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Processo nº 826/96 ACÓRDÃO Nº 544/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. D... e outras interpuseram recurso para o Plenário da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo do acórdão da mesma Secção, que declarou a nulidade dos despachos do SECRETÁRIO DE ESTADO DA SEGURANÇA SOCIAL (publicados no Diário da República, II série, de 6 de Julho de 1984, de 4 de Janeiro, 30 de Julho e 19 de Novembro, de 1985), que, sem precedência de concurso público, as tinha nomeado técnicas principais de serviço social, no Centro Regional de Segurança Social de Lisboa.
Pelo acórdão de 3 de Outubro de 1996, o Pleno negou provimento ao recurso, por ter entendido, tal como já o fizera a Secção, que as nomeações das recorrentes, feitas para a categoria superior à que possuíam, sem precedência de concurso público, padeciam de nulidade. E isso, porque o artigo 21º do Decreto-Lei nº
41/94, de 3 de Fevereiro, impunha a realização de concurso público, não obstante o serviço para que as nomeações foram feitas - o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa - se achar em regime de instalação. Neste aresto, recusou-se aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade
(violação do disposto nos artigos 18º, nºs 2 e 3, e 269º, nº 2, da Constituição), ao artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho, uma vez que - disse-se - o legislador não pode, mediante a edição de normas com eficácia retroactiva, 'convalidar actos administrativos originariamente ilegais, obstruindo, sem qualquer legitimação constitucional, o acesso dos interessados ao recurso contencioso'.
2. É deste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (de 3 de Outubro de 1996) que, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, vêm interpostos os presentes recursos (um, pelo MINISTÉRIO PÚBLICO; o outro, pelas recorrentes), para apreciação da constitucionalidade da norma que se contém no mencionado artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho.
Neste Tribunal, alegou o PROCURADOR-GERAL aqui em exercício, tendo formulado as seguintes conclusões:
1º - A definição das formas de recrutamento e selecção do pessoal e de provimento de vagas na função pública, a realizar, aliás, em regra, através de concurso público por força do nº 2 do artigo47º da Constituição - matéria regulada nos artigos 21º do Decreto-Lei nº 41/84 e 5º e seguintes do Decreto-Lei nº 44/84, ambos de 3 de Fevereiro, editados na sequência de autorização legislativa conferida ao Governo para prover sobre tal tema - respeita às 'bases do regime e âmbito da função pública', nos termos da alínea v) do nº 1 do artigo
168º da Constituição da república Portuguesa, pelo que terá de constar necessariamente de diploma proveniente da Assembleia da República ou editado pelo Governo na sequência de autorização legislativa.
2º - A norma constante do artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Junho, - diploma editado no exercício da competência legislativa própria do Governo - ao dispensar o concurso público, com efeitos retroactivos, tendo em vista a regularização ou convalidação de actos de nomeação em comissão de serviço, praticados durante o período de instalação do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, é organicamente inconstitucional, por violação daquele preceito da Lei Fundamental.
3º - Termos em que deverá confirmar-se, embora por fundamento diverso, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
As recorrentes apresentaram igualmente alegações, que concluíram do modo seguinte: A) A garantia de recurso contencioso, constante do actual nº 4 do artº 268º da Constituição - como em anteriores redacções no artº 268 nº 3 e 269º nº 2 - diz respeito aos puros actos administrativos em sentido estrito. Não é outro, aliás, o entendimento formulado pelo Ac. nº 20/83 de 16 de Novembro de 1983 do Tribunal Constitucional; B) A norma do artº 36º do Decreto-Lei nº 260/93 é um acto legislativo - artº 115 nº 1 da Constituição da República - e não um acto administrativo, pelo que não se coloca sequer a questão da garantia de recurso; C) A violação da garantia de recurso contencioso ocorrendo de modo mediato, não se afigura a melhor doutrina e jurisprudência, sendo claramente rejeitada no Ac.
437 da Comissão Constitucional e no Ac. 20/83 do tribunal Constitucional e só aflorada, na sequência de parte da doutrina italiana, no Ac. 23/83 do tribunal Constitucional, como no Acórdão nº 156 de 29 de Maio de 1979 da comissão Constitucional (BMJ 291 págs.297 e sgs.). Equivale a consagrar a persistência no erro e a expectativa a dele beneficiar, fazendo sobrepor a segurança, confundida com a imobilidade, à própria justiça; D) Os acórdãos nºs 20/83 e 23/83 do Tribunal Constitucional, como o Acórdão nº
437 da Comissão Constitucional, consagram antes a tese segundo a qual não é a garantia de recurso mas o carácter jurídico-constitucionalmente inaceitável da retroactividade de determinada norma que haverá que apreciar. O historial do caso sub-judice demonstra, com clareza, como procurou demonstrar-se sob o nº 22º das presentes alegações, que as condições consideradas no Acórdão nº 437 da Comissão Constitucional como hipóteses capazes de afastar a noção de retroactividade constitucionalmente ilegítima se verificam. Trata-se, e claramente, duma situação jurídica em que uma situação, eventualmente regulada por lei de cumprimento impossível, é corrigida, a retroactividade da norma do artº 36º do Decreto-Lei nº 260/93 não ofende a Constituição; E) A norma em análise não é inovatória e como tal não contende com a reserva de competência legislativa estabelecida na alínea v) do nº 1 do artº 168º da Constituição da República, já que se insere, em plena continuidade, no sentido e alcance do Decreto-Lei nº 413/71 de 27 de Setembro, Decreto-Lei nº 41/84 de 3 de Fevereiro - com a particular importância deste ser editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 14/83 de 25 de Agosto - Decreto-Lei nº 248/85 de 15 de Julho e Decreto-Lei nº 271/88 de 2 de Agosto; F) Não sendo inconstitucional a norma do artº 36º do Decreto-Lei nº 260/93 deve ser revogada a decisão recorrida, impondo-se a aplicação da referida norma e consequentemente reconhecendo-se a razão que assiste às recorrentes.
As recorridas L... e M... terminaram as suas alegações, dizendo que se deve
'confirmar o juízo de inconstitucionalidade material da norma' que se contém no artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir a questão de saber se a norma que se contém no artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho, é (ou não) inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. A norma sub iudicio: O Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho, reorganizou os centros regionais de segurança social, que concebeu como 'institutos públicos dotados de autonomia administrativa e financeira' (cf. artigo 1º, nº 1).
No artigo 26º deste diploma, dispôs-se que ao pessoal dos centros regionais de segurança social (salvo àquele que, ao abrigo do Decreto-Lei nºs 278/82, de 20 de Julho, e do Decreto-Lei nº 106/92, de 30 de Maio, 'tenha optado pela legislação em vigor nas caixas de previdência') se aplica o regime jurídico da função pública (nº 1). Por isso, o provimento dos lugares dos quadros deve fazer-se 'de acordo com as normas em vigor na função pública' (nº 2).
Trata-se de disciplina idêntica à que se continha nos artigos 19º e 21º do Decreto-Lei nº 136/83, de 21 de Março, que antes disciplinava tais centros regionais, cuja criação fora prevista no Decreto nº 79/79, de 2 de Agosto.
Num certo entendimento da lei, daqui decorre que 'o concurso é o processo de recrutamento e selecção normal e obrigatório' para o provimento dos lugares dos quadros do pessoal dos ditos centros regionais (cf. artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro - diploma, entretanto, alterado pelo Decreto-Lei nº 215/95, de 22 de Agosto) – ambos já revogados pelo Decreto-Lei nº
204/98, de 11 de Julho, que mantém o concurso como forma normal de provimento de lugares. Quando, porém, foram feitas as nomeações das recorrentes (ou seja, no período que decorre entre 6 de Julho de 1984 e 19 de Novembro de 1985), os diplomas legais que regulavam a matéria eram o Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro - diploma que, posteriormente, foi alterado pelo Decreto-Lei nº 299/85, de 29 de Junho, e, por último, revogado parcialmente pelo Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro - e o Decreto-Lei nº 44/84, de 3 de Fevereiro - diploma, que veio a ser alterado pelo Decreto-Lei nº 446/88, de 9 de Dezembro, e, mais tarde, revogado pelo Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro. No entanto, a regra segundo a qual o concurso era o processo de recrutamento e selecção normal e obrigatório para o provimento de lugares na função pública achar-se-ia já aí consagrada, constituindo, assim, um princípio básico fundamental do regime da função pública. De facto, no artigo 21º deste Decreto-Lei nº 41/84, dispunha-se que 'o concurso
é o processo de recrutamento e selecção normal e obrigatório para o provimento de lugares vagos que determinado serviço, para prosseguir os seus fins, necessita de prover, podendo ser também utilizado para a constituição de reservas de recrutamento, com vista à satisfação de necessidades provisionais de pessoal, independentemente da existência de vagas'. No artigo 5º do Decreto-Lei nº 44/84, prescrevia-se que 'o concurso é o processo de recrutamento e selecção normal e obrigatório' (nº 1), devendo 'a obrigatoriedade do concurso' ser entendida 'sem prejuízo dos instrumentos da mobilidade profissional e territorial previstos na lei' (nº 2). E no artigo 1º daquele Decreto-Lei nº
41/84, preceituava-se que este diploma se aplicava a 'todos os serviços da administração central, incluindo os [...] institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos, não excluindo os serviços em regime de instalação'. Significa isto que a regra do concurso como processo normal e obrigatório para o recrutamento e selecção do pessoal a prover na função pública - ao menos numa certa interpretação da lei – valia, mesmo para os serviços que se encontravam em regime de instalação, como era o caso do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa. Seja como for e ainda que fosse possível outro entendimento da lei, esta interpretação era, pelo menos, a que o Supremo Tribunal Administrativo perfilhava, como decorre dos seguintes acórdãos: de 18 de Janeiro de 1990
(processo nº 24.870), publicado no Apêndice ao Diário da República, 1990, página
302; de 3 de Outubro de 1996 (processo nº 29.818), publicado no dito Apêndice, de 1996, página 675, do Pleno, a confirmar o acórdão de 28 de Março de 1995; de
7 de Maio de 1992 (processo nº 26.576), publicado no mesmo Apêndice, de 1992, página 2815; de 7 de Maio de 1992 (processo nº 29.494), publicado no mencionado Apêndice, de 1992, página 2096; e de 25 de Novembro de 1993 (processo nº
26.576), do Pleno, publicado no Apêndice de 1993, página 586, a confirmar o acórdão de 7 de Maio de 1992.
No que concerne ao regime de instalação, regista-se que, antes da publicação do Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro, o já citado Decreto-Lei nº 136/83, de
21 de Março - que criou os centros regionais de segurança social, definindo-os como 'instituições de segurança social que têm por finalidade assegurar, a nível regional, a concessão de prestações de segurança social e a prossecução de modalidades de acção social previstas na lei e nos regulamentos' (cf. artigo 1º)
- preceituava que, no termo do regime de instalação, o preenchimento dos lugares dos quadros 'será feito, com dispensa de quaisquer formalidades, salvo a anotação pelo Tribunal de Contas e a publicação do Diário da República, por despacho do Ministro dos Assuntos Sociais, de entre o pessoal dos centros e o pessoal de instituições de previdência que a qualquer título naqueles preste serviço no termo do regime de instalação' (cf. artigo 31º, nº 2). E, no artigo
32º, acrescentava que esses provimentos 'far-se-ão, a título definitivo, nos lugares da categoria que os funcionários e agentes possuírem no fim do regime de instalação' (nº 1); e que, 'em caso de alteração de categoria durante o regime de instalação', esses provimentos 'ficam dependentes da observância do requisito de habilitações legais, sem prejuízo do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei nº
278/82, de 20 de Julho'. Aliás, já antes da publicação do Decreto-Lei nº 136/83, de 21 de Março, o Decreto-Lei nº 413/71, de 27 de Setembro, no artigo 82º, prescrevia que, para assegurar o funcionamento dos serviços e estabelecimentos de saúde e assistência em regime de instalação - regime cuja duração máxima era de dois anos, com possibilidade de prorrogação por mais um ano, 'em casos excepcionais devidamente justificados' (cf. artigo 79º, nº 2, entretanto revogado pelo artigo 16º do Decreto-Lei nº 215/97, de 18 de Agosto, que veio regular o regime de instalação na Administração Pública) -, 'o Ministro da Saúde e Assistência poderá autorizar livremente a admissão do pessoal indispensável [...], sem prejuízo, porém, das exigências das habilitações de base e do limite de idade, estabelecidas para lugares de idênticas categorias dos quadros ou das carreiras profissionais' (nº
1). Acrescentava que 'as admissões são feitas em regime de prestação eventual de serviço, salvo se recaírem em funcionários públicos ou administrativos, caso em que serão feitas em comissão de serviço' (nº 2). Dispunha, por último, que 'as admissões caducam, findo o período de instalação, se os admitidos não vierem a ingressar nos quadros do respectivo serviço ou estabelecimento' (cf. nº 4).
É neste quadro que a norma aqui sub iudicio - ou seja, o artigo 36º do mencionado Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho - é editada.
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. O artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho, aqui sub iudicio, prescreve: As nomeações em comissão de serviço, efectuadas no Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, durante o período de instalação, antes da aprovação do mapa de pessoal por despacho dos secretários de Estado da Administração Pública, do Orçamento e da Segurança Social, publicado no Diário da República, 2ª série, de
30 de Outubro de 1985, consideram-se regularizadas, desde que, à data da nomeação, se encontrassem preenchidos os requisitos habilitacionais e de tempo de serviço.
Esta norma veio, pois, considerar regularizadas as nomeações de funcionários em comissão de serviço no Centro Regional de Segurança Social de Lisboa feitas durante o período de instalação, que não tenham sido precedidas de concurso público. De facto, para que essas nomeações fiquem regularizadas, basta que os funcionários nomeados tenham os requisitos habilitacionais e o tempo de serviço exigidos por lei.
Ora, tendo presente que o Supremo Tribunal Administrativo entendia que o concurso público era o processo normal e obrigatório de selecção e recrutamento do pessoal a prover na função pública, mesmo quando o respectivo serviço se encontrava em regime de instalação, tal significa que a norma aqui em apreciação veio, com eficácia retroactiva, dispensar, quanto a certos funcionários
(scilicet, aos funcionários que foram nomeados em comissão de serviço para o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa durante o período de instalação), o concurso público como forma desse recrutamento e selecção. E, dessa forma, veio sanar actos de nomeação ilegais – é dizer, as nomeações que tinham sido feitas, em comissão de serviço, sem precedência de concurso público, para aquele Centro Regional de Segurança Social. Dizendo de outro modo: tal norma veio, com eficácia retroactiva, eliminar um fundamento do recurso contencioso desses actos administrativos. E, com isso, pretendeu subtrair esses actos de nomeação ao controlo contencioso, o que fez, no que ao presente caso concerne, num momento em que as ora recorridas L... e M..., juntamente com outras, já tinham impugnado contenciosamente os despachos de nomeação das aqui recorrentes: o respectivo recurso foi, de facto, interposto em 21 de Agosto de 1991 – portanto, antes da edição do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho
5.2. Pois bem: como escreve AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, o legislador, quando
'arranja maneira (ou procura arranjar maneira) de subtrair um acto ilegal, ou o vício de forma de um acto, a controlo contencioso', quer 'o faça expressis et apertis verbis ou pela forma capciosa e desviada de atenuar ex post factum a extensão ou intensidade da vinculação imposta pela lei', viola a garantia do recurso contencioso – garantia que, à data da edição da norma sub iudicio, se achava consagrada no artigo 268º, nº 4, da Constituição (cf. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 113º, página 35, anotação ao acórdão nº 156 da Comissão Constitucional, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 191, página 297). Num tal caso, com efeito, o legislador retira aos cidadãos lesados nos seus direitos e interesses legítimos o direito, que lhes assistia, de fazer anular os actos ilegais ou viciados, pois, ao legalizar o que antes era ilegal, retirou-lhes o fundamento do recurso. Ao fazê-lo, o legislador – como, a outro propósito, este Tribunal teve ocasião de sublinhar ( cf. o acórdão nº 23/83, publicado no Diário da República, II série, de 1 de Fevereiro de 1984) – quis
'obstacular a impugnação vitoriosa dos actos administrativos [...] praticados'.
5.3. Contra a conclusão de que a norma sub iudicio viola o direito ao recurso contencioso – à semelhança do que se fez no acórdão nº 437 da Comissão Constitucional e se repetiu no acórdão nº 20/83 deste Tribunal (aquele, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 314, página 141; e este, no Diário da República, II série, de 1 de Fevereiro de 1984) e, posteriormente, no acórdão nº 93/84 (Acórdãos, 4º vol, p.153) – objectar-se-á que, não obstante alguns interessados (no caso, as aqui recorridas) terem perdido um motivo ou fundamento de recurso contencioso contra os actos de nomeação em causa nos autos, a garantia de recurso contencioso não foi, em si mesma, afectada 'pela circunstância de a lei ordinária eliminar um fundamento de recurso'. De facto – ajuntar-se-á -, tal garantia tem por conteúdo a possibilidade de acesso aos tribunais por parte dos cidadãos para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, mas não pretende 'tutelar concreta e individualmente os fundamentos de recurso – como se um fundamento concreto de recurso, uma vez concedido pela ordem jurídica, não mais pudesse ser retirado por ela e devesse valer eternamente'. E mais: para inconstitucionalizar uma norma jurídica não basta 'a circunstância de ela poder só mediatamente afectar a garantia do recurso contencioso'.
De todo o modo, a norma sub iudicio sempre viola o princípio da confiança,
ínsito na ideia de Estado de Direito, a que se reporta o artigo 2º da Constituição da República. Na verdade, o legislador, ao editá-la, teve o propósito de impedir a impugnação contenciosa dos referidos actos de nomeação, feitos em comissão de serviço, sem precedência de concurso público, para o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa. Foi para isso que ele veio convalidar, retroactivamente, essa nomeações. Ora, a retroactividade da lei não é, em geral, proibida. Mas ela é constitucionalmente inadmissível quando, de forma intolerável, viola a segurança jurídica e a confiança que as pessoas e a comunidade têm direito de depositar na ordem jurídica. Isso mesmo se reconheceu nos citados acórdãos nºs 437 da Comissão Constitucional e 20/83, 23/83 e 93/84 deste Tribunal. Pois isso é o que acontece no caso: efectivamente, as interessadas, já depois de terem interposto o recurso contencioso de anulação, que tinham toda a probabilidade de vencer, dado o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, viram o legislador editar uma norma legal (a norma que aqui está sub iudicio) que frustou todas as suas expectativas de êxito, pois, ao convalidar os actos tidos por ilegais e por elas impugnados, esvaziou de sentido os seus recursos. E este
é o único alcance da norma sub iudicio, pois que ela apenas visa situações do passado. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). julgar inconstitucional – por violação do princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição - a norma constante do artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho;
(b). em consequência, negar provimento aos recursos e confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa,13 de Outubro de 1999 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito (vencido nos termos da declaração de voto junta) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de Voto
1. Votámos vencidos porque, em nosso entender, a solução que fez vencimento assenta na verificação do vício da nulidade dos despachos objecto do recurso contencioso em causa neste processo e, assim, conclui que a norma constante do artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, de 23 de Julho, ao eliminar retroactivamente a causa da nulidade, viola o princípio da confiança contido no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição. Ora a norma impugnada não teve esse alcance. A entrada em vigor dos Decretos-Leis nºs 41/84 e 44/84 não veio excluir a possibilidade de nomeação de pessoal sem precedência de concurso em serviços em regime de instalação. Está por demonstrar que, quando no nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 41/84 se determinou a aplicação do diploma aos serviços em regime de instalação, se pretendesse aplicar-lhes todas as suas normas, e nomeadamente a que define a regra de que o concurso é o meio 'normal e obrigatório' de selecção de pessoal. Com efeito, a indefinição das necessidades de pessoal em serviços que estão ainda em instalação, por um lado, e a necessária flexibilidade e rapidez na respectiva escolha, tendo em conta, por exemplo, o período que em princípio dura o regime de instalação, por outro, são razões suficientes para se justificar a não aplicação de uma disciplina que, não só não é absolutamente obrigatória
(apenas é o procedimento normal), mas também não é de necessária aplicação, por constar de lei geral, a casos especiais. Sucede que o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa gozava, na altura das nomeações em crise, de uma dupla especialidade; em primeiro lugar, por comparação com os outros Centros Regionais de Segurança Social (cfr. o próprio diploma que o criou, o Decreto-Regulamentar nº 3/81, de 15 de Janeiro, ou o preâmbulo do Decreto-Lei nº 136/83, de 21 de Março, ou o Decreto-Lei nº 271/88, de 2 de Agosto); em segundo lugar, dentro dos serviços do Estado, por estar em regime de instalação. Aliás, são as particularidades do Centro Regional de Segurança de Lisboa que explicam a manutenção prolongada deste regime, iniciado com o Decreto-Regulamentar nº 3/81 e sucessivamente prorrogado até ao Decreto-Lei nº
129-D/94, de 27 de Abril, apenas vindo a ser aprovado o mapa de pessoal por despacho dos Secretários de Estado da Administração Pública, do Orçamento e da Segurança Social de 30 de Outubro de 1985, publicado no 3º Suplemento do Diário da República, II Série, da mesma data. Não se considera agora, por não interessar ao caso, o período de instalação posteriormente iniciado com o Decreto-Lei nº 271/88 e mantido até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 260/93. Não se devendo considerar revogado o regime constante dos nºs 2 e 3 do Decreto-Lei nº 413/71, ao abrigo do qual foram exarados os despachos em causa, não enfermam estes do vício de nulidade por procederem à nomeação de pessoal sem precedência de concurso. A norma constante do artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, cuja aprovação se explica pela jurisprudência entretanto formada, como vem indicado no acórdão, não eliminou, na realidade, qualquer vício de que sofressem os despachos por ela abrangidos.
2. Quando a opinião que fez vencimento se refere à violação da confiança tem em vista as expectativas resultantes duma jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo firmada em 1990 (o único acórdão do Supremo Tribunal Administrativo referido anterior à interposição do recurso contencioso em 1991 é de 18 de Janeiro de 1990), e que tem sido reafirmada pelo mesmo Tribunal em acórdão posteriores. Mas importa referir que essa jurisprudência veio contrariar uma prática administrativa uniforme, com base na qual foram proferidos os despachos de nomeação impugnados, que são de 1984 e de 1985, e que foi confirmada pelo artigo 36º do Decreto-Lei nº 260/93, cuja constitucionalidade se discute, o qual pretendeu manifestamente contrariar aquela jurisprudência, 'regularizando' as situações em causa. Mas como a prática administrativa se pretendia legal, e vimos que justificadamente, o Decreto-Lei nº 260/93 vem de facto reafirmar autenticamente a interpretação anterior da Administração. Não é, em suma, inovatório. Há que concluir que as pessoas nomeadas ao abrigo do entendimento legal uniforme da Administração desde 1981 para o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa tinham uma expectativa de sinal contrário mais forte, no sentido que só esta última expectativa correspondia a uma situação efectiva na Administração Pública. Temos, portanto, um conflito das expectativas ou confianças, violadas respectivamente pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e pelo Decreto-Lei nº 260/93. Nestes termos, é claro que não está em causa o princípio constitucional da confiança, que é elemento do Estado de Direito.
Dado o conflito de dois conjuntos de expectativas existentes à partida, não se pode dizer que a afectação de um desses conjuntos de expectativas pelo Decreto-Lei nº 260/93 ofenda em medida inadmissível os titulares das expectativas afectadas. Isto é certamente assim se se aceitar como boa a descrição do regime jurídico que atrás se expôs. Mas mesmo se se entender, como fez vencimento no acórdão, que o Decreto-Lei nº 260/93 foi retroactivo, ainda assim não se trataria de 'uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos', na fórmula da jurisprudência constante deste Tribunal, que o Acórdão cita, mas, em nossa opinião, incorrectamente aplica. Com efeito, como se esclareceu no Acórdão nº 287/90 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
12, pp.171, ss.), tanto nos casos de retroactividade não previstos no nº 3 do artigo 18º da Constituição, como nos de retroactividade inautêntica ou mera retrospectividade - em que a nova lei se aplica a relações jurídicas duradouras não terminadas -, a afectação de expectativas daí resultante só é inadmissível se se aplicarem cumulativamente os dois seguintes critérios:
'a) afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo 18º da Constituição, desde a 1ª revisão). Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária'
(lug.cit., p. 176).
Ora a afectação das expectativas de eventuais concorrentes a lugares já preenchidos por nomeações eventualmente inválidas, em consequência de lei nova que consolidasse as posições adquiridas, não poderia considerar-se uma mudança da ordem jurídica com que os interessados não podiam contar, uma vez que a própria lei que baseava as suas expectativas admitia excepções ao princípio do concurso público (que é apenas, nos termos do artigo 21º do Decreto-Lei nº
41/84, o processo 'normal' para o provimento de lugares). Tão pouco poderia considerar-se uma mudança que não viesse salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos que o legislador pudesse razoavelmente considerar prevalecentes, como seriam os interesses da própria eficácia da Administração Pública, no caso a funcionalidade do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, desde há muito a funcionar com base num regime especial diferente, ou entendido pela administração como diferente.
É claro que estas considerações se aplicam por maioria de razão se a nova lei só veio consolidar uma situação jurídica já existente, embora não reconhecida pela jurisprudência, como entendemos. Uma jurisprudência contestável, mesmo uniforme, não funda expectativas, com base no princípio da confiança, contra lei futura de orientação contrária.
José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza