentido que o artigo 1º, nºs 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 351/93 deve ser interpretado, como sustenta SÉRVULO CORREIA (cf. Parecer citado). Ora, o princípio de justiça que, enquanto decorrência da ideia de Estado de Direito, deve servir de guia à actividade legislativa e, bem assim, comandar a actuação dos órgãos e agentes da Administração (cf. artigo 266º, n.º 2, da Constituição), não exige mais do que isto.
Na transcrição que acabou de fazer-se, afirmou-se que, quando as licenças anteriormente concedidas, por serem incompatíveis com os planos regionais de ordenamento do território, houverem de 'caducar', a perda do direito à licença é compensada com o pagamento de uma indemnização. E isto, seja qual for o tipo de licença (ou aprovação) que estiver em causa.
É certo que a proibição de construir decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização. Mas, tal como se sublinhou no acórdão nº 329/99, citando FERNANDO ALVES CORREIA, o Estado já deve indemnizar o particular, quando essa proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação à expropriação para o efeito de dever ser paga uma indemnização. Nesse acórdão nº 329/99, acrescentou-se:
É que, o Estado de Direito deve ser um Estado de Justiça. E, por isso, quando, por tal ser necessário para a realização de um interesse público urbanístico, ele 'expropria' o particular de um direito que antes lhe concedera validamente, a justiça exige que esse particular seja indemnizado, como, de resto, impõe o artigo 22º da Constituição. Pois bem: uma das situações que, por via da gravidade e da intensidade dos danos que produz na esfera jurídica dos particulares, impõe o pagamento de uma indemnização é, justamente, aquela em que as licenças ou autorizações de loteamento, urbanização ou construção já concedidas são postas em causa por um plano urbanístico posterior, designadamente, em virtude de, como é o caso, uma lei posterior vir retirar eficácia a licenças de loteamento, urbanização ou construção já concedidas, desde que se não prove que essas licenças já concedidas são compatíveis com as regras de uso, ocupação ou transformação dos solos, constantes desse plano. Esta perda de eficácia, importando a ablação de faculdades ou direitos antes reconhecidos aos particulares, não pode ter lugar senão mediante o pagamento de uma indemnização. Mas, então, como o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não prevê o pagamento de indemnização no caso de as licenças já concedidas não serem confirmadas, a conclusão que parece impor-se é a de que, tal como pretende a recorrente, as normas aqui sub iudicio são, nesse ponto, inconstitucionais, por violação da princípios da justa indemnização, da igualdade, da proporcionalidade e da justiça - tudo conforme ao disposto nos artigos 62º, n.º 2, 13º e 266º, n.º
2, da Constituição. Esta é, contudo, uma conclusão apressada.
É que, não é necessário que o dever de indemnizar seja imposto pelo diploma legal em que se inscrevem as normas sub iudicio para se salvar a sua compatibilidade com a Constituição. Basta que esse dever decorra de outras normas legais. De facto - como escreve MARCELO REBELO DE SOUSA (Direito do Ordenamento do Território e Constituição cit., página 57) -, 'o juízo de inconstitucionalidade não pode recair sobre uma norma legal dissociando-se de todas as demais que vigoram no ordenamento jurídico e, designadamente, daquelas que lhe são mais próximas'. Pois bem: se, no momento em que foi editado o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não havia norma legal que expressamente previsse o dever de indemnizar, com fundamento no facto de, por 'caducarem' as licenças anteriormente concedidas, se ficar impedido de urbanizar ou construir em loteamento já autorizado; o certo é que esse direito a ser indemnizado podia fazer-se decorrer do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 27 de Novembro de 1967. Na verdade, este artigo 9º prescreve que o 'Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais'. Ora, no caso, o que conduz à perda de eficácia das licenças anteriormente concedidas é um encadeamento de actos que se iniciou com a aprovação de um novo plano de ordenamento; prosseguiu com a edição de normas que, ao exigirem a prova da compatibilidade das licenças anteriormente concedidas, afectam situações jurídicas criadas pela outorga dessas licenças – e, por isso, nessa parte, podem dizer-se 'leis medida'; continua, nalguns casos, com o indeferimento do pedido de certificação daquela compatibilidade ou com a não aprovação de projectos de obras de urbanização de loteamentos anteriormente licenciados (e, assim, com a não emissão do respectivo alvará); e culmina, a final, com a perda de eficácia das licenças que antes foram validamente atribuídas. Sendo isto assim, uma interpretação do mencionado artigo 9º à luz do artigo 22º da Constituição não pode deixar de impor ao Estado o dever de indemnizar o particular que assim se viu 'expropriado' de faculdades ou direitos que antes lhe foram validamente reconhecidos.
A finalizar esse ponto, escreveu-se no mesmo aresto: Há, assim, que concluir que, como o regime instituído pelas normas sub iudicio deve ser integrado pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 48.051, de 27 de Novembro de
1967, interpretado por forma a impor ao Estado o dever de indemnizar os particulares que, por aplicação daquelas normas, vejam 'caducar' as licenças que antes obtiveram validamente, o facto de não imporem, elas próprias, esse dever de indemnizar não as torna inconstitucionais.
As normas sub iudicio não violam, pois, o princípio da protecção da confiança, corolário do princípio do Estado de Direito.
6.3. A norma constante do nº 2 do artigo 1º e o princípio da limitação da tutela das autarquias locais pelo Estado à tutela da legalidade (verificação inspectiva do cumprimento da lei): Sustenta o requerente que a norma constante do artigo 1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, viola o artigo 243º, nº 1 (hoje, 242º, nº 1), da Constituição, porquanto desvirtuam 'o princípio ali contido que faz cingir a intervenção tutelar à verificação inspectiva do cumprimento da lei, no pressuposto insofismável de as autarquias locais não poderem cumprir outra lei que não fosse a que vigorava no momento do assentimento das operações urbanísticas, hoje comprometidas pela aplicação do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro'. E isso, porque – diz o requerente – a norma em apreço encerra 'duas formas de revogação das licenças e aprovações urbanísticas': 'uma revogação ope legis de actos administrativos constitutivos de direitos, caso não seja requerida pelo particular a confirmação da compatibilidade da sua licença no prazo legalmente fixado, bem como uma verdadeira revogação administrativa, caso seja formulado esse pedido e seja recusada a confirmação pretendida pelo particular'. Para além de que – acrescenta -, 'quando o Governo afere da compatibilidade dos actos municipais com normas não vigentes na altura da prática daqueles actos', 'aproxima-nos da tutela de mérito'.
Também quanto a este ponto o requerente não tem razão, como se mostrou no citado acórdão nº 329/99. Escreveu-se aí: O Estado - prescreve o artigo 6º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
- é unitário, mas, na sua organização e funcionamento, respeita os princípios da subsidariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública. As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (cf. artigo 235º, n.º 1). Embora compita ao legislador definir as atribuições das autarquias locais e as competências dos seus órgãos (cf. artigo
237º, n.º 1), ao fazê-lo, não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem, antes, que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e que reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer aqueles interesses - os interesses próprios ou privativos das respectivas comunidades. As autarquias locais constituem, assim, verdadeira administração autónoma. Uma das matérias que se inscreve na esfera autárquica é, como se viu, a relativa ao urbanismo e, em certos termos, a atinente ao ordenamento do território. De facto, cumpre-lhes elaborar e aprovar planos municipais de ordenamento do território e, bem assim, regulamentos municipais sobre urbanizações e construções; e, além disso, compete-lhes a gestão urbanística, ou seja, o licenciamento das operações de loteamento, das obras de urbanização e das obras de construção civil (cf. supra, 3). Acontece, porém que a matéria do ordenamento do território e do urbanismo assume também natureza nacional, pois, nalguns dos seus aspectos, diz respeito à comunidade nacional no seu todo. Mais especificamente: constitui mesmo uma das tarefas fundamentais do Estado 'defender a natureza e o ambiente [ ...] e assegurar um correcto ordenamento do território' [ cf. artigo 9º, alínea e), da Constituição] . Por isso é que o artigo 65º, n. 4, da Constituição dispõe que 'o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística'; e que o artigo 66º, n.º 2, prescreve que incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios, 'ordenar e promover o ordenamento do território' [ alínea b)] e 'em colaboração com as autarquias locais', promover 'a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas' [ alínea e)] .
É, assim, uma matéria que - nos dizeres de FERNANDO ALVES CORREIA (Problemas Actuais cit., página 14) - 'convoca, simultaneamente, interesses gerais, estaduais ou nacionais - cuja tutela é cometida pela Constituição ao Estado [ cf. os artigos 9º, alínea e), 65º, n.º 2, alínea a), e n.º 4, e 66º, n.º 2, alínea b)] -, interesses específicos das regiões autónomas [ cf. os artigos 6º, n.º 2, 225º, n.º 2, e 228º, alínea g)] e interesses locais, cuja responsabilidade cabe aos municípios, de harmonia com o princípio da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa, condensados nos artigos 6º, n.º 1, 235º e 237º da Constituição, sendo, por isso, um domínio onde se verifica uma concorrência de atribuições e competências entre a Administração estadual, regional (das regiões autónomas) e municipal'. E o mesmo autor acrescenta: Esta ideia de que a problemática do urbanismo - e também, de certo modo, a do
‘ordenamento do território’ [ ...] - é um espaço aberto à intervenção concorrente - e também concertada - entre os entes públicos territoriais acima referidos resulta claramente, no que respeita à planificação urbanística e às expropriações urbanísticas, do n.º 4 do artigo 65º da Constituição, na redacção da Revisão Constitucional de 1997 [ ...] . Este Tribunal, no seu acórdão n.º 432/93 (publicado no Diário da República, II série, de 18 de Agosto de 1993), sublinhou esta mesma ideia, que, depois, repetiu no acórdão n.º 379/96 (publicado no Diário da República, II série, de 15 de Julho de 1996). No primeiro dos arestos indicados, o Tribunal - depois de acentuar que 'o espaço incomprimível' da autonomia local é o dos 'assuntos próprios do círculo local', os quais se identificam com 'aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratadas de modo autónomo e com responsabilidade própria' - precisou que 'isso não significa que as autarquias locais não possam ou não devam ser chamadas a uma actuação concorrente com a do Estado na realização [ de] tarefas' relativas à matéria de urbanismo. E acrescentou: A determinação contida no artigo 6º, n.º 4, demonstra precisamente a legitimidade dessa actuação concorrente das autarquias locais na realização das tarefas constitucionais. Mas aqui já não está presente aquela ideia de responsabilidade autónoma na gestão de um universo de interesses próprios que tem que ver com a essencialidade da autonomia. Nesse aresto, acrescentou-se que as matérias de ordenamento do território e do planeamento urbanístico, 'porque respeitam ao interesse geral da comunidade constituída em estado' (e, portanto, 'transcendem o universo dos interesses específicos das comunidades locais'), não são privativas das autarquias locais. E precisou-se: Para mais, este domínio da promoção habitacional, urbanismo e gestão do ambiente
é mesmo um domínio aberto à intervenção concorrente das autarquias e do Estado.
[ Cf. ainda, no mesmo sentido, o acórdão n.º 674/95 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Março de 1996) e FERNANDO ALVES CORREIA (O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, página 165)] . Nas matérias de ordenamento do território e de urbanismo existe, assim, um
'condomínio de atribuições' (a expressão é de FERNANDO ALVES CORREIA), no qual está constitucionalmente reservado ao Estado a competência para a produção das normas gerais sobre a ocupação, uso e transformação do solo, ou seja, para a aprovação das 'bases do ordenamento do território e do urbanismo' [ artigo 165º, n.º 1, alínea z), da Constituição) e, bem assim, dos respectivos decretos-leis de desenvolvimento e demais legislação complementar - maxime, a elaboração e aprovação dos planos regionais e especiais de ordenamento do território [ cf. artigos 198º, n.º 1, alínea c), 199º, alíneas a) e c)] . Mais: como as matérias do ordenamento do território e do urbanismo não são assuntos do interesse exclusivo das autarquias locais, pois que interessam também à comunidade nacional no seu conjunto, os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa não podem constituir obstáculo a que o Estado reserve para si, entre outras, a competência para ratificar os planos municipais (cf. artigos 3º, nºs 3, e 4, e 16º do Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março) e para fiscalizar, em certos termos, a observância pelas câmaras municipais e pelos particulares das disposições dos planos (assim, FERNANDO ALVES CORREIA, Problemas Actuais cit., página 15). Não pode, pois, fazer-se decorrer dos princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1º, nºs 1, 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, na parte em que determinam a caducidade das licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, que não forem confirmadas.
É certo que, entre as autarquias locais e o Estado, existe apenas uma relação de supra-ordenação-infra-ordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos
(os interesses do nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um
único e mesmo interesse: o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais [ cf. J. BAPTISTA MACHADO (Participação e Descentralização. Democratização e Neutralidade da Constituição de 1976, Coimbra, 1976, página
17); J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 897); e JOSÉ CASALTA NABAIS ('A Autonomia Local', in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1993, páginas 171)] . E, por isso, ao Estado cabe apenas exercer, relativamente às autarquias locais, uma função de controlo da legalidade das respectivas decisões administrativas - ou seja, uma pura função de tutela da legalidade: 'a tutela administrativa sobre as autarquias locais - prescreve o artigo 242º, n.º 1, da Constituição - consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos
órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei'. O objecto dessa tutela (uma tutela de legalidade, que não de mérito) não é o valor da decisão administrativa, a sua utilidade, o seu merecimento, avaliados em vista do fim que a Administração se propôs atingir [ cf. ROGÉRIO EHRHARDT SOARES (Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra, 1955, página 207 e seguintes)] . A sua finalidade é verificar o cumprimento da lei por parte dos
órgãos autárquicos; não controlar a conveniência ou inconveniência da decisão administrativa, a sua oportunidade ou inoportunidade, a sua correcção ou incorrecção [ cf. DIOGO FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1986, páginas 692 e 695)] . É uma tutela que - nos dizeres de JOSÉ CASALTA NABAIS (ob. cit., página 17) - há-de ser 'apenas uma faculté d’empecher, un frein, admissível para obstar a que as decisões das autarquias extravasem das suas atribuições e invadam as atribuições de outras autarquias ou administrações autónomas'. A autoridade tutelar tem, por isso, de 'cingir-se a reconhecer ou não, dentro de certos limites estabelecidos na lei, as decisões dos entes dotados de autonomia'(ibidem). Esta tutela de legalidade é, além disso, 'de tipo meramente verificativo', diz DIOGO FREITAS DO AMARAL (Direito do Urbanismo. Sumários, Lisboa, 1993, página 61). Não comporta, por consequência, qualquer forma de tutela substitutiva, correctiva, homologatória ou orientadora [ cf. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição Anotada cit., página 897. Cf. ainda ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA ('Poderes de intervenção do Estado em matéria de urbanismo. Autonomia local. Tutela', in Scientia Iuridica, tomo XLI, 1992, página 171 e seguintes)] . Simplesmente, contrariamente ao que sustenta a recorrente, as normas sub iudicio não instituem uma tutela revogatória de legalidade e mérito ou outra qualquer modalidade de tutela proibida pelo artigo 242º, n.º 1, da Constituição. Tal como se concluiu no citado acórdão n.º 379/96, a propósito da norma constante do n.º 6 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 219/72, de 27 de Junho, que atribui à Junta Autónoma de Estradas (JAE) o poder de embargar obras proibidas nas zonas non aedificandi das estradas nacionais, também agora se conclui que aquelas normas se limitam a regular o exercício de uma competência do próprio Estado. De facto, os poderes do Estado neste domínio (o domínio do ordenamento do território e do urbanismo) não podem ficar-se por poderes de simples controlo da legalidade das decisões administrativas das autarquias locais, como é próprio dos poderes de tutela. Como, a par de interesses próprios das comunidades locais, confluem aí interesses que são de toda a comunidade nacional, é indispensável 'proceder a uma justa ponderação de todos eles, a fim de conseguir a sua harmonização - o que reclama que o poder de decisão, em vez de se entregar por inteiro às autarquias locais, atribuindo-se ao Estado um mero poder de controlo da legalidade, seja compartilhado' por ele próprio (apud acórdão n.º
379/96).
Deste modo se conclui que o artigo 1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, quer na sua aplicação às licenças e aprovações já concedidas antes da sua entrada em vigor, quer enquanto aplicável para o futuro, não viola o princípio da autonomia das autarquias locais; não viola, designadamente, o artigo 242º, nº 1, da Constituição.
7. Pode também sustentar-se que as normas sub iudicio violam o artigo 168º, nº
1, alínea b), da Constituição, por versarem, sem autorização parlamentar, sobre o direito de propriedade, no ponto em que a lei fundamental garante aos particulares o direito de não ser arbitrariamente privado da sua propriedade.
No citado acórdão nº 329/99, para concluir no sentido de que não assistia razão
à então recorrente, quando sustentava a existência dessa inconstitucionalidade, escreveu-se: Não a tem [razão], quando se entenda, com FERNANDO ALVES CORREIA (Estudos cit., páginas 51 e 52), que o ius aedificandi (mais propriamente ainda, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não se inclui no direito de propriedade privada,
'sendo antes o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico, designadamente dos planos' - ou seja, 'um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas' (cf., também do mesmo autor, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1990, páginas 372 a 383). E isso, apesar de o direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias [ cf., neste sentido, acórdãos nºs 404/87 e
257/92 (publicados no Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1987 e
18 de Junho de 1993);o acórdão n.º e 431/94 (publicado no Diário da República, I série-A, de 21 de Junho de 1994); e ainda os acórdãos nºs 1/84 e 14/84
(publicados no Diário da República, II série, de 26 de Abril de 1984, o primeiro, e de 10 de Maio de 1984, o segundo)] e gozar, consequentemente - ex vi do disposto no artigo 17º da Constituição -, do respectivo regime naquilo que nele reveste essa natureza análoga. De facto, não sendo o ius aedificandi inerente ao direito de propriedade do solo, o Governo, ao editar o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro - e, assim, ao sujeitar a verificação de conformidade as licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, e ao determinar a 'caducidade' das que não forem confirmadas -, não editou normas sobre o direito de propriedade. Mas, sendo assim, é obvio que o Governo, com a edição do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não invadiu a reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias. Mas, mesmo quem entenda que o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade privada, por ser uma das faculdades em que tal direito se analisa, acontecendo apenas que o seu exercício está dependente de uma autorização da Administração [ cf., neste sentido, entre outros, DIOGO FREITAS DO AMARAL ('Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Licenciado Fernando Alves Correia', in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991, páginas 99 a
101)] , não tem forçosamente que concluir, como fazem alguns autores [ cf. DIOGO FREITAS DO AMARAL e PAULO OTERO (Direito do Ordenamento do Território e Constituição, Coimbra, 1998, páginas 29 e 30); e J.M. SÉRVULO CORREIA E J. BACELAR GOUVEIA (Direito do Ordenamento cit., página 151)] , que toda a normação que contenha alterações ao ius aedificandi (e, concretamente, a que se contém no mencionado Decreto-Lei n.º 351/93) haja de ser produzida (ou autorizada) pela Assembleia da República.
É que, apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de Novembro de
1991), cabem na reserva legislativa parlamentar 'as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias'. Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nºs 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urbanísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9º, alínea e),
65º, nº 4, e 66º, nº 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos. FERNANDO ALVES CORREIA fala do direito de propriedade urbana como 'um direito planificado'; e afirma que os planos urbanísticos são instrumentos que definem
'o conteúdo e limites do direito de propriedade do solo', sem que, ao menos em regra, tenham natureza expropriativa (Estudos cit., páginas 47 e 50). A conclusão a que acaba de chegar-se não é posta em crise pelo facto de a licença em causa nos autos já ter sido concedida no momento da edição das normas sub iudicio – e de, assim, se estar perante uma ablação de um direito (no caso, do direito de lotear) que, uma vez validamente concedido, passou a integrar a esfera patrimonial (é dizer, a propriedade) do titular da licença. De facto, a ablação desse direito, sendo, embora, susceptível de originar uma obrigação de indemnizar, não tem a virtualidade de transmudar a essência do direito de propriedade, por forma a fazer incluir nela faculdades que a garantia constitucional não cobre (recte, as faculdades de lotear, urbanizar e construir).
Nada mais há a acrescentar ao que então se escreveu.
8. Conclusão: Tendo-se concluído pela não inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1º, nºs 1, 2 e 3, e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, óbvio
é não poder declarar-se a sua inconstitucionalidade, nem a das restantes normas do mesmo diploma legal: a destas últimas – recorda-se – vinha pedida a título consequencial.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos vários artigos do Decreto-Lei nº
351/93, de 7 de Outubro, no entendimento de que elas se hão-de ter por integradas pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 48.051, de 27 de Novembro de 1967, por forma a impor-se ao Estado o dever de indemnizar, nos termos deste último diploma legal, os particulares que, por aplicação de tais normas, vejam
'caducar' as licenças que antes obtiveram validamente.
Lisboa, 22 de Setembro de 1999 Messias Bento Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarrro Beleza Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida (vencido nos termos da declaração de voto junta) DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que as normas sob apreciação, na medida em que determinam a «caducidade» - por incompatibilidade com as regras de uso, ocupação e transformação do solo constantes de posterior plano regional de ordenamento do território - de licenças de loteamento e de obras de urbanização e de construção, legalmente emitidas em data anterior à da sua própria entrada em vigor, são organicamente inconstitucionais, por invadirem a esfera da reserva de competência legislativa parlamentar definida no artigo 165º, nº 1, alínea b), da Constituição.
Segundo se preceitua no artigo 17º da Constituição, o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se não só aos que se encontram enunciados no título II da Lei Fundamental, mas também «aos direitos fundamentais de natureza análoga». E esse regime dos direitos, liberdades e garantias, igualmente aplicável aos direitos análogos, abrange seguramente, para além do regime material, o regime orgânico que se traduz na inclusão dessa matéria na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Cumpre, assim, apenas determinar em que medida o direito de propriedade, consagrado no artigo 62º da Constituição, assume natureza análoga à dos «direitos, liberdades e garantias», para o efeito de a sua regulamentação jurídica depender de lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada.
Ora, em minha opinião, a dimensão do direito de propriedade que tem natureza análoga à dos «direitos, liberdades e garantias» consiste, precisamente, na garantia de se não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública – e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização e com base na lei, consoante referi na declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 329/99. Por isso, pode dizer-se que «o verdadeiro direito subjectivo que o art. 62 consagra», isto é, «o direito fundamental, de natureza análoga à de um direito, liberdade e garantia, que se inscreve na garantia constitucional da propriedade privada», consiste, desde logo, «na faculdade que têm os privados de exigir que os actos de 'privação' da 'propriedade' sejam actos praticados por intermédio dos procedimentos típicos identificados pela Constituição e não por intermédio de quaisquer outros» e acaba «por se resumir na titularidade final de um outro direito, ou seja, na titularidade final do direito à justa indemnização» (cfr. Maria Lúcia Amaral Pinto Correia, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora,
1998, págs. 560-561).
Assim sendo, todos os aspectos relacionados com a regulamentação da privação da propriedade, bem como com a forma e os critérios da correspondente indemnização, se inscrevem no âmbito daquilo que, no quadro do direito de propriedade, assume verdadeiramente natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias.
Ora, nesta perspectiva, ainda que se considere que o jus aedificandi apenas integra o direito de propriedade nos termos, nos casos e nas condições que a lei estabelecer, a verdade é que, nos casos em que ele se encontra reconhecido, a sua ablação – a sua privação - só pode ocorrer em conformidade com o disposto na Constituição. Isto mesmo se reconhece no acórdão que obteve vencimento, ao afirmar-se a exigência de justa indemnização; não se descortina, assim, a razão por que idêntico raciocínio não conduziu à conclusão de que só a lei parlamentar, ou parlamentarmente autorizada, podia constituir base suficiente para a medida ablativa.
É bem verdade que, no aresto, se ensaia uma justificação: o jus aedificandi, ainda que já titulado por uma licença de loteamento, não integraria a essência do direito de propriedade, sendo que só a legislação atinente a esta essência se encontra no domínio reservado da Assembleia da República. Como vimos, porém, esta justificação desloca a questão, já que, no direito de propriedade, o que partilha a natureza dos direitos, liberdades e garantias não
é esta ou aquela das concretas faculdades de contéudo em que ele se pode concretizar ou manifestar, mas a garantia constitucional do não desapossamento arbitrário e sem indemnização.
Nesta conformidade, as normas em apreço, por regularem matéria atinente a esta garantia, apenas podiam ser emitidas pela Assembleia da República, ou com sua autorização, sob pena de violação do preceituado no artigo
165º, nº 1, alínea b). José Manuel Cardoso da Costa