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Procº n.º 313/99 ACÓRDÃO Nº 280/00
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO:
1. – M... veio propor contra a C..., E.P., pelo Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia, uma acção emergente de contrato individual de trabalho, pedindo o reconhecimento da sua antiguidade desde Março de 1981, a anulação das determinações n.ºs 1/96 e 10/97 da referida C... sobre destacamento e a exigência feita pela mesma entidade de os destacamentos se efectivarem por forma rotativa entre as cinco (5) guardas de passagem de nível que prestam serviço na passagem de nível onde exerce funções, abstendo-se de obrigar a Autora a efectuar, por forma exclusiva, esses destacamentos.
Contestada a acção e efectuado o julgamento, veio a ser proferida a sentença pela qual se julgou procedente o pedido apenas no respeitante ao reconhecimento da antiguidade e improcedente na parte restante.
2. – Não se conformando com o assim decidido, a C... interpôs recurso da decisão para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 1 de Fevereiro de 1999, considerou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Para assim concluir, a decisão da Relação entendeu
'(...) que o citado Dec.-Lei 381/72, de 9/10, viola as normas constitucionais definidas nos artºs 53º e 60º, n.º1, alíneas b) e d) da Constituição da República aprovada em 2 de Abril de 1976 – cessando, por isso, a sua vigência, desde logo.'
Notificado desta decisão, o representante do Ministério Público junto da Relação veio interpor recurso obrigatório de constitucionalidade, para apreciação da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 5º do Decreto n.º 381/72, de 9 de Outubro, designadamente, aos artigos
53º e 61º, n.º1, alíneas b) e d).
3. – Neste Tribunal, apenas o Ministério Público alegou, tendo concluído tais alegações pela forma seguinte:
'1º. É materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da segurança no emprego, a interpretação normativa do artigo 5º do Decreto-Lei nº 381/72, de 9 de Outubro, que se traduzisse em considerar nele estabelecida uma irrestrita e temporalmente indefinida precariedade das relações laborais constituídas com as guardas de passagem de nível substitutas, susceptível de precludir a aquisição do estatuto de trabalhadores permanentes e a consequente antiguidade, em conformidade com a lei geral sobre contrato individual de trabalho.
2. Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
A recorrida não alegou.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
4. – De acordo com a decisão recorrida – acima parcialmente transcrita -, foi recusada a aplicação do Decreto n.º 381/72, de 9 de Outubro (na decisão escreveu-se, certamente por lapso, 'Dec.-Lei'), por violar os artigos 53º e 60º, n.º1, alínea b), da Constituição, cessando, assim,
'a sua vigência, desde logo'.
O decreto regulamentar em questão foi emitido ao abrigo do n.º2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, para aplicar e introduzir no regime geral da Lei do Contrato Individual de Trabalho e da duração de trabalho (que o Dec. Lei acima referido aprovou) as adaptações necessárias ao funcionamento das empresas concessionárias de serviço público, que não estejam sujeitas a um regime jurídico próprio.
A norma relativamente à qual o Ministério Público considera que houve recusa de aplicação por parte da decisão da Relação, respeita às guardas de passagem de nível. Nela se estabelece que 'as empresas podem utilizar para a substituição das guardas de passagem de nível, nos seus descansos semanais, períodos de doença ou outras ausências, pessoal feminino contratado diariamente para o efeito.'
A decisão recorrida reporta-se a uma trabalhadora admitida em 20 de Março de 1981, para exercer as funções de substituta de guarda de passagem de nível, mas que só em 27 de Junho de 1988 passou a efectiva, pretendendo agora que a sua antiguidade seja contada a partir da data em que começou a exercer as funções de substituta.
Escreveu-se no acórdão da Relação para fundamentar a recusa de aplicação das normas do Decreto n.º 381/72:
'Repugna ao senso jurídico que a apelante haja mantido a trabalhadora, durante sete anos, na referida situação de precariedade – tratando-se de uma empresa pública, concessionária de um serviço público – e, sob a invocação do artº 5º do Dec.-Lei n.º 381/72, de 9/10, alegue uma contratação diária; o que tal norma permitia era a contratação de pessoal feminino, diariamente, para substituição das guardas de passagem de nível, nos descansos semanais, doença ou outras ausências. Mas no seu artigo 3º, estipulava que, ao fim de um ano consecutivo de serviço, a trabalhadora eventual adquiria a qualidade de permanente. Entendemos que o citado Dec.Lei n.º 381/72, de 9/10, viola as normas constitucionais definidas nos artigos 53º e 60º, n.º1, alíneas b e d) da Constituição da República aprovada em 2 de Abril de 1976 – cessando, por isso, a sua vigência, desde logo.'
E, face a este entendimento, o acórdão veio a considerar que a partir de 2 de Abril de 1976, ao caso em apreço se teria de aplicar o artigo 11º, n.º3, do Decreto-Lei n.º48.408, de 24 de Novembro de 1969, que fixava um prazo de seis meses de trabalho consecutivo para o trabalhador eventual adquirir a qualidade de permanente, vindo assim a reconhecer á trabalhadora a antiguidade desde a data da sua admissão na empresa, para efeitos de destacamentos.
5. – Importa, antes de mais, definir o exacto objecto do recurso.
Com efeito, o Ministério Público, no seu requerimento de interposição do recurso, refere expressamente que 'no acórdão recorrido é recusada a aplicação da norma constante do artigo 5º do Dec.Lei n.º 381/72, de
09/10, com fundamento na sua inconstitucionalidade material (...)'.
Porém, o que no acórdão se escreve é algo diferente. O que se escreve é que o mencionado diploma viola as normas constitucionais definidas nos artigos 53º e 60º, n.º1, alíneas b) e d), cessando, por isso, a sua vigência com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa. E, depois, para preencher o vazio legislativo decorrente de tal afirmação, o acórdão recorre apenas á norma do artigo 11º, n.º3, do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, relativa às condições de aquisição da qualidade de permanente pelos trabalhadores eventuais.
Refira-se, aliás, que a decisão recorrida não é muito precisa: de facto, embora se diga que o decreto regulamentar em causa cessa a sua vigência com a entrada em vigor da Constituição de 1976, o certo é que as normas indicadas respeitam à numeração da versão de 1982. Na verdade, o princípio da segurança no emprego (artigo 53º) constava, na versão originária da Constituição, do artigo 52º, alínea b) e o artigo 60º, nesta versão, respeitava
à proibição do lock-out, e não tinha alíneas (o que já ocorre na versão de
1982).
Porém, para além do que fica referido, e sendo certo que o acórdão recorrido não identifica, de forma expressa, a norma que se desaplicou
– somente referida no requerimento de interposição do recurso -, não pode deixar de se definir com precisão qual o objecto do recurso: é que, enquanto no requerimento de interposição se refere apenas a norma do artigo 5º do Decreto n.º 381/72, de 9.10, nas suas alegações o Ministério Público reporta-se já a uma dada interpretação ou conteúdo normativo desse preceito. Com efeito, o que nessas alegações se considera inconstitucional é o mencionado artigo 5º na interpretação 'que se traduzisse em considerar nele estabelecida uma irrestrita e temporalmente indefinida precariedade das relações laborais constituídas com as guardas de passagem de nível substitutas, susceptível de precludir a aquisição do estatuto de trabalhadores permanentes e a consequente antiguidade'.
Face a este circunstancialismo, a cabal percepção do objecto da questão de constitucionalidade requer que se tenha em conta que a Autora, agora recorrida, pedira que fosse reconhecida a sua antiguidade na empresa desde Março de 1981, ao que fazia acrescer o pedido de modificação do regime de prestação de funções que lhe vinha sendo aplicado nos termos da Ordem de Serviço nº 1/96 e da deliberação do Conselho de Gerência nº 10/97, no respeitante aos chamados destacamentos, ou seja, em matéria de deslocação de guardas de determinada passagem de nível para outra. Tendo a empresa posto termo ao regime de rotatividade entre as vários guardas afectadas à mesma passagem de nível, passando a fazer recair o destacamento sobre os trabalhadores com menor antiguidade, a Autora, por ser considerada a de mais recente admissão, passara a ser a única, de entre as suas colegas, a cumprir destacamentos.
Na primeira instância, a acção foi julgada parcialmente procedente, e a ré C... foi condenada a reconhecer a antiguidade de M... desde Março de 1981 na categoria de guardas de passagem de nível. Contudo, foi absolvida na parte restante. Quanto a esta, disse-se o seguinte na sentença:
'quanto ao mais pedido (dar sem efeito as referidas determinações e obrigar a ré a distribuir rotativamente os destacamentos) creio que não existe fundamento para neutralizar as duas determinações referidas nem obrigar a ré a agir diferentemente no que concerne aos destacamentos....'.
Discordando do decidido, a apelante C... sustentou que se devia decidir que a antiguidade da recorrida se deveria reportar a 27/6/88, com todas as consequências legais. O Acórdão recorrido decidiu 'julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença', recusando para o efeito a aplicação da norma agora questionada.
É neste contexto que o objecto do presente recurso é o artigo 5º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro de 1972, em determinada interpretação, cujo alcance importa previamente definir com precisão, na parte em que o recorrente Ministério Público se reporta, para além da aquisição do estatuto de trabalhador permanente, à '...consequente antiguidade'. A decisão em recurso, atribuiu antiguidade na categoria mas entendeu não dever alterar o regime que a empresa aplicava à trabalhadora, e que esta relacionava com o reconhecimento da antiguidade que pretendia. Na verdade, a sentença anterior que condenara a apelante a reconhecer a antiguidade, depois confirmada em apelação, absolveu a ré C... da parte restante do pedido, precisamente da parte em que vinha pressuposta, como consequência desse reconhecimento, determinado regime de prestação de trabalho em destacamento, no âmbito do qual a antiguidade era critério de designação do trabalhador a afectar. Nessa parte, autonomizada na formulação do pedido e que não foi objecto de recurso ordinário, não incidiu o acórdão agora em apreciação. Por essa razão não pode incluir-se no objecto do presente recurso. Aliás, muito embora o reconhecimento da qualidade de trabalhador permanente implique a contagem do tempo de serviço, da qual derivarão efeitos subsumíveis no instituto da antiguidade do trabalhador na empresa, a sentença confirmada em apelação refere que 'os efeitos da antiguidade são múltiplos (aspectos retributivos, funcionais e ligados a promoções estão-lhe associados) e dependem dos IRC aplicáveis'. Por outro lado, em tese geral, não é de excluir que o regime de prestação do trabalho dos trabalhadores da mesma categoria possa variar em função de outros critérios que não apenas os da antiguidade. Trata-se porém de questões que estão fora do âmbito do presente recurso, não só pelas razões estritamente processuais apontadas como também por no caso estarem envolvidos aspectos relacionados com a forma como é dada aplicação ao direito ordinário, que escapam aos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
Assim sendo, quando o Ministério Público alude à 'consequente antiguidade' há que entender a sua formulação no sentido de se tratar da antiguidade resultante da aquisição do estatuto de trabalhador permanente, independentemente da projecção no regime de prestação de trabalho dessa mesma antiguidade. Nesta medida, o que está em causa no presente recurso é a referida norma do artigo 5º, na interpretação que implique considerar nele estabelecida uma restrita e temporalmente indefinida precariedade das relações laborais constituídas com as guardas de passagem de nível substitutas, susceptível de precludir a aquisição do estatuto de trabalhadores permanentes e de implicar a não contagem da situação de guarda de nível substituta para efeitos de antiguidade na categoria correspondente.
Vejamos, pois, a questão de constitucionalidade que vem suscitada.
6. - Nos autos vem claramente assente que a trabalhadora presta serviço à C... como 'guarda de passagem de nível substituta' desde 20 de Março de 1981 (alínea a) da matéria de facto), tendo-se mantido nesta situação
(em sistema de contratação diária) até 27 de Junho de 1988, data em que por acordo judicial a C... lhe reconheceu a categoria permanente de guarda de passagem de nível.
De acordo com a decisão recorrida, esta situação laboral, que a C... estriba na norma jurídica cuja constitucionalidade se questiona, contraria o princípio da segurança no emprego constante da alínea b) do artigo 52º da Constituição de 1976 (e, depois, vertido no artigo 53º) bem como o princípio da organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal, constante, na versão de
1976, do artigo 53º, alínea b), e, depois, do artigo 60º, n.º1, alínea b), da Constituição (versão de 1982).
Importa fazer um rápido resumo do regime laboral aplicável, antes da entrada em vigor da Constituição de 1976, às empresa concessionárias de serviços públicos, como era o caso da C....
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969, regulou-se de forma abrangente e inovadora o regime jurídico do contrato individual de trabalho, prevendo-se nesse diploma que o regime aprovado, ressalvada a legislação em vigor, se aplicava às empresas concessionárias de serviço público, mas tal aplicação poderá vir a sofrer as adaptações exigidas pelas características destes serviços, adaptações essas a introduzir através de decretos regulamentares.
O decreto agora em causa veio reafirmar o princípio da aplicabilidade do regime do contrato individual de trabalho às empresas concessionárias, subconcessionárias e arrendatárias do serviço público de transportes ferroviários e estabelecer as adaptações consideradas necessárias.
Refira-se também que o regime legal da duração do trabalho constante do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro de 1971 contém, no seu artigo 1º, uma norma de conteúdo idêntico (n.º 2).
Diga-se desde já que não está aqui em causa a validade formal do diploma regulamentar questionado, mas antes a questão da conformidade material da norma constante do seu artigo 5º, na interpretação questionada, com os princípios constitucionais da Lei Fundamental entrada em vigor em 25 de Abril de 1976.
7. – Nesta perspectiva, a norma do artigo 5º, com tal interpretação, permite que as empresas abrangidas no âmbito do diploma, entre as quais a C..., utilizem, irrestrita e indefinidamente, para substituição das guardas de passagem de nível nas suas ausências (doença, descansos semanais, etc.), pessoal feminino contratado diariamente para o efeito.
Ora, mesmo admitindo que esta situação não repugnava ao regime laboral geral em vigor na época – o que não interessa agora apreciar -, o certo é que, com o início de vigência da Constituição de 1976, deu-se nova relevância aos direitos dos trabalhadores através da inclusão (primeiro, dentro dos direitos e deveres económicos e, depois, nos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores) da garantia da segurança no emprego e do direito à organização do trabalho em condições dignificantes, além de outros direitos que não interessa referir, o que desde logo implica não poder ter-se por constitucionalmente admissível uma contratação diária que se prolongue por vários anos.
Na verdade, uma contratação diária irrestrita e de duração global indefinida é a negação de qualquer segurança no emprego, uma vez que terminado o período laboral nenhuma garantia existe de que o contrato continue a poder executar-se: é a flexibilização laboral no seu expoente máximo.
Um tal tipo de contratação laboral contende necessariamente com o princípio da segurança no emprego, com o qual se pretende assegurar ao trabalhador o máximo de estabilidade no emprego, apenas podendo a relação laboral, em princípio, cessar por despedimento com justa causa apurada em processo com as necessárias garantias de defesa ou por razões objectivas relacionadas ou com o trabalhador ou com a empresa.
Por outro lado, uma situação de contratação diária que se prolongue no tempo não pode constituir uma forma de organização do trabalho em termos socialmente dignificante. De facto, a trabalhadora não pode saber com um mínimo de antecipação em que termos se vai desenvolver a sua prestação laboral, estando submetida a uma verdadeira ‘discricionaridade’ da entidade empregadora.
De qualquer modo, a norma em causa integrando-se num diploma (o Decreto n.º381/72, de 9 de Outubro de 1972) pré-constitucional, é materialmente inconstitucional se violar norma ou princípios constitucionais da Lei Fundamental de 1976.
Ora, é manifesta a contradição existente entre a questionada interpretação da norma do artigo 5º e o princípio constitucional da segurança no emprego constante do artigo 52º, alínea b) e depois do artigo 53º da Constituição da República Portuguesa (versão de 1976 e de 1982, respectivamente).
Tanto basta para que se negue provimento ao presente recurso, com confirmação da decisão recorrida. III – DECISÃO:
Neste termos e de acordo com o exposto, o Tribunal Constitucional decide: A. julgar inconstitucional a norma do artigo 5º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro, na interpretação que se traduzisse em considerar nela estabelecida uma irrestrita e temporalmente indefinida precariedade das relações laborais constituídas com as guardas de passagem de nível substitutas, susceptível de precludir a aquisição do estatuto de trabalhadores permanentes e a consequente antiguidade, por violação do princípio da segurança no emprego, constante do artigo 52º, alínea b), da Constituição da República Portuguesa de 1976 (depois, artigo 53º); B. em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando, nesta parte, a decisão recorrida.
Lisboa, 16 de Maio de 2000 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa