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Proc. nº 324/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão do Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira foi o ora recorrente, F. V., condenado como autor da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo art. 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 22 meses de prisão. Na mesma decisão foi o ora recorrente absolvido da prática do crime previsto no art. 21º do mesmo diploma, de que também havia sido acusado, por ter o Tribunal considerado nulo o meio de obtenção de prova não podendo por isso tal prova ser utilizada em juízo (art. 126º do Código de Processo Penal).
2. Inconformado com esta decisão o Ministério Público recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações, na parte ora relevante, da seguinte forma:
'III) A actuação do agente policial deve ser considerada como de agente infiltrado, não de agente provocador, pois se limitou a descobrir o crime, não a provocá-lo. IV)Inexiste qualquer nulidade na obtenção da prova, dado que a sua recolha obedeceu aos condicionalismos legais em vigor na época em que foi produzida. V) O controle judiciário de legislação posterior foi criado para casos de obtenção de prova em situações de muito maior melindre, pelo que os casos não são idênticos. VI) O arguido cometeu o crime p.p. pelo art. 21º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, pois se dedicava à venda de heroina com regularidade. VII) Foram violadas as disposições dos artigos 126º do CPP e 21º, nº 1 e 25º do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro'.
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de fls. 571 e ss., considerando inteiramente válido o indicado meio de prova, decidiu conceder parcial provimento ao recurso, tendo condenado o arguido como autor material do crime p.p. pelo art. 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de
5 anos de prisão.
4. É deste acórdão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente ver apreciada a questão da constitucionalidade da norma contida no artigo 126º do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida pelo acórdão recorrido, por entender que tal norma é violadora do disposto no artigo 32º, nº
6 da Constituição da República Portuguesa.
5. Admitido o recurso foi o recorrente notificado para apresentar alegações, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'a) O arguido foi abordado por um agente da PSP, para vender heroína a este; b) Tal agente era acompanhado por um indivíduo que se encontra detido. c) Após a abordagem o arguido foi a casa buscar o estupefaciente e foi-se encontrar com os referidos indivíduos, sendo detidos; d) A actuação policial prevista no art. 59º do DL 15/93, na redacção da Lei
45/96, é permitida desde que haja intervenção de autoridade judiciária. e) Tal intervenção não existiu no presente caso. f) À data dos factos ainda não vigorava sequer a alteração do DL 15/93, feita pela lei 45/96; g) No caso dos autos não se trata de um agente infiltrado, mas de um agente provocador; h) O arguido não teria praticado o crime por que foi condenado não fora a actuação do agente policial, o que viola, por não estar abrangido pelo art. 59º do DL 15/93, os artigos 126º CPP e 32º, nº 6 CRP; i) A CRP impede que a lei ordinária elimine o núcleo dos direitos do cidadão, bem como a obtenção de provas com violação da autonomia ética da pessoa, mesmo que esta consinta naquela; j) Sendo as provas obtidas com ofensa da integridade física ou moral, é violador do art. 32º, nº 6 CRP, a utilização de um detido; k) A prova obtida foi-o através de agente provocador e com utilização de um detido, sem qualquer controlo judiciário, pelo que é nula; l) Sendo inconstitucional a interpretação do art. 126º CPP que permita considerar válidas as provas obtidas através de agente provocador, com uso de um detido e sem controlo de autoridade judiciária. Assim, m) deve declarar-se inconstitucional a interpretação do art. 126º do CPP que permite o uso de provas obtidas através de agente provocador, com uso de um detido e sem qualquer controlo da autoridade judiciária, ordenando-se ao STJ a reformulação do seu acórdão, de acordo com esta orientação, com as demais consequências legais, já que, n) Foi violado o art. 32º, nº 6 da CRP'.
6. Notificado para responder, querendo, às alegações da recorrente, o Ministério Público recorrido veio dizer, a concluir, que:
'1º - O sentido com que, no entender do recorrente, o art. 126º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, foi aplicado é um sentido que permite o uso de provas obtidas através do agente provocador, com uso de um detido e sem qualquer controlo da autoridade judiciária.
2º - A referida norma não foi, porém, aplicada pela decisão recorrida com um tal sentido, pelo que não deverá tomar-se conhecimento do recurso.
7. Notificado para responder à questão prévia suscitada pelo recorrido o recorrente não apresentou, dentro do prazo legal, qualquer resposta.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
8. Questão prévia: pressupostos de admissibilidade do recurso. O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa – e que, não obstante, a decisão recorrida tenha aplicado – essa norma ou dimensão normativa –, como ratio decidendi, no julgamento do caso. No entender do Representante do Ministério Público junto deste Tribunal o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou o artigo 126º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal, com o sentido normativo cuja constitucionalidade foi questionada pelo recorrente, caso em que não pode conhecer-se do objecto do recurso. Vejamos, pois. No entender do recorrente o artigo 126º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal foi aplicado pela decisão recorrida com o sentido de 'permitir o uso de provas obtidas através de agente provocador, com uso de um detido e sem qualquer controlo da autoridade judiciária'. Importa, pois, ver se foi com este sentido normativo que o Supremo Tribunal de Justiça interpretou aquele preceito. Sobre esta questão, pode ler-se na decisão recorrida:
'No tocante à actuação da testemunha A. T., guarda da PSP, abordando o arguido e perguntando-lhe se «tinha para ele», dizendo este que «naquele momento não tinha, mas que ia a casa buscar», como foi, trazendo quatro embalagens de heroína; Em face destes factos, entendeu-se no acórdão recorrido que tal meio de obtenção de prova é nulo, por contrariar o disposto no art. 126º do CPP e o art. 32º da CRP. Tal tese foi impugnada pelo recorrente e cuidamos que, neste ponto, lhe assiste razão. Com efeito, não é curial qualificar a actuação do aludido guarda da PSP como sendo «agente provocador» ou «agente infiltrado».
É que, resulta dos autos que o agente da PSP em causa não determinou o arguido à prática de qualquer crime já que, conforme se infere da prova produzida, o arguido, antes de ser interpelado por aquele guarda da polícia, já tinha ilicitamente a heroína em sua casa, onde depois a foi buscar (ver ponto 5 da matéria de facto). A já referida conduta daquele agente da polícia não se integra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 126º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal, não configurando o uso de meios «enganosos», pelo que também não foi violado o disposto no art. 32º, nº 6 da Constituição. Não só se ignora que alguns autores portugueses, seguindo algumas das mais aberrantes doutrinas alemãs, defendem o ponto de vista perfilhado na decisão recorrida, mas este supremo Tribunal não aceita tal concepção. Aliás, não é exigível – nem é deste mundo – que as autoridades policiais se façam anunciar, previamente, aos delinquentes, para depois os «surpreenderem» nas suas actividades criminosas, designadamente no que respeita ao tráfico de estupefacientes. Por outro lado, sempre se dirá que o nosso Código de Processo Penal assenta em concepções antiquadas, já definitivamente ultrapassadas à data da sua publicação, impregnadas do «mito garantista dos anos 60», que conduziu a uma crescente ineficácia da justiça, deixando as sociedades dos países ocidentais indefesas perante o crime organizado e o aumento aterrador e violento da criminalidade. Foi em consequência deste estado de coisas que nalguns países europeus, nomeadamente em Itália, se levaram a cabo reformas realistas do processo penal – sem prejuízo dos direitos humanos fundamentais -, no sentido de tornar eficaz e pronta a justiça, na sua luta contra o crime violento e organizado, com saliência para o flagelo do tráfico de estupefacientes. Alguns dos mais recentes autores italianos, referindo-se a esta necessária renovação e modernização do processo penal, aludem à 'derrocada do mito garantista' dos anos 50 e 60 (ver Ennio Fortuna e Outros, in 'Manuale pratico del nuovo processo penale', pp. 15 a 30, 3ª ed., Cedam, Padova, 1993). De harmonia com o que deixamos exposto, entendemos que o aludido meio de obtenção de prova é inteiramente válido, não enferma de qualquer nulidade, pelo que, perante a prova produzida, o arguido praticou o crime do art. 21º, nº 1, do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e não o crime pelo qual foi condenado na 1ª Instância, pelo que o recurso merece provimento em parte'.
Em face do que antecede cremos que não assiste razão ao Ministério Público na questão prévia que coloca.
É certo, por um lado, que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que não era de qualificar a actuação do aludido guarda da PSP como sendo «agente provocador» ou
«agente infiltrado». É igualmente certo, por outro lado, que a dimensão normativa do artigo 126º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal, cuja constitucionalidade o recorrente questiona, é a que 'permite o uso de provas obtidas através de agente provocador, com uso de um detido e sem qualquer controlo da autoridade judiciária'. Cremos, não obstante, que na realidade não existe uma diferença entre a dimensão normativa do artigo 126º, nº 2 al. a) do CPP, questionada pelo recorrente quanto
à sua constitucionalidade e aquela por que a decisão recorrida utilizou como ratio decidendi.
É que a questão de constitucionalidade que verdadeiramente se coloca não consiste tanto em saber se, no caso dos autos, o referido guarda da PSP deve ou não ser qualificado como «agente provocador», mas em saber se viola ou não o disposto no artigo 32º, nº 6 da Constituição a interpretação do artigo 126º do CPP, no sentido no sentido de não subsumir à parte final da alínea a) do seu nº
2, na parte em que se faz referência à utilização de «meios enganosos», comportamentos do tipo dos descritos nos autos - independentemente de deverem ou não ser de qualificar como de «agente provocador», de «agente infiltrado» ou não merecerem qualquer dessas qualificações. Em face do exposto, cremos que o recorrente suscitou efectivamente a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada, pelo que não existe, neste ponto, qualquer obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso.
9. Importa, contudo, ainda em matéria de pressupostos processuais de admissibilidade do recurso, discutir uma outra questão.
É que o recorrente não colocou, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, nem na primeira instância, a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada. Vale isto por dizer que o recorrente não suscitou uma questão de constitucionalidade durante o processo, como é exigido pelo art. 70º, nº 1, al. b) da LTC. Em face do que antecede, não se pode tomar conhecimento do objecto do recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta. Lisboa, 22 de Fevereiro de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com dispensa de vistos) Luís Nunes de Almeida