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Proc. nº 47/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 18 de Junho de 1991, P..., S.A., intentou contra T..., Lda., acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo: a declaração de nulidade (ou, subsidiariamente, a anulação) do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a ré, titulado pela apólice nº 6210173 e respectivas actas adicionais; a condenação da ré a restituir à autora o montante de
2.151.555$50, correspondente às indemnizações pagas pela autora, acrescido de juros à taxa legal; a declaração da responsabilidade única da T... relativamente aos sinistros ocorridos e pendentes de resolução.
Alegou, em síntese, que, no exercício da sua actividade seguradora, celebrou com a ré um contrato de seguro através do qual a T... transferiu para a P... a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho. Sucede porém que a T... tinha ao seu serviço trabalhadores que prestavam trabalho em actividades não cobertas pelo seguro (trabalhadores nas áreas de construção civil e minas e mergulhadores) e trabalhadores que não foram incluídos nas folhas de férias ou só foram nelas incluídos em data posterior ao início efectivo de funções.
A ré T... contestou, dizendo, em síntese, que a autora desde o início teve conhecimento da actividade por ela desenvolvida, que não teve ao seu serviço trabalhadores nas áreas de construção civil e minas e mergulhadores e que sempre foram apresentadas as folhas de férias completas.
Em 3 de Abril de 1995, a L..., S.A., requereu ao tribunal o prosseguimento dos autos com a requerente na posição da P..., como consequência da fusão por incorporação da P..., S.A., na L..., S.A..
O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (16º Juízo Cível) julgou procedente a pretensão da autora, anulando o identificado contrato de seguro
(nos termos do artigo 429º do Código Comercial), condenando a ré restituir à autora os montantes pagos no âmbito do referido contrato, a título de indemnização por acidentes de trabalho, declarando a ré responsável pelos sinistros ocorridos, relativos a acidentes de trabalho, e pendentes de resolução
(sentença de 28 de Novembro de 1995, fls. 516).
2. T... interpôs recurso desta decisão, mas o Tribunal da Relação de Lisboa negou-lhe provimento (acórdão de 14 de Novembro de 1996, fls. 574).
3. Não se conformando com a decisão proferida, T... interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas suas alegações, invocou a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 429º do Código Comercial. Na perspectiva da recorrente, aquela disposição, ao 'permitir a anulação do contrato de seguro de acidentes de trabalho' e ao 'desresponsabilizar a seguradora pela reparação dos danos causados a terceiros beneficiários
(trabalhadores) por sinistros ocorridos na vigência do seguro, ainda que não regularizados', 'viola clara e frontalmente o direito à segurança no trabalho
(de que a protecção contra acidentes é uma das vertentes) consagrado na al. c) do nº 1 do art. 59º da Constituição'.
O Supremo Tribunal de Justiça negou a revista, confirmando o acórdão recorrido (acórdão de 11 de Novembro de 1997, fls. 620).
Relativamente à questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente, disse o Supremo Tribunal de Justiça:
'Nem tal decisão constitui uma interpretação inconstitucional do artº 429º do Cód. Comercial, por pretensa ofensa do artº 59º, nº 1, al. c), da Constituição da República. A alegada inconstitucionalidade não pode servir de cobertura ao procedimento ilícito da recorrente, necessariamente provocador da anulação do contrato de seguro em causa, não afecta os direitos dos trabalhadores eventualmente sinistrados. Em primeira via eles têm garantidos os seus direitos através do património da sua entidade patronal e, na insuficiência deste estão garantidos pelo Fundo de Pensões a que alude o artº 125º do Cód. Proc. Trabalho.'
4. T..., Lda., veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, 'com fundamento na aplicação da norma do art. 429º do Código Comercial', por considerar 'violado o princípio constitucional da segurança na prestação de trabalho e o preceito da al. c) do nº 1 do art. 59º da Constituição'.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 637.
No Tribunal Constitucional, foi proferido despacho para produção de alegações, tendo a recorrente concluído assim as suas alegações:
'A) O contrato de seguro de acidentes de trabalho é imposto por normas de interesse e ordem pública, visando garantir a efectiva 'segurança' na prestação de trabalho, que constitui um dos direitos dos trabalhadores consagrado na al. c) do nº 1 do art. 59º da Constituição; B) Por isso, a anulação do contrato não pode afectar os direitos dos trabalhadores (beneficiários desse contrato a favor de terceiros) à reparação dos danos resultantes de sinistros ocorridos na sua vigência, ainda que não regularizados à data da anulação, sem prejuízo do eventual direito de regresso da seguradora sobre o segurado; C) Daí que a norma do art. 429º do C. Com., aplicada ao seguro de acidentes de trabalho e interpretada com o aludido alcance, deixando sem protecção o trabalhador acidentado, seja inconstitucional por violação da norma referida em A).'
A recorrida formulou as seguintes conclusões:
'1ª– A ora recorrente fez declarações inexactas e reticentes;
2ª – Tais declarações influiram na decisão de contratar;
3ª – Justifica-se assim a nulidade do contrato;
4ª – O preceito constitucional nada tem a ver com a questão sub judice;
5ª – Os direitos dos trabalhadores e beneficiários por acidente de trabalho, declarada a nulidade do seguro, encontram-se garantidos, em primeira linha pela entidade patronal e, subsidiariamente, pelo Fundo de Garantia e Actualização de Pensões;
6ª – Em consequência, não é questionável a validade do disposto no art. 429º do Cód. Comercial.'
5. Na sequência da alteração na composição do Tribunal Constitucional, houve mudança de relator.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II
6. Tal como delimitado pela recorrente, o presente recurso tem por objecto a questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 429º do Código Comercial, 'quando interpretada com o sentido e alcance de permitir a anulação do contrato de seguro de acidentes de trabalho'.
Dispõe o artigo 429º do Código Comercial:
'Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.
§ único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio.'
A recorrente considera que a norma do artigo 429º do Código Comercial, 'aplicada ao seguro de acidentes de trabalho', 'deixando sem protecção o trabalhador acidentado', é inconstitucional, por violação do princípio da 'segurança na prestação de trabalho, que constitui um dos direitos dos trabalhadores consagrado na al. c) do nº 1 do art. 59º da Constituição'.
7. A exacta determinação do risco constitui um aspecto fundamental da disciplina do contrato de seguro, uma vez que o montante do prémio a pagar pelo segurado é fixado em relação ao risco e que uma exacta determinação do risco por parte do segurador é susceptível de se repercutir na gestão da empresa e na possibilidade de proporcionar à generalidade dos segurados a garantia e a segurança pretendidas.
Daí que, em diversas ordens jurídicas, a lei estabeleça para o segurado o ónus de, no momento da formação do contrato, comunicar ao segurador todas as circunstâncias conhecidas que possam ter influência na determinação do risco e determine as consequências, quanto à validade ou eficácia do contrato, da inobservância de tal ónus pelo segurado (artigo 429º do Código Comercial português; artigo 1892 do Código Civil italiano; artigo 10 da lei espanhola
50/1980, de 8 de Outubro, sobre o contrato de seguro).
Alguma doutrina mais antiga refere-se a uma especial relevância do princípio da boa fé no âmbito do contrato de seguro (L. Buttaro, Assicurazione
(contrato di), 'Enciclopedia del diritto', III, 1958, p. 455 ss; J. C. Moitinho de Almeida, O contrato de seguro no direito português e no direito comparado, Lisboa, 1971, p. 61; J. Garrigues, Contrato de seguro terrestre, 2ª ed., Madrid,
1983, p. 46).
O reforço da exigência de boa fé, neste domínio, deve relacionar-se, por um lado, com a natureza duradoura da relação contratual que se estabelece entre as partes e, por outro lado, com o carácter aleatório deste tipo contratual. Tendo em conta principalmente esta característica do contrato de seguro, há que reconhecer que a avaliação do risco coberto pelo seguro, a individualização do sinistro e, consequentemente, a definição das obrigações do segurador dependem das informações prestadas pelo segurado no momento da formação do contrato.
A norma do artigo 429º do Código Comercial tem portanto como objectivo dar concretização a esta necessidade de determinar com exactidão o risco do contrato de seguro.
Consequência do incumprimento do dever de 'declaração exacta' é, segundo a norma em análise, a anulabilidade do contrato (foi esta a qualificação feita na decisão proferida no caso dos autos; no mesmo sentido, na doutrina portuguesa, J. C. Moitinho de Almeida, O contrato de seguro..., p. 61, nota
(29), p. 79; e, na doutrina italiana, perante a norma do artigo 1892 do Código Civil, de teor semelhante, L. Buttaro, Assicurazione (contrato di), p. 487).
O âmbito de aplicação desta norma é geral, dizendo respeito a todos os contratos de seguro, seja qual for a natureza dos bens e do sinistro.
8. Contesta a recorrente que a consequência jurídica estabelecida no artigo 429º do Código Comercial possa aplicar-se no âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho, dado o carácter obrigatório de tal seguro. Na perspectiva da recorrente, a anulação do seguro de acidentes de trabalho 'deixa sem protecção o trabalhador acidentado', contrariando por isso o princípio da
'segurança na prestação de trabalho', consagrado constitucionalmente.
A garantia constitucional de 'segurança na prestação de trabalho' concretiza-se, sob o ponto de vista que agora importa considerar, na imposição
às entidades patronais da obrigação de transferirem a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho e de doenças profissionais para entidades legalmente autorizadas a realizar o seguro (base XLIII da Lei nº 2127, de 3 de Agosto de
1965, e artigo 37º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, diploma que apenas entrará em vigor em 1 de Janeiro de 2000, nos termos do respectivo artigo 41º, nº 1, do artigo 71º, nº 1, do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, e do artigo
1º do Decreto-Lei nº 382-A/99, de 22 de Setembro). Com o mesmo objectivo, a lei instituiu um Fundo de Garantia e Actualização de Pensões, que assegura o pagamento das prestações, por incapacidade permanente ou morte, da responsabilidade de entidades insolventes (base XLV da Lei nº 2127; e artigo 39º da Lei nº 100/97, que atribui algumas das responsabilidades neste domínio ao Centro Nacional de Protecção contra os Riscos Profissionais e outras a um fundo dotado de autonomia administrativa e financeira – o Fundo de Acidentes de Trabalho, criado pelo Decreto-Lei nº 142/99, de 30 de Abril).
9. A alegação da recorrente assenta na conclusão de que a anulação do seguro de acidentes de trabalho, nos termos do artigo 429º do Código Comercial, redundaria em prejuízo imediato dos beneficiários do seguro, no caso, os trabalhadores da sociedade T..., que deixariam de ser abrangidos pelo seguro de acidentes de trabalho.
Ora, em primeiro lugar, a anulação do contrato de seguro de acidentes de trabalho, nos termos do artigo 429º do Código Comercial, não faz desaparecer a obrigação que incumbe à empresa – no caso concreto, à T... – de celebrar novo contrato de seguro relativamente aos trabalhadores que tiver ao seu serviço, por força do disposto na citada base XLIII da Lei nº 2127 (por força do disposto no artigo 37º da Lei nº 100/97, após a respectiva entrada em vigor).
Por outro lado, a própria lei estabelece mecanismos destinados a acautelar a situação dos trabalhadores nas situações em que as entidades patronais, por dificuldades de natureza financeira, não possam suportar os encargos inerentes à segurança dos trabalhadores relacionada com acidentes de trabalho e doenças profissionais (base XLV da Lei nº 2127; artigo 39º da Lei nº
100/97; artigo 1º, nº 1, do citado Decreto-Lei nº 142/99, de 30 de Abril, que cria o Fundo de Acidentes de Trabalho previsto no referido artigo 39º da Lei nº
100/97).
Por fim, e principalmente, importa considerar que os prejuízos porventura resultantes da situação discutida no processo para os beneficiários do seguro (os trabalhadores da T...) não são consequência de qualquer desconformidade constitucional da norma impugnada e aplicável ao caso; são antes consequência do comportamento da sociedade, em violação da mesma norma, que vem dado como provado pelas instâncias.
10. A efectivação da 'segurança na prestação de trabalho' garantida na Constituição e concretizada no direito infraconstitucional depende da colaboração das próprias entidades patronais e das empresas seguradoras.
Às entidades patronais impõe-se designadamente a obrigação de transferirem para as empresas seguradoras a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, através de contratos de seguro validamente celebrados e regularmente cumpridos.
Não se pode pretender imputar a violação do artigo 59º, nº 1, alínea c), da Constituição a uma norma que estabelece as condições de validade do contrato de seguro e que determina a consequência da anulação do contrato relativamente a certas irregularidades na sua formação ou no decurso da sua execução, quando as eventuais consequências negativas da anulação do contrato de seguro são apenas imputáveis a uma conduta desconforme à lei por parte da entidade patronal.
11. Conclui-se assim que a norma constante do artigo 429º do Código Comercial, aplicada ao seguro de acidentes de trabalho, em nada contende com o princípio da 'segurança na prestação de trabalho', consagrado constitucionalmente. III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo
429º do Código Comercial, aplicada ao seguro de acidentes de trabalho, por considerar que não existe violação do artigo 59º, nº 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa;
b) negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz respeito à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em dezoito unidades de conta. Lisboa, 29 de Setembro de 1999 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa