Imprimir acórdão
Processo n.º 107/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Por intermédio do Acórdão n.º 571/99, tirado em 20 de Outubro de 1999, o Tribunal Constitucional indeferiu a reclamação deduzida por M. G. e I. C. contra despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade proferido pelo relator no Supremo Tribunal de Justiça em 2 de Dezembro de 1998, com fundamento na extemporaneidade de tal reclamação, porquanto, tendo o acto sido praticado para além do prazo legalmente fixado, nos termos do artigo 145º, n.º 5, do Código de Processo Civil, o pagamento da multa aí previsto constitui um ónus do autor do acto de cuja prática fica dependente a sua validade, independentemente da ocorrência ou não da notificação pela secretaria, prevista no n.º 6 do referido artigo 145º, não cumprindo ao Tribunal Constitucional suprir a omissão ocorrida no tribunal a quo.
2. Notificadas do mencionado Acórdão, vieram as reclamantes requerer a reforma do mesmo, nos termos e com os fundamentos seguintes:
'1º O Tribunal Constitucional concluiu que a reclamação se apresenta como extemporânea por não se encontrar paga a multa prevista no artigo 145º, n.ºs 5 e
6 do C.P.C., sendo certo que a admissibilidade da reclamação estava dependente de tal evento.
2º O Tribunal Constitucional reconheceu ainda que não se encontra nos autos registo de notificação das reclamantes feita pela secretaria do tribunal a quo no sentido de pagar tal multa, tal como prevê o n.º 6 do art.º 145º do C.P.C..
3º Efectivamente, nem a secretaria do tribunal a quo nem a secretaria do Tribunal Constitucional nem qualquer outra entidade notificou as reclamantes para os efeitos do art.º 145º n.º 6 do C.P.C., sendo certo que tal preceito estabelece que só se considera perdido o direito de praticar o acto após a notificação ao interessado para pagamento de tal multa e caso, naturalmente, a mesma não seja paga no prazo estipulado.
4º Tem o Tribunal Constitucional razão quando estabelece que a admissibilidade do recurso depende do pagamento da multa.
5º Todavia, estando a validade do acto dependente do pagamento de uma multa cujo prazo se inicia após a notificação da secretaria, parece evidente que a falta do pagamento da multa se deve a uma omissão da secretaria.
6º Ora, o art.º 161º, n.º 6 do C.P.C., na redacção em vigor desde 1/1/97, aplicável a estes autos de reclamação por força do disposto no art.º 69º da L.T.C., estabelece o seguinte:
‘Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes’.
7º Tal preceito decorre, aliás, de uma concepção ampla do direito de acesso à justiça e a um processo equitativo, tal como está consagrado no art.º 20º da C.R.P. e no art.º 6º n.º 1 da C.E.D.H.
8º Salvo o devido respeito, o Tribunal Constitucional não ponderou a norma constante do art.º 161º, n.º 6 do C.P.C. e o princípio jurídico de que tal norma
é afloração, segundo o qual, num processo equitativo, as partes não podem ser prejudicadas por erros ou omissões do próprio tribunal ou de qualquer dos seus
órgãos, mesmo auxiliares, designadamente da secretaria.
9º Trata-se de um lapso manifesto na determinação da norma aplicável, já que o tribunal não ponderou a norma do art.º 161º, n.º 6 do C.P.C. nem o princípio jurídico referido na parte final do art.º precedente.
10º Tal situação permite a qualquer das partes requerer a reforma da sentença, tal como estabelece o art.º 669º, n.º 2 – a) do C.P.C..
11º Com efeito, considerando o art.º 161º, n.º 6 do C.P.C. e o princípio jurídico em apreço, o tribunal só poderia indeferir a reclamação após se verificar a notificação aos interessados para pagamento da multa prevista no art.º 145º, n.º
6 do C.P.C. e caso estes não pagassem no prazo estipulado, o que não se verifica.
12º De resto, o acórdão n.º 1086/96, em que se louva o acórdão ora em apreço, foi proferido num quadro legal em que ainda não vigorava a redacção hoje vigente do art.º 161º n.º 6 do C.P.C., pelo que tal jurisprudência nem funciona como precedente para o caso dos autos'. Cumpre decidir. II. Fundamentos
3. Prevê o artigo 669º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), que qualquer das partes pode requerer a reforma da decisão quando 'tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.'
É este o fundamento invocado pelas reclamantes para reforma do Acórdão n.º
571/99, pois nesta decisão o Tribunal Constitucional – ao considerar que o pagamento da multa previsto no artigo 145º, n.º 5, do Código de Processo Civil constitui um ónus do autor do acto, que, não tendo sido cumprido, torna inválido tal acto (no caso, o acto de apresentação da reclamação pelas reclamantes), mesmo que a secretaria não o tenha notificado para tal pagamento, nos termos do n.º 6 do mesmo artigo – não teria ponderado o preceituado no artigo 161º, n.º 6, do Código de Processo Civil. Segundo esta norma 'os actos e omissões praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.' Pode duvidar-se de que tal fundamento, mesmo a ser procedente, consubstancie um
'manifesto lapso [do tribunal] na determinação da norma aplicável', uma vez que no aresto reclamado se fez aplicação do n.º 5 do artigo 145º do Código de Processo Civil, e não do n.º 6 da mesma norma (que é a norma na qual se refere a prática de um acto pela secretaria). Em face das dúvidas que a questão será susceptível de suscitar, poderá, porém, admitir-se que, a procederem, os fundamentos invocados pelas reclamantes poderiam conduzir a uma reforma da decisão, sendo precisamente isto que as reclamantes pretendem – e não uma explicitação da ponderação, ou uma nova ponderação, de outras normas processuais que pretenderiam ver aplicadas ao caso
(designadamente, do artigo 161º, n.º 6, do Código de Processo Civil). Toma-se, pois, conhecimento do pedido de reforma do Acórdão n.º 571/99.
3. Como já se salientou, no Acórdão n.º 571/99, sob reclamação, verificando-se que o acto de interposição da reclamação foi praticado no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo, aplicou-se o disposto no artigo 145º, n.º 5, do Código de Processo Civil, segundo o qual:
'Independentemente de justo impedimento, pode o acto ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa de montante igual a um oitavo da taxa de justiça que seria devida a final pelo processo, ou parte do processo, se o acto for praticado no primeiro dia, de um quarto da taxa de justiça, se o acto for praticado no segundo dia, ou de metade da taxa de justiça, se o acto for praticado no terceiro dia, não podendo, em qualquer dos casos, a multa exceder 5 UC.' E, depois de se citar o n.º 6 da mesma disposição e a orientação da jurisprudência do Tribunal nos casos de falta de notificação da secretaria para pagamento da multa – remetendo para o Acórdão n.º 1086/96 –, concluiu-se que:
'Em suma: tendo o acto sido praticado para além do prazo legalmente fixado, nos termos do artigo 145º, n.º 5, do Código de Processo Civil, o pagamento da multa aí previsto constitui um ónus do autor do acto, de cuja prática fica dependente a sua admissibilidade – ou, como se afirmou no acórdão citado, cuja prática constitui o evento condicional de que está dependente a validade de tal acto. E isto, independentemente da ocorrência ou não da notificação pela secretaria, prevista no n.º 6 do referido artigo 145º. Em coerência com esta jurisprudência, vemo-nos, portanto, forçados a concluir que a presente reclamação se apresenta como extemporânea, tendo que ser indeferida.' O acto de apresentação da reclamação no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo foi, pois, considerado inválido nos termos do n.º 5 do artigo 145º do Código de Processo Civil (segundo o qual fica 'a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa de montante igual a [...]'), no qual não se prevê a prática de qualquer acto pela secretaria.
É certo que o artigo 145º, n.º 6, do mesmo diploma, prevê que se o acto for praticado em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, a secretaria, logo que falta seja verificada, notificará o interessado para pagar multa de montante igual ao dobro da mais elevada prevista no n.º 5, sob pena de se considerar perdido o direito de praticar o acto. E a interpretação da relação entre o artigo 145º, n.ºs 5 e 6 não tem sido uniforme. Há quem defenda que a secretaria deve notificar o autor do acto oficiosamente mesmo que este não tenha requerido o pagamento da multa – e que a falta de tal notificação importa nulidade que pode influir na decisão da causa
(assim A. Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, Coimbra, 1997, vol. I, pág. 75, e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 22 de Setembro de 1998 e
22 de Junho de 1999, in Colectânea de Jurisprudência, resp. 1998, tomo IV, pág.
15, e 1999, tomo III, pág. 41). Segundo outra posição, o artigo 145º, n.º 6 apenas se aplica se o acto for praticado sem que seja paga imediatamente a multa, mas tendo sido requerido o pagamento:
'A prática do acto fora do prazo, feita nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 5 deste art. 145º, implica sempre o requerimento simultâneo do pagamento imediato da multa devida. E só se, requerido o pagamento imediato da multa, ela não for paga, então, e só então, a secretaria mandará notificar a parte faltosa para proceder ao pagamento da multa e da sanção fixada no n.º 6 do mesmo preceito, Ou seja, esta última notificação não tem lugar na hipótese de a prática do acto ter sido desacompanhada do requerimento para imediato pagamento da multa devida, hipótese em que o prazo se tem pura e simplesmente por perdido.'
(Abílio Neto, Código de Processo Civil anotado, 13ª edição, Lisboa, 1996, anot.
3 ao artigo 145º, pág. 105) Outra posição ainda parece ver no n.º 6 do artigo 145º uma mera faculdade da secretaria – assim, no vol. 1º do Código de Processo Civil anotado (Coimbra,
1999), José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto (anotação 1 ao artigo
145º, pág. 253) escrevem que:
'o diploma intercalar do 1985 (...) aditou o n.º 6, que possibilitou a notificação pela secretaria para o pagamento de multa igual ao dobro da prevista no n.º 5, quando não paga espontaneamente dentro do respectivo prazo, salvando-se assim ainda o acto praticado.' (itálico aditado) Seja como for – designadamente, seja ou não a aplicação do n.º 6 do citado artigo 145º dependente de requerimento de pagamento imediato da multa, e importe ou não a falta de notificação pela secretaria nulidade processual –, o que é certo é que no Acórdão reclamado se considerou que o efeito preclusivo da validade do acto, pela perda do prazo, resultou de omissão, sim, mas por parte das reclamantes, e não da secretaria – ou seja, do n.º 5, e não do n.º 6, desse artigo 145º. Logo por isso, em nada adianta – como já em nada adiantava, por isso se tornando desnecessário sequer referi-lo – a 'ponderação' do disposto no artigo 161º, n.º
6, do Código de Processo Civil.
4. Como bem se frisou no Acórdão reclamado, a solução da intempestividade da reclamação decorre, aliás, directamente da jurisprudência deste Tribunal sobre as normas em causa, quer da jurisprudência anterior a 1997, que se citou (assim, o Acórdão n.º 1086/96), quer da posterior a 1997. É o caso, além do aresto aí referido, do Acórdão n.º 313/97 (inédito), e, designadamente, do Acórdão n.º
444/98 (também inédito). No primeiro (citando-se aquele Acórdão n.º 1086/96), em situação semelhante à do presente caso, escreveu-se:
'Entende este Tribunal que cabia ao ora reclamante o ónus de ter solicitado à secretaria do Supremo Tribunal Administrativo as guias para pagamento imediato da multa prevista no n.º 5 do art. 145º do Código de Processo Civil, uma vez que o seu patrono não podia deixar de ter conhecimento de que a validade da reclamação ficava dependente desse pagamento.
É certo que o n.º 6 do art. 145º do Código de Processo Civil estatui que a secretaria do tribunal, logo que seja verificada a falta e independentemente de despacho judicial, deverá notificar o interessado para pagar uma multa agravada,
‘sob pena de se considerar perdido o direito de praticar o acto’. Simplesmente, no caso sub judicio, não foi detectada a entrega fora de prazo da reclamação por essa secretaria, risco que impende sobre o reclamante. Acontece também que o Tribunal Constitucional tem entendido que não lhe cabe suprir as omissões das partes ou da secretaria do tribunal recorrido.
(...) Muito recentemente, em acórdão que recaiu sobre pedido de aclaração formulado pelo reclamante relativamente ao teor do acórdão n.º 910/96, ainda inédito - em situação idêntica à presente - teve ocasião a 2ª Secção do Tribunal Constitucional de fazer a seguinte afirmação:
‘Anote-se, no entanto, que, se acaso, a reclamação pudesse ter sido apresentada, embora mediante pagamento de multa, até à data em que o foi (23 de Fevereiro de
1996), como tal multa não foi paga - e não o foi, porque nem o reclamante a pagou de imediato, como lhe cumpria (cfr. o n.º 5 do art. 145º do Código de Processo Civil), nem a secretaria do Supremo Tribunal de Justiça o notificou para a pagar em dobro (cfr. o n.º 6 do mesmo artigo 146º), - a este Tribunal só restava concluir, como concluiu, pela intempestividade da dita reclamação. Na verdade, o pagamento da multa prevista no artigo 145º do Código de Processo Civil constitui condição suspensiva de admissibilidade da prática do acto processual (n.º 5) ou condição resolutiva de validade do acto que antes se praticou (n.º 6). Por isso, não se verificando a condição, o acto praticado tem que ser havido como extemporâneo.’ Perfilha-se por inteiro este ponto de vista, razão por que não pode conhecer-se do objecto da reclamação, dada a sua intempestividade (art. 688º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 69º da Lei do Tribunal Constitucional).' E no segundo (o Acórdão n.º 444/98), em caso em era que era já aplicável o texto do Código de Processo Civil que entrou em vigor em 1997 (a que se referem as reclamantes), reiterou-se inteiramente esta jurisprudência, segundo a qual não cabe ao Tribunal Constitucional suprir as omissões das partes ou da secretaria do tribunal a quo, aderindo aos fundamentos do Acórdão n.º 313/97.
5. Diga-se, ainda – e de forma decisiva –, que mesmo que se seguisse no presente caso o entendimento segundo o qual a falta de notificação oficiosa pela secretaria do tribunal recorrido se há-de configurar como uma causa de nulidade, esta haveria de ter sido arguida pelos interessados, sob pena de sanação, na primeira ocasião em que tivessem possibilidade de o fazer (vejam-se os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 29/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., págs. 455 e seguintes, e n.º 603/94, no Diário da República, II Série, nº 2, de
3 de Janeiro de 1995, onde se reafirma a irrelevância da omissão processual da secretaria do tribunal recorrido). Pelo que, ainda assim, a conclusão a que se chegaria no presente caso não poderia ser diferente, uma vez que nenhuma nulidade foi arguida atempadamente pelas reclamantes, que, aliás, se vieram a pronunciar sobre tal falta no presente pedido de reforma, sem mesmo aqui arguirem qualquer nulidade (v. o artigo 205º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Civil).
6. Nada havendo, portanto, a reformar no Acórdão n.º 571/99, e em consonância com a lei e com a jurisprudência deste Tribunal, o correspondente pedido tem de ser desatendido. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide desatender o pedido de reforma do Acórdão n.º 571/99, tirado em conferência na 2ª secção, e condenar as reclamantes em custas, com 10 unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 3 de Fevereiro de 2000 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa