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Proc. nº 225/99
1ª Secção/Plenário Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
(Consª Maria Fernanda Palma)
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
1. Não tendo a lista proposta por um grupo de cidadãos eleitores, denominada Unidos por Ponte de S. Vicente, concorrente à eleição da assembleia de freguesia de Ponte de S. Vicente, no município de Vila Verde, prestado as contas eleitorais a que estava obrigada, nos termos do preceituado no artigo 25º da Lei nº 72/93, de 30 de Novembro, foi levantado o correspondente auto de notícia e notificada a primeira subscritora daquela lista, P., para se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe era imputada, em conformidade com o disposto no artigo 50º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações que foram posteriormente introduzidas.
Respondeu a referida primeira subscritora da lista que esta «não obteve qualquer receita» e que os cidadãos eleitores proponentes não «efectuaram quaisquer despesas com a apresentação da candidatura e com a campanha eleitoral».
Por despacho de 3 de Março de 1999, o Presidente da Comissão Nacional de Eleições julgou verificada a contra-ordenação e, consequentemente, condenou a referida P. em coima no valor de um salário mínimo mensal nacional, tendo em conta não terem sido «apuradas circunstâncias que agravem ou atenuem a sua responsabilidade, além da invocada de não terem sido movimentadas verbas em dinheiro durante a campanha eleitoral, que nitidamente reduz muitíssimo a ilicitude do facto».
Nesse mesmo despacho, assinalou o Presidente da Comissão Nacional de Eleições que a CNE tivera a preocupação «de fazer chegar ao conhecimento de todos os intervenientes a necessidade de cumprimento» do dever de apresentação de contas, pelo que, «antes de iniciado o prazo de apresentação de candidaturas, enviou para os tribunais onde elas se verificariam um folheto explicativo da necessidade de serem apresentadas contas, ainda que não tivessem sido movimentadas verbas de receitas e despesas, com o pedido de esses tribunais entregarem a cada uma das candidaturas, cópias desse folheto».
2. Deste despacho condenatório recorreu a mencionada P. para o Tribunal Constitucional, invocando, em suma, que é pobre, que não tinha a obrigação de saber que o seu contributo para o funcionamento da democracia lhe poderia acarretar prejuízos materiais e que desconhecia, por completo, a obrigatoriedade de apresentar contas (que, aliás, inexistiram), pelo que agiu sem dolo, não lhe podendo outrossim ser assacada qualquer responsabilidade em sede de negligência ou mera culpa.
Nesta conformidade, conclui: A recorrente actuou sem consciência da ilicitude do acto, pelo que deverá a mesma ser absolvida ou, por mera cautela, ser-lhe aplicada uma pena de admoestação.
3. A questão que se suscita nos presentes autos já foi anteriormente analisada por este Tribunal relativamente a situações idênticas nos Acórdãos nº
450/99, nº 451/99 e nº 452/99 (todos ainda inéditos).
Neste último aresto, afirmou-se: A Lei n.º 72/93 de 30 de Novembro sobre financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais estabelece efectivamente no seu artigo 20º que 'no prazo máximo de 90 dias a partir da data da proclamação oficial dos resultados, cada candidatura presta contas discriminadas da sua campanha eleitoral à Comissão Nacional de Eleições'.
Para a não prestação de contas rege o artigo 25º da Lei, onde se estabelece que 'Os candidatos e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores que não prestem contas eleitorais nos termos do artigo 20º e do n.º2 do artigo 21º são punidos com a coima mínima no valor de um salário mínimo mensal nacional e máxima no valor de 10 salários mínimos mensais nacionais'.
A proclamação oficial dos resultados da eleição em causa foi feita através do Diário da República, n.º 51, Iª Série-B Suplemento, de 2 de Março de 1998, distribuído em 29 de Abril de 1998.
Não tendo sido as contas apresentadas dentro do período de 90 dias referido, consumou-se o comportamento contra-ordenacional.
E, a seguir, acrescentou-se: Nos termos do regime geral das contra-ordenações, que é aplicável no presente caso, age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável (artigo 9º, n.º1) e, se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada (n.º2 do mesmo artigo 9º, do Decreto-Lei n.º 432/82, de 27 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei n.º 2444/95, de 14 de Setembro).
Em face desta norma, pergunta-se se a não apresentação de contas por alegado desconhecimento de um tal dever implica um juízo de reprovação, tendo em conta a pessoa da recorrente e o contexto sócio-económico em que se insere, designadamente no plano da não exigibilidade do conhecimento desse dever.
Certo é que a Comissão Nacional de Eleições fez chegar ao conhecimento de todos os intervenientes a necessidade de cumprir o dever de prestação de contas. 'Nomeadamente, antes de iniciado o prazo de apresentação de candidaturas, enviou para os tribunais onde elas se verificariam um folheto explicativo da necessidade de serem prestadas contas, ainda que não tivessem sido movimentadas verbas de receitas e despesas, com o pedido de esse tribunais entregarem a cada uma das candidaturas, cópias desse folheto', conforme se lê no despacho recorrido que aplicou a coima. Trata-se de uma matéria fáctica que não
é infirmada pela recorrente.
Por outro lado, os autos não fornecem elementos que permitam concluir pelo não conhecimento, por parte da primeira proponente da lista, da obrigação que sobre ela impendia. Entende assim o Tribunal que a recorrente teve oportunidade de conhecer os deveres decorrentes da candidatura de que foi primeira proponente, tanto mais que se trata de deveres específicos dirigidos apenas aos cidadãos que pretendem exercer actividade política. A recorrente, apesar de tal oportunidade, veio a alhear-se do cumprimento daquela obrigação de, no prazo máximo de 90 dias a contar da data da proclamação oficial dos resultados das eleições autárquicas, prestar contas à CNE. Isto, sem embargo de a própria 'falta de consciência da ilicitude' - que nos termos do regime geral das contra-ordenações justifica a especial atenuação da coima, segundo o nº 2 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 433/82, de 7 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro - lhe continuar a ser censurável, tendo em conta as acrescidas responsabilidades cívicas em que incorre alguém que assume, voluntariamente, o estatuto de primeiro subscritor de uma lista de cidadãos eleitores.
Finalmente, concluiu-se: Isto posto, na apreciação e graduação da responsabilidade que impendem sobre a arguida, importa ter em conta que no despacho em apreciação a coima foi fixada no seu mínimo legal de um salário mínimo mensal por se ter atendido a que 'Não estão apuradas circunstâncias que agravem ou atenuem a sua responsabilidade, além da invocada de não terem sido movimentadas verbas em dinheiro durante a campanha eleitoral, que nitidamente reduz muitíssimo a ilicitude do facto'. Por outro lado, aceita-se que a recorrente 'é pobre (…)', conforme veio dizer nos autos . Acresce ainda que é esta a primeira vez em que receberam aplicação as normas que impõem a obrigação de apresentação de contas nas eleições para os órgãos autárquicos. Tal circunstância alguma influência terá tido no comportamento dos proponentes de candidaturas de cidadãos eleitores, que ainda não teriam apreendido na íntegra as consequências das suas omissões, e alguma relevância há-de merecer. Aceite o circunstancialismo descrito nos presentes autos, entende o Tribunal que tudo aconselha a que, independentemente do uso da faculdade prevista no nº2 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, de que o Tribunal se poderia servir, se lance mão do poder de dispensar a aplicação da pena, nos termos que se encontram prescritos no nº1 do artigo 74º do Código Penal, até porque, em medida significativa, no caso em apreciação, se verifica a concorrência das situações indicadas nas alíneas desta última disposição.
Não se vê motivo para alterar esta jurisprudência, que assim ora se confirma, por ser inteiramente aplicável ao caso dos autos.
4. Nestes termos, ponderando o preceituado nos artigos 1º, 9º, nº 2, e 32º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, e pelo Decreto-Lei nº 244/95, de
14 de Setembro, e no artigo 74º, nº 1, do Código Penal, concede-se provimento parcial ao recurso, por se considerar a recorrente P. autora do ilícito previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 20º, nº 1, 19º, nº 1, e 25º, nº 1, da Lei nº 72/93, de 30 de Novembro, mas se dispensar a aplicação da correspondente coima.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC. Lisboa, 22 de Setembro de 1999 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Messias Bento Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto da Exmª Consª Maria Fernanda Palma) Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto Tendo sido a primeira relatora do presente processo, a minha posição não obteve vencimento, de modo que votei vencida pelos fundamentos seguintes, que correspondem, no essencial, à posição que expus no projecto de Acórdão por mim apresentado.
A Os fundamentos da decisão recorrida e os factos provados
1. A recorrente nos presentes autos foi a primeira subscritora da Lista X – Unidos por Ponte de São Vicente, concorrente às eleições autárquicas de 14 de Dezembro de 1997. Tendo sido condenada pela prática de uma contra-ordenação referente à não prestação de contas à Comissão Nacional de Eleições (cf. artigos
19º, nº 1, 20º, nº 1, e 25º, nº 1, da Lei nº 72/93, de 30 de Novembro), alega o desconhecimento da obrigação de prestação de contas que sobre si impendia.
Na decisão recorrida afirma-se ter havido a preocupação de fazer chegar ao conhecimento de todos os intervenientes o conhecimento do dever legal de prestação de contas, através do envio para os tribunais de um folheto explicativo.
Todavia, dos autos não resulta com segurança que tenha existido um efectivo conhecimento e compreensão por parte da recorrente de todos os deveres inerentes ao acto de subscrição de uma lista de cidadãos eleitores. Na verdade, os elementos constantes do processo apenas permitem concluir com segurança que foram criadas condições gerais e exteriores pela Comissão Nacional de Eleições para que os membros das listas tomassem conhecimento dos respectivos deveres legais. A subscrição da lista por parte da ora recorrente consubstanciou um primeiro acto de participação política, eventualmente isolado, já que a actividade da recorrente é a de 'doméstica'. A lista não realizou nem despesas nem receitas durante a campanha. Por último, o critério legal de determinação do responsável pela infracção (o primeiro subscritor da lista) não consubstancia, do ponto de vista racional, o único critério possível, nem mesmo um critério absolutamente previsível. Assim, trata-se de um regime novo, aplicado a uma lista de cidadãos eleitores (e não, por exemplo, a um partido, com uma organização tendencialmente mais eficaz) que não efectuou despesas nem obteve receitas (não havendo, nessa medida, contacto com questões pecuniárias), sendo responsável pela infracção o primeiro subscritor da lista (diferentemente do que acontece com os partidos). A decisão condenatória, porém, não se fundamenta na prova do efectivo conhecimento da obrigação de prestar contas por parte da arguida. Não considera, consequentemente, os elementos referidos. Todavia, todos estes elementos fundamentam a subsistência de uma dúvida plausível desde logo acerca da representação intelectual por parte da arguida das obrigações emergentes da prática do acto de subscrição de uma lista concorrente às eleições autárquicas, nomeadamente da obrigação (que impende sobre o primeiro subscritor) de realizar e de apresentar as contas da campanha à Comissão Nacional de Eleições ou pelo menos de um conhecimento preciso dos termos daquela obrigação. Finalmente, o não conhecimento efectivo ou pelo menos o não conhecimento preciso do comando legal não correspondeu a uma atitude de indiferença ou necessariamente à falta de comportamento adequado a obter a informação necessária, tendo em conta as particulares condições de participação política de arguida, a sua inexperiência e o facto de não terem existido receitas e despesas associadas à candidatura.
Deste modo, ter-se-á que concluir que dos factos provados não resulta um conhecimento preciso da proibição legal no caso concreto nem uma consciência clara da prática de um acto ilícito punível com uma coima.
B A qualificação jurídica dos factos
2. Considerando não ter sido provado que a arguida conhecia rigorosamente a necessidade de prestar contas à Comissão Nacional de Eleições, no seu caso concreto, estaremos perante um mero desfasamento entre a valoração que faz de uma determinada obrigação que sobre si impende e a valoração efectivamente vigente no ordenamento jurídico, configurada no Decreto-Lei nº
433/82 (artigo 9º) e no Código Penal (artigo 17º) como um erro sobre a ilicitude?
No caso concreto, o conhecimento impreciso impede uma verificação das condições de liberdade de motivação pelo Direito. Trata-se de uma situação que se coloca necessária e logicamente antes da directa falta da consciência da ilicitude, na medida em que o agente, nesta situação, não tem acesso a todos os elementos razoavelmente indispensáveis à formação da sua consciência jurídica. Consequentemente, não estará em causa a censura da deficiente formação da consciência jurídica do agente (o que Figueiredo Dias designa como erro de valoração - cf. Problema da Consciência da Ilicitude no Direito Penal, 4ª edição, 1995, p. 396 e ss), mas sim um eventual incumprimento de um dever de diligência na apreensão de todos os elementos objectivos necessários à formação dessa consciência. Teria, portanto, aplicação nos autos o disposto no artigo 8º, nº 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações (aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro).
Ora, o artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 433/82, estabelece que só
é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos previstos na lei, com negligência. Uma vez que o artigo 25º, nº 1, da Lei nº 72/93, de 30 de Novembro, não prevê a negligência, a contra-ordenação aí prevista é necessariamente dolosa. Desse modo, nos termos do referido artigo 8º, nº 2, haverá que concluir pela exclusão do dolo e da responsabilidade contra-ordenacional.
3. Mas mesmo que não se entenda que, no caso sub judice, estamos verdadeiramente perante um erro sobre uma proibição nos termos do artigo 8º, nº
2, do Regime Geral das Contra-Ordenações, cuja natureza é o de um verdadeiro erro sobre a factualidade típica - sendo antes a situação qualificável como erro sobre a ilicitude, por o agente dispor ainda de um conhecimento, embora impreciso, de que aquela actividade esta sujeita a vários deveres legais - sempre haveria que rejeitar a censurabilidade de tal erro.
Com efeito, não resulta da consciência ética geral, naturalmente, que seja necessário prestar contas numa eleição local em que não houve receitas nem despesas. A própria actividade de prestação de contas por parte dos agentes da participação política corresponde a uma exigência de uma democracia desenvolvida, pretendendo regular a isenção da actividade política (no seu desiderato de realização do interesse geral) relativamente a outros sectores do poder social e dos interesses particulares que o sustentam. Deste modo, considerando o facto de estarmos perante eleições locais e a participação de cidadãos sem grande experiência política, não poderemos considerar que esteja associada a um vago ou impreciso conhecimento da lei uma censurável falta de consciência da ilicitude.
Diferentemente de hipóteses em que a consciência da ilicitude que justifica a censura do agente coincide com uma consciência ética comum ou com o mero reconhecimento de que o facto é proibido pelo Estado, neste caso é necessária uma consciência da ilicitude mais precisa, para, de acordo com o princípio da culpa, justificar a censura do facto. A punição pelo ilícito contra-ordenacional, neste caso, estaria suportada meramente pela violação do dever de conhecer as exigências legais e não directamente pela sua violação plenamente consciente e livre.
Ora, não só a contra-ordenação aqui em causa não corresponde a uma mera violação de deveres de cuidado e de conhecimento como também o agente não revelou verdadeiramente menosprezo ou falta de consideração pelos deveres legais, revelando apenas inexperiência e imprecisa compreensão do Direito.
Finalmente, a impregnação deste ilícito contra-ordenacional de uma elevada componente repressiva conduziria, nesta fase de implementação de um novo sistema, a uma forte inibição da actividade política por parte de cidadãos que não têm, à partida, experiência e cultura política desenvolvidas, desmotivando-os ou tornando-os meros exemplos para aprendizagem por outros das regras da participação política.
A fundamentação do ilícito num dever de informação precisa compreende-se quando o agente tenha outras qualificações (nomeadamente por se tratar de partido político) e numa fase mais avançada da participação política ao nível local dos cidadãos no nosso país.
Assim, também em face do disposto no artigo 9º do Decreto-Lei nº
433/82, haveria que concluir que a culpa do agente não seria suficiente para fundamentar um juízo de censurabilidade.
4. Finalmente, não será aceitável afirmar a censurabilidade e vir a dispensar a pena numa situação em que é manifesto que a razão do não sancionamento não é meramente relevante no plano preventivo. Trata-se, antes, de uma situação em que os agentes não dispuseram de todas as condições para em plena inteligência e liberdade se motivarem pelo Direito. A pena de culpa, neste caso, vem a ser justificada meramente num plano de prevenção geral o que contraria o princípio da culpa e a máxima que lhe é inerente de que cada pessoa
é um fim e não um meio para o Direito.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Não votei o acórdão, por entender que, não sendo punível a negligência (cfr. nºº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro), não foram obtidos elementos probatórios suficientes para concluir no sentido da existência de dolo, sendo certo que não pode o Tribunal presumi-lo. José Manuel Cardoso da Costa