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Proc. nº 514/98
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 30 de Janeiro de 1995, no Tribunal da Comarca de Vila do Conde, M... e mulher, C... intentaram acção, com processo comum, sob a forma sumária, contra CS... e mulher, MB..., e MSB... e mulher, MM..., pedindo a denúncia dos contratos de arrendamento em vigor entre os autores e os réus, para o termo da renovação, ou a suspensão dos mesmos contratos de arrendamento, pelo prazo de dois anos a contar da efectiva desocupação, tendo em vista o aumento do número de lugares arrendáveis do imóvel.
Alegaram que eram proprietários de um prédio urbano constituído por uma morada de casas com pátio, sita na Rua dos Moinhos, nº 267, Labruge, Vila do Conde, e que deram de arrendamento aos réus, para fins de habitação, as duas partes do prédio que identificam; que pretendem que o número de lugares arrendáveis do imóvel passe de três para oito habitações; que destinaram no prédio a construir os apartamentos para os réus, comprometendo-se a indemnizá-los no caso de eles optarem pela denúncia dos contratos.
Contestaram os réus, alegando, em síntese, que não dispõem de rendimentos suficientes que lhes permitam suportar o pagamento da renda fixada pela Comissão de Avaliação e pedindo que lhes seja destinada, no prédio a construir, uma área igual à que agora ocupam para que, sendo a renda mais acessível, a possam pagar.
Por sentença de 15 de Julho de 1997 (fls. 99 e seguintes), o Juiz da Comarca de Vila do Conde reconheceu aos autores o direito de realizarem as projectadas obras, declarou denunciados os contratos de arrendamento em vigor entre os autores e os réus, ou suspensos pelo prazo de dois anos, condenando os réus a despejarem o prédio na parte que ocupam e condenando os autores a pagarem aos réus a indemnização a que têm direito, seja pela denúncia do contrato, seja pela suspensão do mesmo.
Não se conformando com a decisão, MSB... e mulher, MM..., interpuseram recurso de apelação. Nas suas alegações, invocaram a inconstitucionalidade das normas dos artigos 69º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), e dos artigos 1º, 3º e 5º da Lei nº 2088, por violação do disposto no artigo 65º, nº 1, da Constituição.
2. O Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 2 de Abril de 1998
(fls. 126 e seguintes), negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Pronunciando-se sobre a inconstitucionalidade suscitada pelos apelantes, decidiu o Tribunal da Relação do Porto:
'[...] ao proverem de modo equilibrado, o conflito de interesses entre o senhorio-proprietário (apelados), a quem concedem o poder de melhor rentabilizar o que de sua propriedade é, e o inquilino (apelantes), a quem atribuem deversificadas indemnizações mais o direito de ocupar o novo locado, as questionadas normas, solucionando de maneira adequada, justificada e proporcionada o litígio, não violam tal direito [o direito à habitação constante do artigo 65º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa]'.
3. MSB... e mulher vieram então interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artigos 69º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano
(R.A.U.), e dos artigos 1º, 3º e 5º da Lei nº 2088, por violação do disposto no artigo 65º, nº 1, da Constituição.
Nas suas alegações, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
'1ª - Ao permitir a denúncia do contrato e o despejo dos recorrentes sem que a estes esteja garantida uma habitação alternativa, por renda compatível com as suas possibilidades económicas, os artigos 69º, nº 1, al. b) do RAU e os artigos
1, 3 e 5 da Lei 2088 de 03-06-1957 são materialmente inconstitucionais por violarem o disposto no artigo 65º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
2ª - Esta norma é de aplicação imediata por força do disposto no nº 1 do artigo
18º do mesmo diploma fundamental.'
Por sua vez, os recorridos concluíram:
'O acórdão em crise e a interpretação que faz dos arts. 69º nº 1 b) do RAU e artigos 1, 3, 5 da Lei 2088 de 3-6-57 são materialmente constitucionais. Constituem aqueles preceitos o resultado, a nível legislativo, de uma colisão de direitos fundamentais (propriedade e habitação), resultado esse que ponderou devidamente o conteúdo e o núcleo essencial de cada direito, em respeito com o chamado Princípio da Concordância prática. Como bem considera o acórdão em crise, atendendo ao conteúdo do direito à habitação constante do art. 65º, nº 1 da CRP, à forma como é assegurado ao inquilino o direito a habitação depois da construção, bem como a várias indemnizações (e ainda à possibilidade do pagamento escalonado no tempo da nova renda), ao mesmo tempo como se reconhece ao senhorio a faculdade de rentabilizar a sua propriedade, as normas indicadas cuja inconstitucionalidade é arguida solucionam de maneira adequada, justificada e proporcionada tal conflito, e, por isso, não violam aquele direito constitucionalmente consagrado.'
II
4. O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do artigo 69º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, e dos artigos 1º, 3º e 5º da Lei nº 2088, de 3 de Junho de
1957.
É o seguinte o teor das normas impugnadas: Artigo 69º, nº 1, alínea b), do R.A.U.:
(Casos de denúncia pelo senhorio)
1 – Sem prejuízo dos casos previstos no artigo 89º-A, o senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou da sua renovação nos casos seguintes: a)[...]; b)Quando se proponha ampliar o prédio ou construir novos edifícios em termos de aumentar o número de locais arrendáveis.
2 – [...] Lei n.º 2088 Artigo 1º O senhorio pode requerer o despejo para o fim do prazo do arrendamento com fundamento na execução de obras que permitam o aumento do número de arrendatários, em conformidade com o projecto aprovado pela câmara municipal: a) Contra arrendatários de prédio urbano, a fim de proceder à sua ampliação, alteração ou substituição; b) [...].
§ único – Observar-se-á, em relação a cada inquilino, o regime estabelecido para a alteração ou para a ampliação do edifício, conforme as obras projectadas modifiquem ou não o local por ele ocupado.
Artigo 3º O despejo com o fundamento indicado no artigo 1º só é admissível se concorrerem os seguintes requisitos:
1º O número de locais arrendados ou arrendáveis deve aumentar num mínimo de metade, mas não poderá ficar inferior a sete em Lisboa e a quatro nas outras terras do País, não se contando para o efeito os locais tipo apartamento;
2º O edifício novo ou o alterado devem conter locais destinados aos antigos inquilinos, correspondendo aproximadamente aos que eles ocupavam; mas quando, por virtude da extensão ou importância destes últimos locais, a atribuição de outros, aproximadamente correspondentes, na obra em projecto, tornar esta economicamente inviável, será dado aos arrendatários o direito a reocupar até dois locais no edifício ou o de receber a indemnização estabelecida nesta lei, acrescida de percentagem, a fixar pelo tribunal, não superior a 50 por cento. Em qualquer caso, serão assinalados no projecto os locais destinados aos diversos arrendatários;
[...]
Artigo 5º O inquilino sujeito a despejo nos termos da alínea a) do artigo 1º terá o direito de:
1º - Reocupar as dependências que tinha no edifício simplesmente ampliado ou ocupar as que lhe são destinadas no edifício alterado ou construído de novo e receber, em qualquer dos casos, uma indemnização pela suspensão do arrendamento; ou
2º - Receber uma indemnização pela resolução do arrendamento.
§ 1º - A indemnização pela suspensão do arrendamento será igual a duas vezes a renda anual à data da sentença de despejo.
§ 2º - A indemnização pela resolução do arrendamento será igual a dez vezes a renda anual à data da sentença de despejo.
§ 3º - Aos montantes determinados nos termos dos parágrafos anteriores acrescerá um vigésimo por cada ano completo de duração do arrendamento até à sentença de despejo, com o limite máximo de vinte anos.
5. O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade suscitada no presente processo.
O acórdão nº 333/99 (ainda inédito), depois de descrever, nos seus traços essenciais, o regime do despejo para aumento do número de lugares arrendáveis, tal como resulta da legislação em vigor – e concretamente das normas questionadas neste processo –, e de definir o alcance do direito à habitação consagrado no artigo 65º da Constituição, ponderou:
'[...] o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é susceptível de conferir por si mesmo ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, que permita impor ao senhorio, no caso de precisar de denunciar o contrato de arrendamento quando necessitar de realizar obras no prédio para aumento do número de locais arrendáveis, a obrigação de fornecer ao inquilino uma habitação alternativa enquanto durarem as obras, se o arrendatário optar por permanecer no edifício renovado ou reconstruído. Daí que a lei, ao reconhecer o direito do senhorio de despejar o arrendatário com fundamento na execução de obras para aumento dos locais arrendáveis, tenha tutelado os direitos do arrendatário não só através do reconhecimento do direito a uma indemnização mas também do direito a (re)ocupar no edifício renovado ou reconstruído um espaço de habitação aproximadamente correspondente ao que antes ocupava. O direito à referida indemnização tem uma medida diferente consoante ela corresponde à resolução do contrato de arrendamento ou apenas à sua suspensão: quando o contrato cessa definitivamente, o seu valor é igual a dez vezes o valor da renda anual na data do despejo. Compreende-se a diferença entre este valor e o fixado no caso de despejo para habitação do senhorio: em ambos os casos existe um conflito entre o direito de propriedade do senhorio e o direito de habitação do inquilino; a indemnização no caso de despejo para a habitação do senhorio é de dois anos e meio de renda
(artigo 72º, n.º1 do RAU) e no caso de despejo para obras é de dez vezes o valor anual da renda (artigo 5º, n.º2, § 2º, da Lei n.º 2088), acrescido de um vigésimo do valor anual da renda até ao máximo de vinte anos (§ 3º do artigo 5º da Lei n.º 2088). Esta diferença justifica-se pelo facto de, no primeiro caso, o interesse do senhorio ser de natureza idêntica ao interesse do arrendatário e a preferência legal assentar certamente no facto de o seu direito à habitação se poder estribar no direito de propriedade, enquanto que o direito do arrendatário decorre do próprio contrato de arrendamento : perante uma tal situação, compreende-se que a indemnização seja de valor mais reduzido do que num caso em que o interesse do senhorio é meramente patrimonial – aumento do número de locais arrendáveis e maior rendimento da sua propriedade. Aqui, a resolução do contrato de arrendamento não pode deixar de ser mais fortemente penalizada pelo pagamento de uma maior indemnização. De forma similar, compreende-se a diferença do montante indemnizatório no caso de despejo «temporário», isto é, no caso em que o inquilino optou pela ocupação do local que lhe foi destinado no novo edifício ou no edifício renovado ou reconstruído, mas, por virtude das obras teve de ser despejado até poder ocupar aquelas novas ou renovadas instalações. Aqui, o valor da indemnização pelo despejo corresponde a duas vezes o valor da renda anual, acrescido de um vigésimo do valor da renda anual até ao máximo de 20 anos por cada ano completo de duração do arrendamento. Compreende-se que neste caso o valor indemnizatório de base seja inferior ao previsto para o caso de despejo para habitação do senhorio: trata-se de uma indemnização que visa reparar a privação temporária de habitação do inquilino; no caso de despejo para habitação do senhorio a privação é permanente. Sendo assim, justifica-se perfeitamente que a indemnização seja referida à renda paga no momento em que o despejo é decretado: com efeito, é a renda que representa, para ambas as partes do contrato, a contrapartida da concessão do direito de utilização do prédio, o valor económico e corrente do arrendado. Assim, as normas do artigo 69º, n.º1, alínea b) do RAU e dos artigos 1º, 3º, n.º2 e 5º da Lei n.º 2088, de 3 de Junho de 1957 não enfermam da inconstitucionalidade arguida.'
É essa jurisprudência que aqui se reitera. Pelos fundamentos constantes do acórdão referido – para os quais se remete –, reafirma-se que as normas questionadas no presente recurso não são inconstitucionais, pois não violam o direito à habitação consagrado no artigo 65º da Constituição.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 69º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, e dos artigos 1º, 3º e 5º da Lei nº 2088, de 3 de Junho de 1957;
b) negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz respeito à questão de constitucionalidade.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 29 de Setembro de 1999- Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa