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Proc. 432/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. P..., identificado nos autos, interpôs, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso de anulação do despacho do Secretário de Estado-Adjunto do Ministro da Defesa Nacional, que indeferiu o seu pedido de integração no quadro do Ministério da Defesa Nacional. Entendendo que a lei – nomeadamente o artigo 22º do Decreto-Lei nº 46/88, de 11 de Fevereiro (Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional) – lhe concedia este direito, o recorrente atacou o despacho do Secretário de Estado Adjunto, imputando-lhe o vício de violação de lei, por realizar uma interpretação restritiva inconstitucional da expressão legal 'pessoal que à data de entrada em vigor do presente diploma [...] presta serviço no MDN'. Na opinião do recorrente, que à data de entrada em vigor do Decreto-Lei nº 46/88 se encontrava a prestar serviço no Estado Maior do Exército, o artigo 22º do referido diploma, ao prever a possibilidade de transferência de pessoal para o quadro do Ministério da Defesa Nacional, deve interpretar-se no sentido de abranger todos os funcionários que desempenhem funções em quaisquer serviços ligados à defesa nacional, incluindo o Estado Maior do Exército. A limitação do universo de potenciais candidatos aos funcionários contratados que prestassem serviço no Ministério da Defesa Nacional há pelo menos três anos consecutivamente e que aí se encontrassem em funções em 31 de Dezembro de 1987, violaria, na perspectiva do recorrente, o direito de acesso à função pública, consagrado no artigo 47º da Constituição da República Portuguesa. Além disso, visto que dois colegas juristas, com percurso profissional semelhante ao seu, que se encontravam a prestar serviço no Ministério da Defesa Nacional, obtiveram a transferência ao abrigo do referido artigo 22º do Decreto-Lei nº 46/88, o recorrente alegou a violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
2. O Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso do recorrente, invocando que:
'Uma vez que o diploma tratava de estruturar organicamente o MDN, é evidente que o legislador tinha de preocupar-se com o pessoal afecto ao mesmo e não com todo o pessoal dependente daquele Ministério, como é o dos 3 ramos das FA. Se um diploma regula por exemplo a orgânica do Ministério da Educação, não pode interpretar-se uma norma relativa ao respectivo pessoal, que refira «pessoal que preste serviço no Ministério» como abrangendo os milhares de professores de todos os graus de ensino, que também eles trabalham realmente na dependência hierárquica daquele.
[...] Tem aliás razão a entidade recorrida quando sustenta que a interpretação do recorrente iria contra a autonomia de que gozam o CEMGFA e CEM’s nomeadamente em todos os actos relativos ao pessoal deles dependente – vide lei 29/82, de 11-12, artº 53º-4-j), 57º-2-a), 59º. Irreleva aqui se os dois juristas referidos foram bem ou mal colocados no MDN. Se mal, esse facto não dá direitos ao recorrente, como escreve o digno Magistrado do Ministério Público. Certo é que a situação deste e a daqueles era diferente num aspecto essencial: o recorrente não prestava serviço no MDN e os seus colegas trabalhavam lá, como destacados ou «em diligência», no caso pouco importa. No momento em que o legislador se preocupava com o preenchimento dos quadros do pessoal do MDN tinha de ter em conta em 1ª linha os que já lá prestavam serviço, devendo interpretar-se as normas do respectivo diploma dentro destes parâmetros. Só norma expressa no sentido pretendido pelo recorrente poderia ampará-lo. Conclui-se assim não padecer o acto impugnado do vício de violação de lei.'
3. Inconformado com esta decisão, o recorrente recorreu para o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, concluindo as suas alegações de recurso como segue:
'O acórdão recorrido, ao julgar válido, legal e conforme à lei e à Constituição da República Portuguesa o despacho ali recorrido, fez errada interpretação da lei, porquanto: A – O conceito legal de MDN, constante do art. 2º, nº 1 do Dec.-Lei nº 46/88, de
11 Fev., integra o Exército, como ramo, na estrutura das Forças Armadas e, como tal, fazendo parte integrante do Ministério da Defesa Nacional; B – Daqui decorre que o Exército e órgãos respectivos fazem parte do Ministério da Defesa Nacional por inserção na administração directa do Estado. C – A expressão «MDN», constante do art. 22º do citado diploma não pode ser, deste modo, interpretada de forma restritiva, porquanto colide com a sua própria definição expressa no art. 2º do mesmo diploma. D – O despacho do Sr. Secretário de Estado-Adjunto do Ministro da Defesa Nacional está ferido de ilegalidade, porquanto está em desconformidade, designadamente, com o estatuído no Cap. II (Estrutura Orgânica), art. 2º, nº 1 e Cap. IV (Disposições Finais e Transitórias), art. 22º, nºs 1 e 2, al. a). E – Caso a referida norma constante do art. 22º seja interpretada de forma restritiva, então a mesma infringe o disposto nos artigos 13º e 47º da CRP, respectivamente, princípios da igualdade e da liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública'.
4. O Supremo Tribunal Administrativo, reunido em Pleno da sua 1ª Secção, voltou a negar provimento à pretensão do recorrente:
'Quando no artº 18/1 a lei [Decreto-Lei 46/88, de 11 de Fevereiro] se refere ao
«pessoal em funções no MDN» para efeitos de integração, excluía sem dúvida o pessoal pertencente a quadros diversos daquele que se propunha agora regulamentar, ou seja, aos quadros dos órgãos e serviços que não constituíam a estrutura central do Ministério como acima se definiu. Ora, sendo assim, como é, todos os elementos interpretativos apontam para que, quando no artº 22/1, a lei volta a dispor sobre o destino do pessoal que «à data da entrada em vigor do presente decreto-lei presta serviço no MDN» esteja a reportar-se ao pessoal que a essa data, a qualquer título, prestasse serviço na estrutura central do Ministério e não ao pessoal que funcionasse nos órgãos e serviços sobre cujos quadros de pessoal se não propunha fazer qualquer regulamentação. E não se trata de interpretação restritiva do preceito como diz o agravante. A vontade legislativa expressa-se na letra do preceito sem qualquer excesso que seja necessário limitar. Tratou-se apenas, como aliás o fizera o acórdão recorrido, de simples busca do sentido e alcance dos conceitos e termos da lei, clara e mera interpretação declarativa enunciativa, sem especial dificuldade. O agravante [...] prestava serviço no Estado Maior do Exército que, como se viu, não integrava os organismos e serviços compreendidos na estrutura central do Ministério, isto é, à data de entrada em vigor do Decreto-Lei não prestava serviço no MDN. A sua situação não cabia, portanto, como bem se decidiu no acórdão recorrido no campo da previsão da norma do artº 22/1 e 2, a) do Decreto-Lei nº 46/88, de11-02. O acórdão recorrido não violou as disposições legais invocadas pelo agravante. Como não se mostra que a interpretação dada à norma referida viole os artº 13º e
47º da Constituição da República Portuguesa. Em primeiro lugar, não se trata, como se viu, de qualquer interpretação restritiva do preceito. Em segundo lugar, não se vê que a norma em causa, com o sentido com que acima ficou delimitado, esteja em contradição com os princípios constitucionais da igualdade e da liberdade de acesso à função pública, previstos nos artº 13 e 47 da Lei Fundamental.
[...] Na verdade, para além das generalidades, limitou-se o agravante a dizer que «a situação do recorrente é em tudo semelhante à dos abrangidos pela norma em causa, pois reunia, como ficou provado na decisão recorrida, todos os requisitos expressos na lei, à excepção da prestação de serviço do MDN». O que o agravante põe constitucionalmente em causa, considerando-o desrazoável, sem mais, é o requisito exigido na lei para a reintegração no MDN da «prestação de serviço no MDN» à data da entrada em vigor do diploma de integração. Mas é inteiramente razoável, no sentido de racional e lógico e até justo, que a lei, ao estabelecer os requisitos de integração de pessoal num determinado serviço e quadro, estabeleça esse condicionalismo que, a final, é o próprio fim da «reintegração» que se propõe. Quanto à violação do princípio de acesso à função pública, a conclusão não tem sentido útil. Com efeito, o agravante equaciona-o em termos de violação do princípio da igualdade de tratamento que se reconduz à questão antecedente. Não se verificam, pois, as alegadas violações dos preceitos constitucionais referidos, improcedendo a inerente conclusão.'
5. É deste acórdão que o recorrente interpõe o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Invoca a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 22º do Decreto-Lei nº 46/88, por violação dos artigos 13º e 47º da Constituição da República Portuguesa.
Nas alegações de recurso, o recorrente desenvolve a sua argumentação no sentido de caracterizar a desigualdade de tratamento que sofreu, em face dos seus dois colegas juristas que ingressaram nos quadros do Ministério da Defesa Nacional ao abrigo do artigo 22º do Decreto-Lei nº 46/88, afirmando haver uma discriminação infundada do direito de acesso à função pública:
'X – Face ao anteriormente exposto, impõe-se-nos perguntar se a prestação de serviço no MDN, situação de facto, entendido somente como estrutura central do Ministério, como dado, deverá ser relevante para beneficiar um número de cidadãos perante os restantes, nas mesmas condições. XI – Ou seja, tal discriminação terá por base uma distinção objectiva de situações, razoável, racional, lógica e legítima que justifique ou fundamente um tratamento diferenciado, tendo em consideração uma análise circunstancial das situações dos cidadãos abrangidos pela referida norma (artº 22º, nºs 1 e 2, alínea a)) e a do recorrente, através da institucionalização, por via legislativa, de um benefício em favor dos primeiros e em prejuízo do segundo. XII – Julgamos que a resposta terá de ser negativa, considerando não ser razoável, nem justo que, no caso concreto, a lei, ao fixar os requisitos de integração estabeleça uma ilegítima discriminação, tendo por referencial único um local de prestação de serviço (MDN), dentro do mesmo departamento governamental – MDN. XIII – Assim, considera-se irrazoável, irracional, ilógico e injusto que o diploma-base utilizado pelo Dec-Lei nº 46/88 para a integração dos seus colegas no quadro do MDN, que se destinava a satisfazer as necessidades ocasionais do Exército (Decreto-Lei nº 316-A/76) acabe por ser um instrumento legal que, de forma paradoxal e ilegítima, venha beneficiar quem menos serviu, de facto, o Exército (colegas colocados no Batalhão de Serviço Geral do Exército, em diligência no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional) – embora pertencente a ele – e penalizar gritantemente quem mais tempo lhe dedicou da sua actividade e o serviu ao seu mais alto nível, por força das classificações obtidas (no Estado-Maior do Exército – o requerente).
– Termos em que deve julgar-se materialmente inconstitucional a norma do artº
22º, nºs 1 e 2, alínea a) do Decreto-Lei 46/88, de 11 de Fevereiro, quando interpretada no sentido de ser aplicável apenas ao pessoal do Exército a exercer de facto funções no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional [...]'
O Secretário de Estado da Defesa Nacional, por seu turno, conclui as suas alegações pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso de constitucionalidade:
'3º– A expressão «pessoal que presta serviço no MDN» só abrange o pessoal civil e militar que exercia funções na directa subordinação hierárquica e disciplinar do Ministro da Defesa Nacional, sendo obviamente excluído o pessoal que exercia funções nos diferentes ramos das Forças Armadas.
4º– O legislador apenas pretendeu regulamentar o quadro do pessoal que nessa data, a qualquer título, prestava funções na estrutura central do Ministério.
5º– O próprio recorrente, nas conclusões das suas alegações, admite que esta foi a intenção do legislador. Todavia, continua a considerar que erroneamente foram integrados nos quadros do Ministério, dois colegas, ambos do Exército, mas que prestavam serviço no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional.
6º– E que essa integração viola os princípios constitucionais da igualdade e da liberdade de acesso à função pública.
7º– Porém, e como amplamente já foi demonstrado, aqueles dois colegas do recorrente prestavam funções na dependência hierárquica e disciplinar directa do Ministro da Defesa Nacional, ao passo que o recorrente sempre exerceu funções para o EME, na directa dependência hierárquica e disciplinar do respectivo CEME.
8º– A sua situação não cabia, portanto, na previsão da norma do artº 22º, nº s 1 e 2 do DL nº 46/88, de 11/2.
9º– Porquanto a lei apenas se estava a reportar ao pessoal que prestava serviço na estrutura central do Ministério, e não ao pessoal que funcionava em diferentes órgãos e serviços, que não se propunha de qualquer forma regulamentar com este diploma.
10º– Assim, não existe qualquer violação do princípio da igualdade, porque desigual era «in casu» a situação de facto do recorrente com a dos dois colegas.
11º– Não se vislumbrando qualquer incompatibilidade da citada norma com a Constituição.'
Cumpre decidir.
II
6. O objecto do presente recurso de inconstitucionalidade é a interpretação dada no acórdão recorrido ao artigo 22º, nºs 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei nº
46/88, de 11 de Fevereiro, concretamente à expressão 'pessoal que à data de entrada em vigor do presente diploma presta serviço no MDN', por alegada violação dos princípios da igualdade e da liberdade de acesso à função pública, consagrados nos artigos 13º e 47º da Constituição da República Portuguesa.
É o seguinte o texto da referida disposição legal – artigo 22º do Decreto- -Lei nº 46/88, de 11 de Fevereiro:
'1. Sem prejuízo do disposto na alínea b) do artigo 6º do Decreto-Lei nº 41/84 de 3 de Fevereiro, o pessoal que à data da entrada em vigor do presente diploma que presta serviço no MDN transita para os lugares do quadro previsto no nº 1 do artigo 18º, de acordo com as seguintes regras: a) Para categoria idêntica à que o funcionário já possui; b) Para categoria que integre as funções que o funcionário ou agente efectivamente desempenha, remunerada pela mesma letra de vencimento ou, quando não se verifique coincidência de letras, para a categoria remunerada pela letra de vencimento que seja imediatamente superior na estrutura da carreira para que se processa a transição.
2. O disposto no número anterior é ainda aplicável: a) Ao pessoal militar com contrato nos termos do artigo 1º, nº 1 do Decreto-Lei nº 316-A/76, de 29 de Abril, contratado sucessivamente pelo período de três anos, desde que em 31 de Dezembro de 1987 preste serviço no MDN.
[...].'
7. O Decreto-Lei nº 46/88 aprovou a Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional, atribuindo ao referido Ministério uma estrutura orgânica, tal como se encontrava previsto desde 1982 na Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas ( Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro, artigo 36º, nº 1). A Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, além de regular as competências do Ministro da Defesa Nacional, no âmbito das atribuições específicas do seu Ministério (artigo 44º), fixava também as competências dos Chefes de Estado Maior dos três ramos das Forças Armadas (artigo 57º). O que indicia desde logo a existência no âmbito da actividade de defesa nacional, de várias estruturas autónomas para além do Ministério da Defesa Nacional, em função das atribuições específicas dos vários ramos das Forças Armadas – Exército, Marinha e Aviação. O Decreto-Lei nº 46/88, de 11 de Fevereiro, veio dar concretização ao disposto na Lei nº 29/82. Pode ler-se no seu preâmbulo:
'A Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro (Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas), atribui ao Governo a responsabilidade pela condução da política de defesa nacional que, de acordo com a mesma lei, tem natureza global, abrangendo uma componente militar e componentes não militares. Neste quadro de responsabilização se compreende a inserção, operada por aquela mesma lei, das Forças Armadas na administração directa do Estado, através do Ministério da Defesa Nacional (MDN). O relevo das atribuições referidas evidencia a necessidade, aliás amplamente reconhecida, de se dotar o MDN de uma estrutura orgânica que, de modo consistente, assegure a preparação e a execução da componente militar da política de defesa nacional e permita o adequado exercício das funções de controle previstas na referida Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas
(LDNFA).
É esse o objectivo visado com a estrutura concretizada no presente diploma que, afigurando-se capaz de viabilizar a prossecução das atribuições referidas, contém também potencialidades para, de modo efectivo, contribuir para a definição e execução da componente não militar da política de defesa nacional.' O objectivo do Decreto-Lei nº 46/88 foi, como se vê, organizar as Forças Armadas de acordo com as atribuições específicas dos ramos em que se dividem, colocando o Ministério da Defesa como superestrutura hierárquica. Inserindo-se os Estados Maiores no âmbito da Administração directa do Estado, com submissão hierárquica directa dos seus Chefes ao Ministro da Defesa, foi-lhes reconhecida autonomia administrativa em relação àquele Ministério em função das suas atribuições específicas no âmbito da actividade de defesa nacional.
8. Procedendo à criação da estrutura orgânica do Ministério da Defesa Nacional, o legislador previu a transição, para lugares de pessoal não dirigente nos quadros do Ministério da Defesa, de pessoal que prestasse serviço no Ministério da Defesa Nacional, tal como vinha funcionando desde 1982 (ao abrigo da Lei nº 29/82). Poder-se-ia tratar de pessoal civil ou militar – sem vínculo à função pública, naturalmente – nos termos do artigo 22º, nºs 1 e 2, desde que, à data de 31 de Dezembro de 1987, prestasse serviço no Ministério da Defesa Nacional. No âmbito da sua discricionaridade reorganizativa, o legislador permitiu o ingresso nos quadros do Ministério da Defesa Nacional a pessoal que, à data de
31 de Dezembro de 1987, não tendo a qualificação legal de funcionário, quisesse obtê-la. Mas esse ingresso deveria fazer-se em atenção à ligação funcional do pessoal com as necessidades específicas de serviço do Ministério da Defesa Nacional, ou seja, deveria nortear-se pelos princípios da maior eficácia e unidade na prossecução do interesse público (artigos 267º, nº 2 e 269º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa).
9. Considera o recorrente que o critério legal, interpretado restritivamente, implicou uma discriminação da sua situação em relação a dois colegas seus, também juristas, que à data de 31 de Dezembro de 1987 prestavam serviço, 'em diligência', no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional e que, através da possibilidade conferida pelo artigo 22º do Decreto-Lei nº 46/88, vieram a ingressar nos quadros do Ministério da Defesa Nacional. O sentido atribuído à expressão 'pessoal que à data da entrada em vigor do presente diploma presta serviço no Ministério da Defesa Nacional' no acórdão recorrido violaria o direito à igualdade de tratamento no acesso à função pública, ou seja, afrontaria os artigos 13º e 47º da Constituição da República Portuguesa, lidos conjugadamente.
Note-se todavia que, ainda que fossem semelhantes os percursos profissionais do recorrente e dos seus dois colegas – eram os três contratados ao abrigo do artigo 5º do Decreto-Lei nº 316-A/76, de 29 de Abril, sucessivamente pelo período de três anos, e passaram à disponibilidade posteriormente a 31 de Dezembro de 1987 –, os dois colegas do recorrente tinham uma situação profissional que o recorrente não ocupava: estavam, 'em diligência', a prestar serviço no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional. Esta diferente situação profissional implica uma diferente ligação funcional às atribuições desenvolvidas no âmbito do referido Ministério. Existe assim, um fundamento objectivo para a desigualdade de tratamento: a ligação funcional ao serviço é um factor de garantia da eficácia do funcionamento e da continuidade do mesmo, sem quebra de qualidade, vectores acolhidos pelo texto constitucional no que respeita à organização administrativa.
10. É certo que a reestruturação interna do Ministério da Defesa Nacional veio permitir ao pessoal que aí prestasse serviço à data de 31 de Dezembro de
1987 o ingresso nos quadros do funcionalismo público (cfr. artigo 21º do Decreto-Lei nº 46/88) e que o recorrente, por não reunir as condições previstas no artigo 22º, se viu privado de aceder a esta qualificação.
No entanto, o direito de acesso à função pública não é um direito de exercício incondicionado. O nº 2 do artigo 47º da Constituição estabelece a regra do concurso público, que será realizado sempre que as necessidades de preenchimento de lugares de quadro se verificarem. Este concurso é uma forma de selecção de candidatos, em função das aptidões demonstradas, não se podendo afirmar, à partida, o direito subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação.
Da norma constitucional também não decorre uma exigência absoluta de realização de concurso, em todos os casos, para o acesso à função pública.
O artigo 6º do Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro (diploma que aprova instrumentos de mobilidade nos serviços da Administração Pública) proíbe, como regra, que, nos casos de criação ou alteração de quadros de pessoal, se estabeleçam 'promoções automáticas ou reclassificações de pessoal' (alínea a)) ou 'integração directa em lugares de quadro a pessoal que não tenha a qualidade de funcionário ou que, sendo agente, não desempenhe funções em regime de tempo completo, não se encontre sujeito à disciplina, hierarquia e horário do respectivo serviço e conte menos de três anos de serviço ininterrupto' (alínea b)).
Esta norma é uma concretização do imperativo constitucional do recurso ao concurso público para preenchimento de lugares nos quadros da função pública, em atenção, precisamente, ao respeito pela igualdade de oportunidades dos candidatos e à transparência nas relações jurídicas administrativas. O artigo 22º do Decreto-Lei nº 46/88 surge como uma derrogação a este regime. Derrogação, porém, que, como se demonstrou, obedece a imperativos de interesse público e à qual subjaz um critério objectivo, não incompatível com a Constituição. A desigualdade no tratamento legislativo das situações, ou seja, na fixação dos critérios de acesso aos quadros de funcionários do Ministério da Defesa Nacional, tem uma base constitucionalmente aceitável, que justifica a excepção à regra da realização do concurso público.
11. O recorrente, ao contrário dos seus colegas, não se encontrava, em 31 de Dezembro de 1987, nem mesmo 'em diligência', ao serviço do Ministério da Defesa Nacional e não tinha, por isso, nenhuma ligação funcional às atribuições deste, ao qual se limitou o âmbito da reestruturação legislativa. Tal facto pode justificar a não aplicação do regime excepcional fixado pelo artigo 22º do Decreto-Lei nº 46/88, com fundamento em objectivos de interesse público. Não há, assim, violação do princípio da igualdade no acesso à função pública
(artigo 47º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), pois o critério estabelecido pelo legislador tem um fundamento objectivo: o da eficácia da acção administrativa, baseada na continuidade material de funções exercidas pelo pessoal que requer o ingresso, e que contribui para uma melhor qualidade na prestação laboral do funcionário (artigos 267º, nº 2 e 269º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa).
A diferença de tratamento que resulta para o recorrente do regime consagrado no artigo 22º do Decreto-Lei nº 46/88 não é, nestes termos, desadequada, desrazoável nem arbitrária.
III
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 22º, nºs 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 46/88, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, por se considerar não haver violação dos artigos 13º e 47, nº 2, da Constituição; b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, no que toca à matéria de constitucionalidade. Lisboa, 19 de Outubro de 1999- Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa