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Proc. n.º442/99
1ª Secção Cons.º Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I – RELATÓRIO:
1. – L...,SA, L. R., A. R. e J. L. foram acusados no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, imputando-se aos arguidos pessoas singulares, a prática de vários crimes de abuso de confiança fiscal previstos e punidos no artigo 24º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras – RJIFNA - (4 crimes com referência ao artigo 91º do CIRS – falta de entrega do IRS relativo aos meses de Fevereiro, Março, Abril e Maio de 1996; 1 crime com referência aos artigos 40º, n.º1, alínea a) e 26º, n.º1 do CIVA – relativa à não entrega do IVA do mês de Março de 1996). À arguida pessoa colectiva foi assacada a responsabilidade pelos ilícitos imputados aos demais arguidos, tendo sido deduzido pedido cível de indemnização.
Após o julgamento, foi proferida a seguinte decisão:
'1º - Condenar o arguido L. R. como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº 24º, n.º 1, 2 e 5 do RJIFNA, com referência aos arts. 40º, n.º1, al. a) e 26º, n.º1 do CIVA e artº 91º do CIRS, na pena de 2 anos de prisão;
2º - Condenar o arguido J. L. como autor do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº 24º, n.º1, 2 e 5 do RJIFNA, com referência aos arts. 40º, n.º1, al. a) e 26º, n.º1 do CIVA e artº 91º do CIRS, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
3º - Condenar a arguida 'Sociedade L...,SA' pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº 24º, n.º1, 2 e 5 e artº 11º, cometido pelos seus representantes, em seu nome e no seu interesse, e por força do disposto no art. 7º do RJIFNA, na pena de 200 dias de multa à taxa de 10.000$00 por dia, o que perfaz a multa de 2.000.000$00;
4º - Condenar o arguido A. R., como autor do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº 24º, n.º 1, 2 e 4, do RJIFNA, com referência aos arts. 40º, n.º1, al. a) e 26º, n.º1 do CIVA e artº 91º, n.º1 do CIRS, na pena de 30 dias de multa à taxa de 1.000$00 por dia, o que perfaz a multa de 30.000$00, a que corresponde a prisão subsidiária pelo período de 20 dias'.
Os arguidos L. R. e J. L. e a sociedade L... foram condenados a pagarem solidariamente ao Estado a quantia de 5.658.028$00, acrescida de juros à taxa legal, desde 1 de Julho de 1998 e até efectivo pagamento e ainda na quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença, até ao montante de 8.595.806$00.
A pena de prisão aplicada aos arguidos L. R. e J. L. foi suspensa pelo prazo de três anos, com a condição de reporem ao Estado a quantia de 5.658.028$00, no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado.
2. – Os arguidos, inconformados com a decisão do Tribunal Colectivo da Comarca de Viseu, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tendo suscitado na respectiva motivação a questão de constitucionalidade do artigo 24º do RJIFNA, por violação do n.º1 do artigo 1º do Protocolo n.º4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artºs
8º, n.º2, e 27º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República.
O STJ, por acórdão de 20 de Maio de 1999, decidiu conceder provimento parcial ao recurso, fixando em dezoito meses o prazo para que os arguidos L. R. e J. L. reponham ao Estado a quantia em que foram condenados como condição de suspensão das respectivas penas.
Notificados desta decisão, os arguidos vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a conformidade à Lei Fundamental do artigo 24º do RJIFNA, que consideram violar o artigo 1º do Protocolo n.º4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(CEDH) e os artigos 8º, n.º2 e 27º, n.ºs 1 e 2 da Constituição.
Neste Tribunal, os recorrentes apresentaram alegações em que formularam as seguintes conclusões:
'1º - No caso dos autos está-se perante uma obrigação da arguida L.... em pagar ao fisco determinado montante de IVA.
2º - A entender-se que na previsão do artº 24º do RJIFNA se quis incluir este tipo de dívida, então tal norma viola frontalmente o disposto no artº 1º do protocolo 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que prescreve que ninguém pode ser privado da sua liberdade por não poder cumprir uma obrigação ou não pagar uma dívida.
3º - Tal norma vigora na ordem jurídica portuguesa (cfr. n.º2 do artº 8º da CRP) e não se encontra inquinada ou confrontada sequer com outros princípios constitucionais da CRP, nomeadamente, com os referidos no Acórdão recorrido, que nada tem a ver, de resto, com a questão dos autos.
4º - Terá, pois, de considerar-se (materialmente) inconstitucional a aludida norma, por ofensa do prescrito naquele protocolo e violação do n.º2 do citado artº 8º da CRP.
5º - Consequentemente, terá de ser dado provimento ao recurso, declarando-se aquela inconstitucionalidade, com as demais consequências legais.'
Também o Ministério Público apresentou alegações que conclui do seguinte modo:
'O artigo 24º do RJIFNA não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual
(direito á liberdade e à segurança do artigo 27º, n.º1 da Constituição).'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS:
3. – A questão que vem suscitada no autos reporta-se ao entendimento dos recorrentes que consideram a norma do artigo 24º do RJIFNA inconstitucional se nela se contiver a previsão de que meros devedores fiscais podem ser sancionados criminalmente, o que implicaria prisão por dívidas, em violação do preceituado no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à CEDH.
É o seguinte o teor da norma em questão:
'Artigo 24º
(Abuso de confiança fiscal)
1 – Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 – É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 250.000$00, o agente será punido com multa até 120 dias.
5 – Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5.000.000$00, o crime será punido com prisão de um até cinco anos.
6 – Para instauração do procedimento criminal pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação.'
Os devedores de rendimentos de trabalho dependente, os devedores de rendimentos de trabalho independente quando disponham ou devam dispor de contabilidade organizada, ou de rendimentos de capitais ou de rendimentos prediais são obrigados a deduzir o imposto segundo as percentagens legais colocando os quantitativos assim deduzidos ao dispor do credor tributário
– o Fisco – em prazos pré-fixados.
No caso do IVA, o apuramento do imposto devido é feito pela dedução do imposto suportado nas aquisições ao imposto liquidado nas transmissões que efectuam, devendo entregar nos cofres do Estado a diferença apurada.
De acordo com a norma do artigo 24º do RJIFNA, são elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal, a apropriação de prestação tributária, total ou parcial, pelo responsável pela entrega dos rendimentos tributários deduzidos e a não entrega do respectivo montante ao credor tributário, considerando-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar, nos casos em que a lei o preveja. Não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores do crime só podem ser punidos se praticados com dolo (artigo 13º do Código Penal); se não se provar o dolo mas apenas a negligência, pode praticar-se a contraordenação do artigo 29º, n.º2 do RJIFNA.
Pelo seu lado, o crime de abuso de confiança no Código Penal (CP) - artigos 205º a 207º - é um crime contra o património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa móvel alheia entregue por título não translativo de propriedade.
Segundo o entendimento defendido pelos recorrentes, a norma do artigo 24º do RJIFNA, se interpretada como abrangendo a obrigação de pagamento de dívidas por impostos ao Fisco, violaria o disposto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), enquanto estabelece que ninguém pode ser privado da sua liberdade por não poder cumprir uma obrigação ou pagar uma dívida.
Será assim?
4. – O artigo 1º do Protocolo nº 4 Adicional à CEDH estabelece o seguinte: 'ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual'.
Dos trabalhos preparatórios do referido Protocolo resulta que o que se proíbe no artigo 1º é a «prisão por dívidas» por que uma tal situação é contrária à noção de liberdade e de dignidade humanas. Com efeito, privar um indivíduo da liberdade só porque ele não dispõe de meios materiais de cumprir as suas obrigações contratuais contende com o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Porém, como se escreveu no Acórdão n.º 663/98 (in
'Diário da República', IIª Série, de 15 de Janeiro de 1999), que aqui se acompanha de perto, 'a privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual'.
Nestes casos e no caso de a impossibilidade de cumprir não ser devida a negligência, o direito penal pode prever tipos de crimes puníveis com prisão.
Contudo, aceite a existência de uma norma ou princípio que proíba a prisão pela simples razão da incapacidade de pagar uma dívida contratual, tal implica a proibição da existência de uma lei penal que, apenas com esse pressuposto, determine a prisão do devedor.
De facto, a tutela das obrigações contratuais do cidadão faz-se através das adequadas sanções no âmbito do direito privado. Na verdade, uma eventual prisão por dívidas viola os princípios da necessidade das restrições dos direitos fundamentais, designadamente, da pena (artigo 18º, n.º2) e da culpa (decorrente da dignidade da pessoa humana).
Mas, sempre que há violação de bens ou valores que, na perspectiva da culpa, mereçam uma especial reprovação, provocando mesmo justificado alarme social, então a prevenção de tais infracções exige o recurso
às sanções penais. A tutela penal, no âmbito de um Estado de direito material, de natureza social e democrático, deve intervir com os instrumentos próprios da sua actuação apenas quando se verifiquem lesões insuportáveis ou intoleráveis da vida em comunidade, por forma a não se permitir o livre desenvolvimento da pessoa.
Tem, pois, de considerar-se que a proibição de «prisão por dívidas» é princípio decorrente da Constituição da República Portuguesa (cf. Acórdão n.º 440/87, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', Vol. 10, 1987, pág. 521), sendo, porém, certo que entre nós sempre se entendeu que o princípio só se aplicava aos «devedores de boa fé», dele se excluindo os casos de provocação dolosa de incumprimento (cf. Acórdão n.º 663/98, já citado).
Por outro lado, as razões aduzidas para a proibição da
«prisão por dívidas» não se aplicam quando a obrigação não deriva de contrato mas da lei (ver, neste sentido e desenvolvidamente, o citado Acórdão n.º
663/98).
5. – No caso em apreço nos presentes autos, deve entender-se que a norma penal incriminadora do crime de abuso de confiança fiscal não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, princípio implicado no direito à liberdade e segurança (artigo 27º, n.º1, da Constituição).
Antes de mais, importa analisar os valores e os bens jurídicos em causa na criminalização das infracções fiscais.
O entendimento tradicional do nosso direito penal é o de que só certas formas de ofensas aos bens jurídicos tutelados que se revestem de particular gravidade, pelo alarme social que a sua prática justificadamente causa, necessitam da intervenção do direito penal, assim realizando o princípio constitucional da necessidade da pena.
No caso das infracções fiscais, a publicação em 1988 e
1989 dos Regimes Jurídicos dos imposto sobre o rendimento das pessoas singulares
(IRS), do imposto sobre os rendimentos das pessoas colectivas (IRC), da contribuição autárquica (CA) e do Estatuto dos Benefícios Fiscais induziu a reforma do tratamento normativo das infracções fiscais não aduaneiras, tendo o Governo pedido e obtido autorização da Assembleia da República para legislar em tal matéria, relativamente a todos os impostos, contribuições parafiscais e demais prestações tributárias e, bem assim, quanto aos benefícios fiscais.
A autorização concedida permitia ao Governo, em matéria penal, adaptar os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas do crime e as causas de suspensão do procedimento e da extinção da responsabilidade criminal, podendo tipificar novos ilícitos penais e definir novas penas, tomando como referência o Código Penal, mas podendo alargar ou restringir a respectiva dosimetria. Define-se, em seguida, o sentido da autorização através da definição dos tipos de ilícito e dos respectivos elementos do tipo, bem como dos valores máximos e mínimos das penas e coimas. Seguidamente, prevê-se na lei de autorização legislativa a adequação do processo penal aos novos tipos de ilícito
(penal e contraordenacional) criados.
A Lei de Autorização n.º89/89, de 11 de Setembro veio a dar origem ao Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, posteriormente alterado, na parte agora em causa, pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, aprovado na sequência da Lei n.º 61/93, de 20 de Agosto.
Este tratamento sistemático da punição das infracções fiscais não aduaneiras mostra bem o relevo que o legislador pretendeu atribuir à defesa dos interesses subjacentes a tal normação e cuja violação a mesma pretende evitar – os interesses da Fazenda Nacional.
Num Estado de direito, social e democrático, a assunção pelo Estado da realização do bem estar social, através da concretização de uma democracia económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdade fundamentais, legitima-se pela necessidade de garantir a todos uma existência em condições de dignidade.
A realização destas exigências não só confere ao imposto um carácter de meio privilegiado ao dispor de um Estado de direito para assegurar as necessárias prestações sociais, como também alarga o âmbito do que
é digno de tutela penal. A este respeito escreve Roxin 'A garantia das prestações necessária à existência (daseinsnotwendiger Leistungen) constitui tarefa tão legítima do Direito penal como a tutela de bens jurídicos' (in «Sinn und Grenzen staatlicher Strafe, Juristishe Schulung, 1966, pg. 381 e citado por Jorge Figueiredo Dias e Manuel Costa Andrade, 'O Crime de Fraude Fiscal no novo Direito Penal Tributário Português', in 'Revista Portuguesa de Ciência Criminal', Ano 6º, 1º, pág. 76).
De facto, um Estado para poder cumprir as tarefas que lhe incumbem tem de recorrer a meios que só pode exigir dos seus cidadãos. Esses meios ou instrumentos de realização das suas finalidade são os impostos, cuja cobrança é condição da posterior satisfação das prestações sociais. Compreende-se, assim, que o dever de pagar impostos seja um dever fundamental
(cf. Casalta Nabais, 'O dever fundamental de pagar impostos', Livraria Almedina,
1998, pág. 186,ss) e que a violação deste dever, essencial para a realização dos fins do Estado possa ser assegurado através da cominação de sanções criminais.
No caso em apreço, a obrigação em causa não é meramente contratual, mas antes deriva da lei – que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos em questão. Por outro lado, nestas situações, o devedor tributário encontra-se instituído em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário. Na verdade, no IVA e no imposto sobre os rendimentos singulares (IRS), os respectivos valores, são deduzidos nos termos legais, devendo depois o respectivo montante ser entregue ao credor tributário que é o Estado. Perante a norma em questão há assim que levar em conta este aspecto peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação contratual porque decorre da lei fiscal. Finalmente, relevar-se-á que a impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança fiscal; a não entrega atempada da prestação, torna possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do artigo
24º, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação. Tem assim de se concluir que a norma constante do artigo 24º do RJIFNA não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27º, nº 1, da Constituição, em consonância com o previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
III – DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido na parte impugnada.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta para cada recorrente.
Lisboa, 20 de Junho de 2000. Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa