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Proc. nº 683/97
1ª Secção Relator: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – L..., com os sinais dos autos, recorreu para o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa do despacho do General Director do Departamento de Finanças que lhe indeferiu a pretensão de ser abonado com a remuneração correspondente a dois dias e meio por cada mês completo de serviço prestado por si no ano em que passou à reforma e com a remuneração correspondente a cinco dias de férias não gozadas por motivo de serviço, ao abrigo do disposto, respectivamente, nos nºs.
1 e 2 do artigo 15º do DL nº. 497/88, de 30 de Dezembro.
O recurso foi provido com fundamento na violação do artigo 15º do DL nº. 497/88, vício que inquinaria aquele despacho.
O autor do acto contenciosamente impugnado recorreu desta sentença para o Supremo Tribunal Administrativo e aqui obteve ganho de causa com o Acórdão de fls. 82 e segs. que julgou não aplicável ao caso os citados nºs. 1 e 2 do artigo
15º do DL nº. 497/88.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da Lei nº. 28/82.
Nas suas alegações, o recorrente L..., formula as seguintes conclusões:
a. O recorrente, Coronel de infantaria na situação de reserva solicitou que lhe fosse aplicado o disposto no nº. 1 (por manifesto lapso omitiu-se 'do art.
15º') do Decreto-Lei 497/88, de 30 de Dezembro.
b. A entidade recorrida indeferiu esse pedido, alegando que esse diploma não tem aplicação ao recorrente e que o Decreto-Lei em causa só é aplicável aos agentes civis da Administração Pública e não aos agentes militares.
c. A verdade é que os únicos pressupostos para a aplicação do diploma em causa são a cessação definitiva de funções e a prestação de serviço efectivo prestado no ano em causa – onze meses no caso do recorrente – factos que o despacho recorrido não negou.
d. A norma do nº. 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº. 497/99, a ser assim interpretada, a interpretação terá de ser considerada não conforme, com a Constituição, designadamente com os artigos 13º e 270º da Constituição.
e. Foram assim violados os artigos 13º, nº. 2 e 270º da Constituição.
f. Tendo a norma do artigo 15º nº. 1 do Decreto-Lei nº. 497/88, de 30 de Dezembro sido interpretada e aplicada com esse condicionalismo mostra-se afectada de inconstitucionalidade material. Em contra-alegações, conclui, por seu turno, a entidade recorrida: a. A norma do nº. 1 do artigo 15 do Decreto-Lei nº. 497/88 foi interpretada e aplicada no respeito pelos princípios constitucionais elencados. b. Como se tentou provar, é intenção do legislador que todo o Decreto-Lei seja exclusivamente aplicado a funcionários civis e, portanto, também o seu artigo 15º. c. Na matéria relativa a férias e subsídio de férias existem duas regulamentações legais – uma para civis, outra para militares. d. Não pode, pois, considerar-se inconstitucional um Acórdão que respeita o princípio negativo do controlo, aplicando tratamento diferente a situações de facto diferentes, em consonância com a intenção do legislador. e. Donde, inexiste violação dos artigos 13º e 270º da CRP. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Em vão se procura no acórdão recorrido uma qualquer pronúncia sobre a constitucionalidade do artigo 15º nº. 1 do DL nº. 497/88. Nele efectivamente aplicada a norma ínsita no citado preceito, a questão da constitucionalidade, suscitada pelo recorrente logo no recurso interposto para o TAC de Lisboa, não foi apreciada pelo STA nos termos equacionados pelo impugnante. Na verdade, o acórdão do STA conheceu da questão como alegação de vício de violação de lei constitucional do acto recorrido, ou seja como imputação ao próprio acto de uma violação directa da Constituição. E foi assim que o acórdão recorrido, fundado em que o acto administrativo só pode, ele próprio, violar o princípio da igualdade no domínio dos poderes discricionários, julgou o despacho em causa isento de um tal vício, por ter sido proferido no âmbito de poderes vinculados. Impunha-se, no entanto, que conhecesse da constitucionalidade da norma – como fora alegado – daí podendo então resultar, se ela fosse julgada inconstitucional, um vício de violação de lei, por ter que se recusar a aplicação da mesma norma com a interpretação que lhe fora dada e fundamentara o conteúdo dispositivo de indeferimento do despacho contenciosamente recorrido. Nada obsta, porém, ao conhecimento do objecto do recurso já que a questão de constitucionalidade da norma do artigo 15º nº. 1 do DL 497/88, interpretada no sentido de que não abrange o pessoal militar, foi suscitada pelo recorrente em
1ª instância (artigo 23º da petição de recurso contencioso e conclusão j) das alegações) bem como no recurso interposto para o STA (contra-alegações do recorrido – conclusão j)); por outro lado aquela norma foi aplicada no acórdão recorrido, constituindo a não subsunção dos factos ao seu conteúdo prescritivo a razão fundamental do julgado.
3 – A questão da constitucionalidade que se controverte no presente recurso reporta-se, como se disse, à norma ínsita no artigo 15º nº. 1 do DL nº. 497/88, com a epígrafe 'Férias em caso de cessação definitiva de funções' e cujo texto é o seguinte:
'1 – No caso de cessação definitiva de funções, o funcionário ou agente tem direito a receber a remuneração relativa a dois dias e meio por cada mês completo de serviço efectivo prestado nesse ano e o subsídio de férias proporcional.
2 –
...................................................................................................................
3 –
...................................................................................................................' Na tese do recorrente, esta norma, na interpretação dada no acórdão recorrido – o âmbito de aplicação da norma não abrangeria o pessoal militar – infringe o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP, estabelecendo uma diferenciação arbitrária, sem fundamento material, entre o pessoal civil e o pessoal militar da Administração Pública. Vejamos se assim é. A norma em causa integra-se num diploma que, segundo o seu preâmbulo, responde à
'necessidade de codificar e modernizar o regime de férias, faltas e licenças dos funcionários e agentes da Administração Pública, aproximando-se, na medida do possível, do regime em vigor no sector empresarial'. De facto, a norma do artigo 108º que enuncia os preceitos e diplomas revogados pelo DL nº. 497/88 é só por si elucidativa da dispersão legislativa que até então se verificava na matéria. De salientar, desde já, que nenhum desses preceitos e diplomas definiu especificamente para o pessoal militar o regime de férias, faltas e licenças, que era objecto de outros diplomas, como a seu tempo se verá. A norma referida tinha um antecedente no artigo 16º nº. 1 do DL nº. 496/80, de
30 de Julho que, integrado no capítulo epigrafado de 'Subsídio de férias', dispunha que os funcionários e agentes que cessassem definitivamente funções teriam direito a receber com o seu último vencimento, o subsídio de férias correspondente ao período de férias vencido nesse ano (se ainda o não tivessem recebido) e o subsídio de férias correspondente aos meses de serviço completos prestados no ano da cessação, de montante equivalente a dois dias e meio de remuneração por cada mês de serviço. O subsídio de férias foi criado para os 'servidores do Estado na efectividade de serviço' pelo DL nº. 372/74, de 20 de Agosto, não parecendo que dele se excluísse o pessoal das forças armadas (quando era caso disso, o legislador expressara-o – v.g. art. 4º al. a)). Na verdade, porém, é que logo em 30 de Setembro e para produzir efeitos, quanto ao abono de remunerações, em 1 de Julho, o DL nº. 498-E/74 veio prever a atribuição de um subsídio de férias 'aos militares na efectividade de serviço'
(art. 5º a 7º), em moldes em tudo idênticos aos que constavam dos artigos 8º a
9º do DL 372/74. Um ano depois, novo diploma específico para os militares – o DL nº. 329-E/75 de 30 de Junho – veio regular o subsídio de férias em termos idênticos ao que o DL 294/75 (artigo 8º) estabelecera para o pessoal civil. Pelo já citado DL nº. 496/80 foi de novo regulada a atribuição do subsídio de férias 'ao funcionalismo público'. Mas novo diploma – o DL nº. 57/81 de 31 de Março, exclusivamente aplicável ao pessoal militar - justificado por o DL nº. 329-E/75, suposto ainda em vigor, não prever a situação então disciplinada, estabeleceu uma regra para a atribuição de subsídio de férias aos militares que, por passarem à situação de disponibilidade, deixassem a efectividade de serviço (artigo único). Até à publicação do DL nº. 497/88, nenhum diploma exclusivamente aplicável ao pessoal militar reproduziu o que o artigo 16º nº. 1 do DL 496/80 estabelecera em matéria de subsídio de férias nos casos de cessação definitiva de funções. O que se observa nesta área particular do estatuto do pessoal militar não é diverso do que em geral se verifica na regulamentação de outros aspectos – designadamente de carácter remuneratório – do mesmo estatuto: a publicação de diplomas próprios para o pessoal militar, mesmo nos casos em que a disciplina jurídica pouco ou nada diverge da que vigora para a generalidade dos servidores do Estado, como p. ex. foi o caso já referido dos DL nºs. 372/74 e 498-E/74 e dos DL 294/75 (artigo 8º) e 324-E/75. A justificação deste procedimento parece óbvia: a especificidade do estatuto do pessoal militar, inevitavelmente afeiçoado ou determinado pelo tipo de funções que constitucional e legalmente estão cometidas às forças armadas, no seio de uma organização com estrutura própria e sem paralelo com a dos restantes servidores do Estado. Revela-o a Lei nº. 11/89, de 1 de Junho, que aprovou as 'bases gerais do estatuto da condição militar' e onde no seu artigo 2º se caracteriza a 'condição militar' 'pela subordinação ao interesse nacional' (a)), 'pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida' (b)), 'pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra' (c)), 'pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei' (d)), 'pela aplicação de um regime disciplinar próprio' (e)), 'pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais' (f)), 'pela restrição, constitucionalmente prevista, do exercício de alguns direitos e liberdades'
(g)), ' pela adopção, em todas as situações, de uma conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e valorização moral das forças armadas' (h)), 'pela consagração de especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação' (i)). Esta caracterização exigia a aprovação de um corpo único e coerente de normas que definisse um novo regime estatutário do pessoal militar, codificando ao mesmo tempo as normas (mantidas ou alteradas) que se dispersavam em inúmeros diplomas. Foi o que sucedeu com a publicação do DL nº. 34-A/90, de 24 de Janeiro que aprovou o Estatuto dos Militares das Forças Armadas. No que ao caso importa, nele são definidos deveres e direitos (de natureza remuneratória e outros) dos militares do quadro permanente – Cap. II, Titulo I, Livro II – remetendo, com frequência, para os 'termos fixados em legislação própria' ou em 'legislação especificamente aplicável'. E é assim que no artigo 124º se dispõe que 'o militar do QP tem, nos termos definidos em legislação própria, direito a remuneração adequada à especificidade, exclusividade e relevo do serviço que presta, de acordo com o posto, o tempo de permanência deste, as aptidões, os cargos exercidos e as funções desempenhadas'. Prevista igualmente a licença para férias e definido o seu regime no artigo
101º, nada porém se estabelece sobre a atribuição de remuneração ou subsídio idênticos, ou sequer semelhantes, aos que o artigo 15º nº. 1 do DL 497/88 consagrara, sendo certo que da longa lista de diplomas expressamente revogados pelo artigo 48º do DL nº. 34-A/90 não consta o supra citado DL nº. 329-E/75. No que concerne ao regime remuneratório aplicável aos militares e na sequência da publicação do DL nº. 184/89, de 2 de Junho, que reformou o sistema retributivo da função pública e em que os militares dos três ramos das forças armadas são integrados 'em consequência do reconhecimento de realidades específicas' em 'corpo especial', foi publicado o DL nº. 57/90, de 14 de Fevereiro. De acordo com o respectivo preâmbulo, o modelo remuneratório 'traduz-se na criação de soluções retributivas próprias, sem prejuízo dos princípios gerais estabelecidos'. Feito este breve excurso, é agora o momento de afrontar a suscitada questão de constitucionalidade reportada à norma do artigo 15º nº. 1 do DL nº. 497/88, na interpretação dada ao acórdão recorrido, interpretação essa que, no estrito plano da normação infraconstitucional em que se situa, escapa, em princípio, ao juízo critico deste tribunal. A questão é, pois, a de saber se viola o princípio da igualdade a não atribuição ao pessoal militar dos subsídios e remuneração conferidos pela norma em causa que, segundo o aresto recorrido, se aplica exclusivamente aos demais funcionários e agentes da Administração Pública. Para a sua resolução dever-se-á ter em conta, por um lado, que a circunstância de se tratar de subsídios e remuneração a atribuir a quem cessa definitivamente funções não subtrai a matéria do estatuto próprio que o pessoal a que respeita detinha e, por outro, que os mesmos subsídios e remuneração, pela sua particularidade, não representam a concretização de princípios básicos ou gerais relativos ao estatuto remuneratório desse pessoal. Escreveu-se no Acórdão nº. 425/87 deste tribunal (in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 10º vol., pp. 451 e segs.:
'O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1º vol., 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 149 e segs.). A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo do controlo. Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada. Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria.' Pois bem. O bosquejo que acima se fez do estatuto próprio do pessoal dos três ramos das forças armadas visou um objectivo muito preciso: o de demonstrar que esse estatuto – e por isso o é – compreende direitos (e deveres) específicos da condição militar articulados numa estrutura autónoma e presumidamente coerente. Sem embargo de a Administração Pública abranger a administração militar e de o pessoal militar que nesta se integra não deixar de pertencer ao funcionalismo público, o legislador moldou para aquele um quadro normativo de algum modo fechado, ajustado à especificidade da condição militar. Não estando em causa a adopção de grandes e essenciais princípios de um estatuto geral do pessoal da função pública e uma relativa aproximação, em algumas áreas, dos estatutos do pessoal militar e do pessoal civil, patente é que o militar usufrui de um complexo de direitos, particularmente em matérias com expressão pecuniária – segurança social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, etc. – que só ganham sentido no todo de que participam e como contrapartida de deveres especiais que oneram a condição militar. Em tal medida, para além da substancial diferença dos dois estatutos, o carácter tendencialmente fechado e totalizante do quadro normativo que definiu o estatuto do pessoal das forças armadas, levanta um decisivo obstáculo a que se considere exigível e decorrente da observância do princípio da igualdade a 'extensão' de um determinado direito do pessoal civil ao pessoal militar.
É que, se a tendencial estanquicidade e a coerência própria do estatuto do militar impedem que dele se isole um certo direito para, suposta uma aparente similitude de situações, se impôr, por força do princípio da igualdade, um tratamento igual do pessoal civil, também não parece legítimo que aquele mesmo princípio vincule o legislador ordinário a outorgar ao pessoal militar um direito do pessoal civil e mesmo que, no particularismo da situação regulada, se não veja razão para uma disciplina jurídica diferenciada. Sem excluir juízos legítimos de oportunidade, a concessão de direitos no quadro do estatuto do pessoal militar obedece a uma lógica própria, no balanceamento e equilíbrio de direitos e deveres específicos, que em princípio poderia ser comprometida se nesse quadro se inscrevessem outros direitos apenas com o fundamento de outros quadros de diferente estatuto os comportarem e não haver razões para, no caso concreto, em si mesmo considerado, não serem também atribuídos ao pessoal militar. De todo o modo, o que parece de afastar é uma imputação de 'arbítrio' – e muito menos manifesto – à não atribuição ao pessoal militar da remuneração e do subsídio previstos no artigo 15º nº. 1 do DL nº. 497/88, sendo certo que o legislador definiu para esse pessoal um regime específico de licença para férias
(artigo 101º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas). A norma ínsita no artigo 15º nº. 1 do DL nº. 497/88, na interpretação de que ela se não aplica ao pessoal das forças armadas não infringe, assim, o princípio da igualdade, pois não se verifica uma paridade de situações que justifique um tratamento jurídico igualitário, nem pode dizer-se que ela consubstancie um manifesto arbítrio legislativo, à margem de quaisquer juízos – no caso, impertinentes – sobre a hipotética razoabilidade (em termos de 'bom direito') da aplicação daquele mesmo tratamento jurídico, que o legislador ordinário legitimamente não quis dar, no quadro estatutário específico que modelou para o pessoal militar.
4 - Sendo certo que o recorrente invoca a inconstitucionalidade material da norma do artigo 15º nº. 1 do DL 497/88 com fundamento na violação do princípio da igualdade, não estaria excluído que o Tribunal viesse a formular um juízo de inconstitucionalidade com fundamento na violação de outros princípios ou normas constitucionais (artigo 79º-C da Lei nº. 28/82), designadamente do direito consagrado no artigo 59º nº. 1 alínea d) da CRP.
Ora, a norma em causa consagra o direito do funcionário ou agente a uma compensação remuneratória (indemnização).
Mas compensação de quê?
Não certamente de um adquirido direito a férias, vencido no primeiro dia do ano em que o funcionário ou agente cessa funções; para ele rege o disposto no nº. 2 do mesmo artigo 15º que determina o pagamento da remuneração relativa ao período de férias não gozadas (total ou parcialmente) e do correspondente subsídio.
A compensação expressa no nº. 1 reporta-se à expectativa do funcionário de aquisição do direito, então em formação, a férias, que se venceria no dia 1 de Janeiro do ano seguinte.
A propósito de norma semelhante de direito laboral (a que consta do artigo 10º nº. 1 do DL nº. 874/76) escreveu Monteiro Fernandes 'Noções Fundamentais de Direito do Trabalho', 1986, p. 270, que a indemnização 'cuida de compensar o trabalhador (...) pela frustração da expectativa referente às férias a gozar no ano seguinte – isto é daquelas que se venceriam em 1 de Janeiro desse ano, se o contrato não cessasse antes de tal data'.
E mais adiante.
'Pressupõe-se, em suma, que o direito às férias iniciadas no dia 1 de Janeiro de certo ano se vai progressivamente sedimentando ao longo do ano anterior – de tal modo que, a meio deste, o trabalhador é já considerado titular de uma expectativa (juridicamente titulada como se vê) respeitante a metade do futuro período de férias.'
A questão que se coloca é a de saber se este plus relativamente ao direito a férias pagas e ao subsídio correspondente resulta de uma imposição que decorra do citado artigo 59º nº. 1 alínea d) da CRP.
A nossa resposta é negativa.
Na verdade, o que a Constituição consagra como direito (fundamental) dos trabalhadores no artigo 59º nº. 1 alínea d), é o direito a 'férias periódicas pagas', corolário do direito ao repouso. Ora, e desde logo decisivamente – tratando-se no caso de fiscalização concreta de constitucionalidade e estando em causa uma cessação definitiva de funções para passagem do trabalhador à situação de reforma – não é afectado minimamente o direito ao repouso periódico que a Constituição pretendeu tutelar, mantendo ainda o trabalhador naquela situação o direito ao pagamento da pensão correspondente ao tempo em que gozaria férias e ao respectivo subsídio.
Mas, mesmo que assim se não entendesse, a solução seria idêntica. Vinculado o legislador ordinário a estabelecer o direito a férias remuneradas, está ele livre de optar, antes do mais, pela fixação de um momento temporal em que esse direito se vence desde que, por via dessa opção, o direito ao descanso periódico permaneça intocado.
E se a compensação monetária devida pelo direito a férias vencidas mas não gozadas antes da cessação definitiva de funções, se mostra directamente ligada ao próprio direito a férias e beneficiará da mesma tutela constitucional de que goza esse direito, já o mesmo não acontece quanto à compensação em causa, que se reporta a uma mera expectativa, ou, quando muito, a uma fase da formação daquele direito.
Em suma, a norma do artigo 15º nº.1 do DL nº. 497/88 não enferma também de inconstitucionalidade por violação do artigo 59º nº. 1 alínea d) da Constituição.
5 - Decisão Pelo exposto e em conclusão decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 19 de Outubro de 1999 Artur Maurício Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto) DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanhei o Acórdão na parte em que se pronunciou pela não violação do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 59º da Constituição.
São os seguintes os fundamentos desta posição.
A Constituição da República Portuguesa assenta no valor essencial da dignidade da pessoa humana.
O direito ao trabalho - de que é indissociável o dever de trabalhar - é um dos elementos integradores desse valor constitucional e daí o relevo que em toda a Lei Fundamental se atribui aos aspectos mais essenciais dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores.
No caso em apreço discute-se a aplicação de uma norma específica da Função Pública a um agente militar. Tal norma estabelece a medida do direito a férias no caso de cessação definitiva de funções.
A Constituição estabelece no artigo 59º, nº 1, alínea d) que todos os trabalhadores têm direito a férias periódicas pagas. A norma contida neste preceito constitucional afasta desde logo a hipótese de equiparação entre as férias e períodos de repouso periódicos. Com efeito, a Constituição refere-se expressamente a 'férias periódicas pagas', com o que vai implicado que a remuneração auferida durante, ou pelo menos com fundamento em direito a férias, é co-essencial a estas. Por outras palavras, o conceito de férias envolve uma qualquer remuneração, independentemente dos critérios que o legislador tenha entendido seguir no respectivo cálculo, sendo irrelevante a qualificação que o legislador tenha atribuído a parte dessa remuneração. Designadamente a qualificação como
'subsídio de férias' será menos feliz na medida em que puder ser entendida como um abono remuneratório que acresce a um ordenado ou vencimento auferido como contrapartida directa de trabalho prestado. Férias não pagas não serão 'férias' no plano constitucional. Não afasta isto a ligação incindível entre trabalho e férias, no sentido de que a trabalho dependente continuado no tempo haverá de corresponder férias, que, no plano do preceito constitucional referido não por acaso deverão ser
'periódicas'. Será por essa razão que o n.º 1 do artigo 15º do Decreto-Lei n.º
497/88 estabelece que o funcionário ou agente tem direito a receber o equivalente a dois dias e meio de férias por cada mês completo de serviço efectivo prestado e o subsídio de férias proporcional. Não interessa aqui, conforme referi, a forma de calcular a quantia a abonar. O que releva é a ligação entre a duração do trabalho prestado em determinado ano e a extensão mínima do período de férias a que tem direito o trabalhador, independentemente da sua condição de militar ou de civil. Mas, sendo assim, impõe-se extrair do que acabo de referir a conclusão de que, no decurso de um período certo de trabalho, o trabalhador adquiriu ou vai adquirindo o direito a gozar um tempo de férias no período certo de trabalho subsequente. É esse direito que é reconhecido aos trabalhadores da Função Pública e que foi negado ao recorrente, enquanto agente militar, pela norma que acaba de ser julgada não inconstitucional. Neste contexto, em que não são determinantes as construções dogmáticas extraídas do direito ordinário, mas apenas o plano mais aberto do direito constitucional,
é irrelevante a circunstância de o trabalhador ter cessado definitivamente funções, qualquer que seja o motivo. É certo que, no caso dos trabalhadores por conta de outrém, só mais tarde, no período subsequente, que corresponderia a período de trabalho efectivo se não tivesse deixado a sua actividade normal ao serviço do mesmo empregador, gozaria férias no sentido comum da figura. Mas o entendimento que tenho da norma constitucional é que o tempo de trabalho efectivamente prestado antes da cessação definitiva de funções gera, para além do período de férias que o trabalhador poderá gozar de modo efectivo, também o direito ao percebimento de um direito de crédito correspondente a dois dias e meio de remuneração por cada mês de trabalho prestado que é ainda direito a férias e como tal tem de ser remunerado. Trata-se das chamadas 'férias proporcionais' ao tempo de trabalho prestado no ano em que cessa a prestação de serviço e que não podem deixar de revestir a mesma natureza do direito a férias
'normais' e como tais tratadas pelo legislador. Assim, teria votado a inconstitucionalização da norma do artigo 15º, nº 1 do Decreto-Lei nº 497/88, de 30 de Dezembro, enquanto considerada como não abrangendo o pessoal militar, por violação directa do artigo 59º, nº 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa. Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito (vencida, pelos fundamentos constantes de declaração de voto do Exmº Conselheiro Vítor Nunes de Almeida) Maria Fernanda Palma (vencida, pelos fundamentos de declaração de voto do Excelentíssimo Conselheiro Vítor Nunes de Almeida) José Manuel Cardoso da Costa