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Processo nº 205/98
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Pelo despacho de 22 de Abril de 1996 do 10º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, de fls. 11, foram liminarmente indeferidos os embargos de terceiro deduzidos por T... no processo de execução, devidamente identificado nos autos, movido contra o marido, V... e outros pelo Banco N..., S.A., baseado numa letra aceite por aquele, no qual fora penhorada a casa de morada de família, bem comum do casal. No essencial, a embargante alegou que, não sendo o bem penhorado exclusivamente do executado, deveria ser também parte no processo de execução ou, então, haveria de ser citada para requerer a separação de bens, nos termos no nº 2 do artigo 825º do Código de Processo Civil, na redacção então vigente, 'o que não foi feito'. A rejeição baseou-se, fundamentalmente, na falta de alegação e prova da data em que a embargante teve conhecimento da realização da penhora, uma vez que os embargos foram deduzidos mais de vinte dias volvidos sobre essa realização
(artigo 1039º do Código de Processo Civil, em vigor na altura); mas, acrescenta o despacho, sempre improcederiam, por um lado, por não haver lugar à moratória prevista no nº 1 do artigo 1696º do Código Civil, na versão vigente na altura, porque 'nos termos do art. 17º da Lei Uniforme de Letras e Livranças(...)não pode o executado(...) vir a alegar que a letra dada à execução é uma letra de favor(...), assim como não pode a aqui embargante vir invocar esse facto para afastar o proveito comum do casal' e, por outro, porque ainda não tinha chegado o momento de a embargante ser citada para pedir a separação de bens. Inconformada, a embargante recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, pelo despacho de fls. 54, confirmado pelo acórdão de fls. 61, de 5 de Junho de
1997, embora pronunciando-se no sentido de os embargos terem sido deduzidos em tempo, julgou 'findo o recurso, pelo não conhecimento do seu objecto, nos termos do art. 700º nº 1 al. e) do CPC, por força dos arts. 4º e 27º do DL 329-A/95 de
12/12', que mandam aplicar às causas pendentes a nova redacção dada por este diploma ao artigo 1696º do Código Civil, que eliminou a moratória forçada invocada pela embargante. Para o efeito, o Tribunal da Relação de Lisboa desatendeu a alegação de inconstitucionalidade do citado artigo 27º do Decreto-Lei 329-A/95, constante da resposta de fls. 46, por violação 'do princípio do duplo grau de jurisdição que enforma a Constituição da República' e do 'artº 20º da Constituição da República, na justa medida em que impede à ora embargante o acesso ao direito e aos tribunais', por não ter tomado 'em conta as dimensões inerentes ao princípio da não retroactividade'. De novo recorreu a embargante, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, que julgou procedente o recurso. Considerando inconstitucional 'o disposto no artº
27º do Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, aditado pelo Dec.-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro (...) seja enquanto legislou em matéria de reserva relativa da Assembleia da República sem a necessária autorização (artº 168º, nº 1, al. b), com referência ao artº 67º, nº 1, al. a), seja enquanto veio diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial de um direito social (artº 18º, nº 3, terceiro segmento, com referência ao artº 67º, nºs 1 e 2, al. a), seja enquanto atribuiu efeito retroactivo a uma lei restritiva de um direito social [artº 18º, nº 3, segundo segmento, com referência ao artº 67º, nºs 1 e 2, al. a)], tudo com ofensa dos princípios do Estado de direito democrático e da confiança dos cidadãos face ao poder legislativo, ínsitos no artº 2º, todos estes artigos da Constituição da República'. Assim recusou a aplicação do artigo 27º do Decreto-Lei nº 329-A/95 e concedeu provimento ao recurso, determinando que o Tribunal da Relação de Lisboa, 'se possível, conheça do objecto do agravo que deixou de conhecer'.
2. Recorreu então o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
'na justa medida em que (o acórdão recorrido) julgou ferido de inconstitucionalidade orgânica e material o artigo 27º., do DL nº 329-A/95, de
12 de Dezembro (aditado pelo artigo 6º., do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro), cuja aplicação, consequentemente, recusou'. O recurso foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça. Notificado para alegar, o Ministério Público veio, em síntese, sustentar que estava fundamentalmente em causa uma questão de aplicação no tempo de uma lei processual, uma vez que o objecto do recurso se circunscreve à questão da eventual inconstitucionalidade 'da norma de direito transitório especial constante do artigo 27º do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro (na redacção emergente do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro), decorrente da nova redacção dada ao artigo 1696º, é imediatamente aplicável, mesmo no âmbito das execuções já pendentes à data da entrada em vigor da reforma do processo Civil, operada por aqueles diplomas legais'. Dubitativamente, coloca a hipótese de se ter de considerar restrito o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Supremo Tribunal de Justiça ' se e enquanto o bem comum penhorado fosse a própria casa de morada de família'. Parece optar pela solução afirmativa, embora refira que, na decisão, não figura 'tal especificação ou concretização', atendendo à justificação apresentada ao longo do acórdão. Assim delimitado o objecto, o Ministério Público afasta, quer a inconstitucionalidade orgânica, quer a inconstitucionalidade material. Quanto à primeira, não ocorre 'já que uma norma com a estrutura da desaplicada neste processo – de natureza estritamente procedimental e assumindo-se como disposição de direito transitório especial, vigente apenas no domínio do direito adjectivo – nunca poderia situar-se no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República. (...) a regulação do processo civil executivo situa-se inteiramente no âmbito da competência legislativa concorrente da Assembleia da República e do Governo'. Quanto à segunda, resumindo, o Ministério Público contesta a aplicabilidade do regime definido pelo artigo 18º da Constituição para as 'restrições legalmente instituídas relativamente aos direitos sociais, estabelecidos nos artigos 63º e seguintes da Lei Fundamental', nomeadamente para 'o ‘direito social’ previsto no artigo 67º, nº 2, alínea a) da Constituição da República Portuguesa', que 'não goza do nível de ‘densificação constitucional’ que lhe permita – enquanto norma directamente aplicável às relações jurídicas entre particulares – reger sobre o regime da responsabilidade pelas dívidas dos cônjuges, hierarquizando o interesse na dependência económica do agregado familiar e o legítimo interesse do credor em ver efectivada a garantia da relação creditória validamente constituída'. Por outro lado, discorda de que a norma em questão viole o princípio da confiança e importe uma 'aplicação retroactiva do novo regime de efectivação da responsabilidade dos bens que integram a meação dos cônjuges' que se afaste do regime geral definida no Código Civil pelo artigo 12º, ou do princípio geral, vigente no Processo Civil, da aplicação imediata da lei nova. Conclui, assim, as suas alegações manifestando-se no sentido da procedência do recurso. A recorrida não contra-alegou.
3. Cabe começar por definir, com rigor, o objecto do presente recurso, fundado na recusa de aplicação 'do artigo 27º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro (aditado pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro)', como se lê no requerimento de interposição de recurso. Este preceito tem a seguinte redacção: Artigo 27º Moratória forçada
É aplicável nas causas pendentes à data da entrada em vigor deste diploma a nova redacção introduzida no artigo 1696º do Código Civil. Pelo artigo 4º do mesmo Decreto-Lei 329-A/95, que entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 1997, o nº 1 do artigo 1696º do Código Civil passou a ter a seguinte redacção:
'1. Pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns'. Suprimiu-se, assim, a parte final deste preceito, que acrescentava: 'neste caso, porém, o cumprimento só é exigível depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens'. Segundo o texto incial do Decreto-Lei nº 329-A/95, a nova redacção – ou seja, a supressão da moratória forçada, como se sabe – só era aplicável aos processos iniciados após a sua entrada em vigor. O Decreto-Lei nº 180/96, todavia, veio acrescentar-lhe o artigo 27º já transcrito, pretendendo, assim, o legislador que o regime atingisse mesmo as acções já propostas (sobre a alteração fundamental de perspectiva no que toca à aplicação aos processos pendentes da versão revista em 1997 do Código de Processo Civil, ver ARMINDO RIBEIRO MENDES, As disposições transitórias dos diplomas da reforma do Processo Civil, Lex, s/ data, em especial págs. 21 e segs. e 28-29). Ora o recorrente, o Ministério Público, apenas impugna a recusa de aplicação da norma de direito transitório especial, contida no artigo 27º; não está, pois, em causa, neste recurso, o novo regime substantivo, decorrente da actual redacção do citado nº 1 do artigo 1696º do Código Civil. Ou seja: como salienta o Ministério Público nas suas alegações, não se pode agora discutir a conformidade constitucional da supressão da moratória forçada, nos termos já referidos, mas, tão somente, a da norma que a manda aplicar às execuções instauradas antes da entrada em vigor do diploma que a suprimiu, como
é o caso da execução que deu origem ao presente recurso. Em conclusão, constitui objecto do presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade a norma segundo a qual se aplica às execuções instauradas antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro (1 de Setembro de 1997) a supressão da moratória forçada constante da parte final da redação anterior do nº 1 do artigo 1696º do Código Civil. Não se considera limitado o objecto à hipótese de ter sido penhorada a casa de morada de família. Nada na decisão permite fazer essa restrição; mesmo recorrendo à fundamentação para fixar o seu alcance, verificamos que só quando define o que considera o 'núcleo essencial' do direito consagrado na al. a) do nº 2 do artigo 67º da Constituição é que o identifica com a protecção da casa de morada da família. A ausência de justificação semelhante para os outros motivos de inconstitucionalidade, na decisão do Supremo Tribunal de Justiça, bem como a falta de referência à tutela constitucional do direito à habitação, não permite tal restrição no objecto deste recurso. Não é, aliás, evidente a restrição do objecto nas alegações de recurso – veja-se, em especial, a conclusão 3ª das alegações. Finalmente, torna-se necessário justificar a utilidade do julgamento deste recurso, pois não está decidido, diferentemente do que sucedia no caso julgado pelo acórdão nº 559/98 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Novembro de 1998, que, à luz do Direito anterior, houvesse lugar
à moratória forçada. É questão não julgada, ainda; todavia, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa considerados tempestivos os embargos de terceiro deduzidos pelo cônjuge do executado, releva para a decisão a proferir nesses embargos o juízo que vier a ser proferido sobre o presente recurso.
4. Cabe, seguidamente, afastar a natureza meramente processual da norma que constitui o objecto do presente recurso, que lhe atribui o recorrente, para nela fundamentar a não inconstitucionalidade. Mais do que saber, aliás, se a norma deve ser qualificada como de direito substantivo ou processual, releva determinar qual a repercussão que tem nos direitos das partes numa execução. E, vista deste prisma, não podemos deixar de concluir que não é neutra ou indiferente a sua aplicação; não é só a forma de proceder à execução que está em causa, sendo intocada a situação substantiva dos interessados; muito diferentemente, esta situação é, do ponto de vista material, afectada. O exequente vê alargada – porventura de forma decisiva – o âmbito dos bens que pode imediatamente fazer penhorar e vender para se pagar; o executado, bem como o seu cônjuge (ou, em geral, a sua família), vê o seu património – e, eventualmente, um bem que merece do Direito uma protecção especial em muitos aspectos, a casa de morada de família – imediatamente atacado, não obstante subsistir a família que a versão inicial do nº 1 do artigo 1696º do Código Civil pretendia proteger, contra o interesse do credor. Não pode, pois, resolver-se a questão da constitucionalidade, quer orgânica, quer material, da norma agora em apreciação sustentando a sua natureza meramente processual. Quando a doutrina formula, como princípio geral relativo à aplicação no tempo das leis de processo, a regra da sua aplicação imediata, ou seja, às acções pendentes, fundamenta-a (sobretudo) no carácter instrumental da lei de processo, ou seja, na circunstância de a lei de processo não afectar a situação material das partes; e afasta-a, justamente, quando essa 'neutralidade' não ocorre (como, por exemplo, quanto às normas sobre admissibilidade de recursos, ou sobre provas). É, aliás, diga-se a terminar, pelo menos discutível que a distinção faça sentido para as normas de direito transitório, que apenas definem qual o direito aplicável no tempo. Como escreve BAPTISTA MACHADO, a propósito do alargamento das excepções à moratória forçada, operado pelo Código Civil de 1966 através do nº 3 do artigo
1696º, 'a simples qualificação processual dos preceitos em causa não resolve o problema. (...) Primeiramente, porque embora seja verdade que o legislador (...) recorre a um meio técnico próprio do direito de processo, também o é que o interesse ou a finalidade visada através desse meio transcende os fins próprios do ordenamento processual. Como escrevem os Profs. Pires de Lima e Braga da Cruz, ‘a moratória em causa é estabelecida em benefício dos cônjuges, já que se impõe a afectação de bens comuns ao sustento da sociedade conjugal’. (...) Sobre este aspecto material ou intrínseco, a disposição referida [o artigo 1696º do Código Civil] tem carácter substantivo. (...) Em segundo lugar, (...) porque há várias disposições às quais se pode atribuir um carácter técnico-processual e que, no entanto, não têm aplicação imediata. Tais as normas relativas às presunções legais, à pré-constituição do prova ou ao onus probandi, cuja aplicação é susceptível de pôr em causa o próprio direito litigado (...)' (Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, 1968, pág. 11 e segs., em especial pág. 21-22).
5. Feitas estas observações, há que julgar o objecto do presente recurso. E a verdade é que, embora se não acompanhem os fundamentos do recorrente, na medida em que parte da natureza (que considera) processual da norma em questão para concluir pela não inconstitucionalidade, entende-se não incorrer a norma impugnada no vício da inconstitucionalidade. No acórdão nº 559/98 deste Tribunal, atrás citado, julgou-se 'inconstitucional – por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República – a norma que se extrai da conjugação do artigo 27º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro
(acrescentado pelo DL nº 180/96, de 25 de Setembro) com o artigo 1696º, nº 1, do Código Civil (na redacção introduzida por aquele Decreto-Lei nº 329-A/95), interpretada no sentido de que a penhora de bens comuns do casal, feita numa execução instaurada contra um só dos cônjuges, para cobrança de dívidas por que só ele era responsável, contra a qual o cônjuge do executado tinha deduzido embargos de terceiro, que a 1ª instância e a Relação julgaram procedentes, em virtude de a execução estar, na altura, sujeita a moratória, passou a ser válida, desde que o exequente, ao nomear tais bens à penhora, tivesse pedido a citação desse cônjuge para requerer a separação de bens'. Saliente-se, em primeiro lugar, que a ratio do juízo de inconstitucionalidade feito no acórdão nº 559/98 não ocorre aqui. Desde logo, a circunstância de não constituir objecto do recurso a norma decorrente da conjugação entre o artigo
27º do Decreto-Lei nº 329-A/95 e a nova redacção do nº 1 do artigo 1696º do Código Civil, o que obriga a não questionar a constitucionalidade do novo regime substantivo definido por este último preceito, mas tão somente a sua aplicação
às acções pendentes, torna os recursos substancialmente distintos. Na verdade, no acórdão citado a inconstitucionalidade partiu da consideração conjunta dos dois preceitos, e os argumentos apontados para justificar que o cônjuge embargante, embora citado para requerer a separação de bens, o não tenha feito, por contar com a protecção, mais forte, da moratória, assentam na configuração do regime substantivo então vigente; por outro lado, a consideração, decisiva na fundamentação do acórdão, de que violaria o princípio da confiança a validação retroactiva de uma penhora ilegal feita num quadro legal diferente do resultante da alteração da lei, não podendo o embargante contar com este, também aqui não colhe, porque é sempre ao quadro legal substantivo que se refere. No caso presente, da aplicação da lei nova não resulta a validação de qualquer penhora já julgada ilegal; e, sobretudo, a embargante ainda vai ser citada para requerer, se assim o entender, a separação de bens, tendo então a oportunidade para defender do alcance da penhora a casa de morada da família. A impossibilidade de o fazer foi julgada de importância vital para o juízo de inconstitucionalidade formulado no acórdão nº 559/98.
6. Assim, e contrariamente ao julgado no acórdão recorrido, entende-se que o artigo 27º do Decreto-Lei nº 329-A/95 não sofre de inconstitucionalidade orgânica. Tal juízo assentou na conjugação do disposto no (então) artigo 168º, nº 1, b) (texto aqui relevante), correspondente à mesma alínea do nº 1 do actual artigo 165º da Constituição, conjugado com o nº 1 e a al. a) do nº 2 do artigo
67º, que atribui ao Estado a incumbência de promover a independência social e económica das famílias. Para o efeito, o Supremo Tribunal de Justiça teve de equiparar o direito
(social) aqui consignado aos 'direitos, liberdades e garantias', nos termos previstos no artigo 17º da Constituição. Essa equiparação não pode, todavia, ser feita; como este Tribunal já teve ocasião de se pronunciar a respeito de um direito, no que aqui releva, semelhante (Acórdão nº 131/92, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 21º, pág 505 e segs.), 'o ‘direito à habitação’, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais (...) são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada ‘reserva do possível’ (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais [cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365,e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - 'Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia' - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.] O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cfr. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205,209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo. O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo -- e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei (...). Ora, é perfeitamente legítimo, sob o ponto de vista constitucional, que, na hipótese de colisão entre aqueles dois direitos à habitação - um (o do senhorio) alicerçado no direito fundamental de propriedade privada, com assento na Constituição, e outro (o do arrendatário) baseado no contrato -, o legislador dê primazia ao do senhorio.' Estas mesmas considerações, retomadas, para o direito à habitação, pelo Acórdão nº 151/92, publicado igualmente em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
21º, pág. 647 e segs., são, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, transponíveis para o direito tutelado pelo nº 1 e pelo nº 2, a) do artigo 67º da Constituição. Cabe ao legislador harmonizar, por um lado, o direito à independência económica das famílias e, por outro, o interesse dos credores na cobrança efectiva dos seus créditos. Não cai, portanto, no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República a norma que constitui o objecto do presente recurso; não existe, pois, inconstitucionalidade orgânica. Diga-se, a terminar, que a circunstância de a Lei nº 33/95, de 18 de Agosto, na sequência da qual veio a ser aprovado o Decreto-Lei nº 329-A/95 (embora o Governo tenha invocado, simultaneamente, a sua competência legislativa concorrente com a da Assembleia da República), ter autorizado o Governo a
'alterar o Código Civil, eliminando a moratória forçada prevista no nº 1 do artigo 1696º e adequando a lei de processo a tal alteração' (al. b) do artigo
8º) não tem obviamente, a virtualidade de alterar a repartição constitucional da competência legislativa. Não é, pois, argumento a falta de autorização para fazer aplicar o novo regime às acções pendentes, como julgou o Supremo Tribunal de Justiça.
7. A mesma impossibilidade de equiparação do direito tutelado pelo nº 1 e pela al. a) do nº 2 do artigo 67º da Constituição aos 'direitos, liberdades e garantias' justifica o afastamento da inconstitucionalidade material apontada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 27º do Decreto-Lei nº 329-A/95, sem necessidade de maiores desenvolvimentos.
8. A terminar, cabe referir que, de qualquer forma, não se tem aqui como violado o princípio da confiança. Poder-se-ia efectivamente, colocar o problema de saber se a aplicação do regime de eliminação da moratória forçada aos casamentos contraídos na vigência desse regime ou, pelo menos, às dívidas constituídas por um dos cônjuges, da sua exclusiva responsabilidade, anteriormente ao novo regime (isto é, na vigência da anterior redacção do nº 1 do artigo 1696º do Código Civil) não o afrontaria, lesando-o de tal forma que se pusesse em causa o princípio do Estado de Direito, que o fundamenta. Complementarmente, poder-se-ia ainda observar que não existiriam expectativas a tutelar por parte dos credores, que contrataram num quadro legal que incluía a moratória agora eliminada. Ora a verdade é que a resposta tem de ser negativa. Independentemente da justificação apresentada no preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95 de que a moratória forçada se traduzia num 'injustificado privilégio', uma vez que não é admissível questionar neste recurso a constitucionalidade da eliminação em si mesmo considerada, vejamos se atenta contra o princípio da confiança a sua aplicação aos processos pendentes. Só esse ponto está em causa, porque é o que consta da norma impugnada; assim, e apesar das observações atrás feitas sobre a relevância substancial da alteração, há que tomar em consideração a situação dos intervenientes num processo executivo iniciado anteriormente a 1 de Janeiro de 1997 em que, eventualmente, pudesse haver lugar à aplicação do regime da moratória forçada, como sucede no caso presente. E a verdade é não podemos deixar de concluir, por um lado, pela inexistência de uma razão sistemática para fazer prevalecer os interesses da família do executado sobre os do exequente, que (não é obviamente a hipótese dos autos) também pode ter uma família, cuja estabilidade económica também carece de ser protegida; e, por outro, pela observação de que, se ao cônjuge do executado for dada a possibilidade de requerer a separação de bens, nos termos previstos do nº 1 do artigo 825º do Código Civil, não é possível afirmar que a sua situação seja prejudicada de forma constitucionalmente insuportável, ainda que o bem penhorado seja a casa de morada da família. Há regras próprias para a sua tutela, no direito ordinário; e uma forma de a proteger pode, exactamente, ser a via da partilha alcançada pela separação de bens, subtraindo-a, assim à acção dos credores. Não vem agora, ao caso, analisar as diversas formas como o direito ordinário protege a casa de morada de família, no contexto do património familiar; essa tutela não é, aliás, compreensivelmente, restrita às hipóteses em que a casa é propriedade dos cônjuges, abrangendo também por exemplo, o caso de ser apenas arrendada. Ora, no caso concreto, a embargante ainda não foi – há-de sê-lo, conforme se diz na decisão da primeira instância, que rejeitou liminarmente os embargos – citada para requerer a separação de bens. Não existe, assim, violação do princípio da confiança, capaz de fundamentar um juízo de inconstitucionalidade material do artigo 27º do Decreto-Lei 329-A/95. Assim, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma, constante do artigo 27º do Decreto-Lei
329-A/95, de 12 de Dezembro, segundo a qual se aplica às execuções instauradas antes da sua entrada em vigor a supressão da moratória forçada constante da parte final da redacção do nº 1 do artigo 1696º do Código Civil anterior à alteração resultante do artigo 4º do mesmo Decreto-Lei nº 329-A/95; b) Julgar procedente o recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade. Lisboa, 21 de Setembro de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida