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Procºnº 855/98
1ª Secção Cons.º Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. - J... veio deduzir embargos à penhora de parte da pensão de reforma por invalidez, que é o único provento do casal e que foi efectuada na execução que lhe foi movida por JV...
O embargante sustenta que a sua pensão de aposentação por invalidez é impenhorável e, caso assim se não entenda, o artigo 824º, n.º1, alínea b) do Código de Processo Civil é inconstitucional.
Por decisão de 23 de Janeiro de 1997, o Juiz do Tribunal de Círculo de Penafiel julgou os embargos deduzidos 'manifestamente intempestivos', pelo que os rejeitou. Mas, refere ainda que 'mesmo que assim se não entendesse - o que de todo se nos afigura irrazoável - , atento o fundamento da cota de fls. 44, sempre os presentes embargos teriam de ser rejeitados uma vez que o fundamento dos mesmos se não ajusta ao disposto nos artºs 813º a 815º do CPC, nos termos do artigo 817º, nº1, alínea c) do CPC.'
Notificado desta decisão J... interpôs recurso de agravo para a Relação do Porto que, por acórdão de 9 de Junho de 1998, decidiu negar provimento ao recurso.
A Relação veio a afastar o fundamento da intempestividade dos embargos, porém, mesmo assim entendeu que os mesmos deviam improceder uma vez que se mantinha o segundo fundamento invocado para a sua rejeição liminar: o de que o fundamento dos embargos se não ajusta ao disposto nos artigos 813º a 815º do Código de Processo Civil (CPC). Quanto à questão da inconstitucionalidade do artigo 824º, n.º1, alínea b), do CPC, a Relação entende que o mesmo não é materialmente inconstitucional (tal como o artigo 824º, nº2, do mesmo código).
Notificado desta decisão, o embargante veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Lei Fundamental do artigo 824º, nº1, alínea b) do Código de Processo Civil (CPC).
2. - Neste Tribunal, apenas o embargante e recorrente alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
' - a reforma do recorrente paga pela C.G.D. com base na sua invalidez no valor de 38.758$ deve ser considerada impenhorável, por ser inferior ao salário mínimo nacional.
- O artigo 824º do Código de Processo Civil consagra direito substantivo;
- E deve ser considerado materialmente inconstitucional ao permitir a penhora de bens indispensáveis à sobrevivência do respectivo beneficiário, como sucede no caso de serem inferiores ao salário mínimo nacional.
- O princípio legal da impenhorabilidade da pensão de reforma inferior ao salário mínimo nacional, está já consagrado na Base XXVI da Lei 2115, de
18/1/62;
- A penhora de 1/6 da reforma do recorrente viola tal disposição legal e ainda os artigos 1º, 59º, n.º1, alínea a), e) e f) e n.º2 e sua alínea a) e ainda 9º, alínea d), 18º, 63º, n.ºs 3 e 4, 67º, nºs 1 e 2, alínea a) e 81º, todos da Constituição da República Portuguesa.
- O douto despacho proferido em 1ª instância e o douto acórdão da Relação do Porto violaram tais disposições legais pelo que devem ser revogados.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - A norma que vem questionada nos presentes autos estabelece que:
'Artigo 824º Bens parcialmente penhoráveis
1. Não podem ser penhorados: a. Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado; b. Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante
2. A parte penhorável dos rendimentos referidos no número anterior é fixado pelo juiz entre um terço e um sexto, segundo o seu prudente arbítrio, tendo em atenção a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado.
1. Pode o juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o n.º1, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar.'
O embargante e recorrente entende que a norma questionada da alínea b) do nº1 do artigo 824º padece de inconstitucionalidade material na medida em que permite a penhora de uma pensão de reforma por invalidez de valor inferior ao salário mínimo nacional.
Será, de facto, assim?
O Tribunal Constitucional tem tido várias pronúncias sobre a questão da impenhorabilidade de bens, centrando-se todos os acórdãos no artigo 45º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, tendo esta norma (que estabelece a impenhorabilidade das prestações devidas pelas instituições de segurança social)sido julgada inconstitucional na medida em isenta de penhora a parte das prestações devidas pelas instituições de segurança social que excedam o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna.
Esta jurisprudência influenciou de forma decisiva a reforma do processo civil, nesta parte. Com efeito, com o Decreto-Lei n.º
329-A/95, de 12 de Dezembro, passou a fazer-se uma destrinça entre impenhorabilidade absoluta, relativa e parcial e a figura da penhorabilidade subsidiária. 'Quanto à penhorabilidade parcial - para além de se estabelecer que os regimes ora instituídos prevalecem sobre quaisquer disposições legais especiais que estabeleçam impenhorabilidades absolutas sem atender ao montante dos rendimentos recebidos, em flagrante violação do princípio constitucional da igualdade (cf., nomeadamente, os acórdãos n.ºs 349/91 e 411/93, do Tribunal Constitucional, sobre a impenhorabilidade absoluta das pensões de segurança social, decorrente do artigo 45º, n.º4, da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto)-, são atribuídos ao juiz amplos poderes para, em concreto, determinar a parte penhorável das quantias e pensões de índole social percebidas à real situação económica do executado e seu agregado familiar, podendo mesmo determinar a isenção total de penhora quando o considere justificado.'(preâmbulo do referido diploma)
Ao invés, no caso em apreço, a norma questionada não estabelece uma impenhorabilidade absoluta, mas antes, determina uma penhorabilidade parcial dos bens em causa: as prestações periódicas pagas a título de pensão de aposentação por invalidez.
Será razoável utilizar para o caso dos autos, a argumentação carreada para as decisões relativas ao artigo 45º da Lei de Segurança Social?
Vejamos.
4. - Importa, antes de mais, salientar que se está perante uma pensão de reforma por invalidez, da responsabilidade da Caixa Geral de Aposentações, cujo montante, tal como resulta dos autos, é do valor de
38.758$. Ora, as pensões pagas aos trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas pela Caixa Geral de Aposentações não gozavam (antes da reforma do processo civil atrás referida) de um regime de impenhorabilidade absoluta mas apenas de impenhorabilidade parcial
(artigo 823º, n.º1, alínea f) e n.º4 do Código de Processo Civil; artigo 70º do Estatuto da Aposentação dos funcionários e agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro).
Todavia, o quadro legislativo vigente no momento em que se formou a jurisprudência do Tribunal sofreu uma modificação de relevo com a
última reforma do processo civil: de facto, o artigo 12º do Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro, estabelece que 'não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artigo 824º do Código de Processo Civil'.
Este preceito, como decorre da transcrição atrás feita do preâmbulo do referido diploma, mais não é do que uma emanação da jurisprudência do Tribunal Constitucional, afastando a eficácia em processo civil da legislação especial que estabelecia normas das quais decorria a absoluta impossibilidade de se penhorarem certos bens, dando assim uma plena prevalência à norma do artigo 824º do CPC, que é a norma que agora está em apreciação quanto à sua conformidade constitucional.
A questão que se coloca no presente processo é, portanto, a de saber se a norma que permite a penhora até 1/3 de uma pensão de reforma por invalidez cujo montante é inferior ao salário mínimo nacional não é inconstitucional por não garantir o mínimo adequado e necessário para uma existência condigna (artigo 1º em conjugação com o artigo 63º, n.ºs 3 e 4, da Constituição.
5. - A solução da impenhorabilidade total da pensões da Segurança Social assentou, essencialmente na 'preocupação de conferir uma garantia absoluta à percepção de um rendimento mínimo de subsistência. Tal solução é perfeitamente compatível [ ...] com a nossa Constituição e o quadro de valores nela acolhidos, nomeadamente a defesa do bem estar e a qualidade de vida das classes sociais mais desfavorecidas, a protecção decorrente do estabelecimento de um mínimo de subsistência (salário mínimo ou pensão previdencial sucedânea), a protecção nas situações de infortúnio ou de menor aptidão para conseguir os meios de subsistência a que todos têm direito.'
Esta ideia, de que a pensão auferida por um beneficiário quer da segurança social quer da Caixa Geral de Aposentações, tendo em conta o seu montante reportado a um dado momento histórico, não pode deixar de cumprir
'uma função inilidível de garantia de uma sobrevivência minimamente condigna do pensionista' (cf. Acórdão nº 349/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19ª Vol., pág. 507).
O credor goza de um direito à satisfação do seu crédito, podendo chegar à realização executiva do crédito à custa do património do devedor, sendo tal direito, enquanto direito de conteúdo patrimonial, tutelado pelo artigo 62º, nº1 da Constituição (garantia da propriedade privada).
O artigo 63º da Constituição reconhece a todos os cidadãos um direito à segurança social que, nos termos do nº3, 'protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho'.
Este preceito constitucional, como se escreveu no Acórdão nº 349/91 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º Vol., pág. 515)
'poderá, desde logo, ser interpretado como garantindo a todo o cidadão a percepção de uma prestação proveniente do sistema de segurança social que lhe possibilite uma subsistência condigna em todas as situações de doença, velhice ou outras semelhantes. Mas ainda que não possa ver-se garantido no artigo 63º da Lei Fundamental um direito a um mínimo de sobrevivência, é seguro que este direito há-de extrair-se do princípio da dignidade da pessoa humana condensado no artigo 1º da Constituição' (cf. Acórdão n.º 232/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º Vol., pág.341).
Pode, assim, configurar-se um conflito de direitos, entre o direito do credor à realização rápida do pagamento do seu crédito e o direito do devedor e pensionista da Segurança Social ou do Estado à percepção de uma pensão que lhe garanta o mínimo de subsistência condigna com a sua dignidade de pessoa.
Existindo o referido conflito, o legislador não pode deixar de garantir a tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana - vector axiológico estrutural da própria Constituição - sacrificando o direito do credor na parte que for absolutamente necessária - e que pode ir até à totalidade desse direito - por forma a não deixar que o pagamento ao credor decorra o aniquilamento da mera subsistência do devedor e pensionista.
Essencial se torna, pois, a realização de um balanceamento, da utilização de uma adequada proporção na repartição 'dos custos do conflito' (cf. J.C.Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1987, pág. 233). Em consequência, será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor, se o mesmo for necessário e adequado à garantia do direito à existência do devedor com um mínimo de dignidade.
No caso em apreço, não estando em causa o sacrifício total do direito do credor, uma vez que a disposição questionada permite uma penhora parcial da pensão, a questão que se torna necessário resolver é a de saber se a mera apreensão da parte legalmente prevista da pensão (1/6) não torna, de per si, o montante da pensão de invalidez que o recorrente percebe
(38.750$00) como incapaz de garantir aquele mínimo que se tem de considerar como absolutamente necessário para uma sobrevivência humanamente digna.
É certo que o legislador admite a penhora até 1/3 dos salários auferidos pelo executado, mesmo de salários não superiores ao salário mínimo nacional, tal como admite a penhora de idêntica parte das prestações periódicas recebidas a título de pensão de aposentação ou pensão social, sem qualquer limitação expressa decorrente do respectivo montante.
Porém, assim como o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o 'mínimo dos mínimos' não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também, uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário.
Em tais hipóteses, o encurtamento através da penhora, mesmo de uma parte dessas pensões - parte essa que em outras circunstâncias seria perfeitamente razoável, como no caso de pensões de valor bem acima do salário mínimo nacional - , constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do devedor e pensionista, na medida em que este vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo considerado necessário para uma existência com a dignidade humana que a Constituição garante.
Nestes termos, considera-se que a norma do artigo 824º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permite a penhora até
1/3 quer de vencimentos ou salários auferidos pelo executado, quando estes são de valor não superior ao salário mínimo nacional em vigor naquele momento, quer de pensões de aposentação ou de pensões sociais por doença, velhice, invalidez e viuvez, cujo valor não alcança aquele mínimo remuneratório, é inconstitucional por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, nº2, alínea a) e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional a norma do artigo 824º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante, cujo valor não seja superior ao do salário mínimo nacional então em vigor, por violação do princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de direito que resulta das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º2, alínea a e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.
Em consequência, determina-se a reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada e de acordo com o presente julgamento de inconstitucionalidade. Lisboa, 26 DE Maio de 1999 Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa