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Processo n.º 460/98
3ª Secção Relator: Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. - Por acórdão, de 7 de Janeiro de 1998, do Tribunal Militar Territorial de Elvas, foi J. R., ex-soldado da Brigada Territorial n.º 3 da Guarda Nacional Republicana, condenado pela prática de dois crimes p. e p. pelo artigo 72º, n.º
1, alínea d), do Código de Justiça Militar, na pena de 7 (sete) meses de presídio militar por cada um dos crimes, e de um crime p. e p. pelos artigos 27º e 79º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do mesmo Código, na pena de 4 (quatro) meses de prisão militar. Operado o competente cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 1
(um) ano de presídio militar. Inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal Militar, invocando, na respectiva alegação, além do mais, a inconstitucionalidade do artigo 418º do Código de Justiça Militar, por violação do artigo 32º da Constituição.
2. - Designado dia para julgamento no Supremo Tribunal Militar, e uma vez aberta a sessão, a defensora constituída, por requerimento ditado para a acta, sob o entendimento de que o recorrente tem direito a um duplo julgamento sobre a matéria de facto, assente na inconstitucionalidade do artigo 418º do Código de Justiça Militar, por ofensa do artigo 32º da Constituição, requereu produção de prova sobre a matéria de facto que pretendia ver reapreciada, com a consequente interrupção da audiência para esse efeito. Assim não entendeu o Supremo Tribunal Militar que, por acórdão igualmente ditado para a acta, indeferiu a requerida produção de prova, remetendo para o acórdão final a apreciação da questão de constitucionalidade já suscitada, fundamentando-se no seguinte:
'O recorrente J. R. veio requerer a produção de prova neste Supremo Tribunal, com base em inconstitucionalidade do artigo 418º, n.º 1 do Código de Justiça Militar. Este Supremo Tribunal, no que toca à matéria de facto, pode anular o julgamento da instância, mandar repeti-lo com consequente nova produção de prova ou, com base nos elementos documentais existentes no processo, reformar a própria matéria de facto. Porém, não pode, mesmo que o artigo 418º, n.º 1 do Código de Justiça Militar fosse inconstitucional, fazer produzir a prova perante si mesmo. A invocada inconstitucionalidade, que melhor se apreciará na decisão do recurso, levaria a aplicar subsidiariamente o disposto no artigo 433º do Código de Processo Penal impedindo a produção de prova e autorizando apenas o reenvio do processo (artigo 436º do C.P.P.). Assim, indefere-se o requerimento agora apresentado, sem prejuízo de se apreciar, na devida altura, se o julgamento de instância deve ou não ser anulado.'
3.- Relativamente ao recurso interposto da decisão da 1ª instância, o Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 2 de Abril de 1998, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido. No que à questão de constitucionalidade diz respeito, entendeu o Supremo Tribunal Militar o seguinte:
'Não foram arguidas nulidades nem o processo enferma de alguma de que deva conhecer-se oficiosamente, pelo que, nos termos do artigo 418º, n.º 1 do Código de Justiça Militar, se tem por definitivamente fixada a matéria de facto apurada pelo Tribunal recorrido. Pretende o recorrente, todavia, que se altere esta matéria de facto, substituindo-a por uma versão por ele apresentada, para o que alega que o artigo
418º, n.º 1 do Código de Justiça Militar é inconstitucional por violação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. Diga-se, desde já, que tendo o julgamento sido oral não tem este Supremo Tribunal elementos que lhe permitam alterar a matéria de facto tida por provada, até porque o recorrente não justifica as alterações que propõe, depois de, na audiência, ter aceite, sem reclamação, a decisão factual do Tribunal a quo. Seja como for, o certo é que, não havendo, no julgamento e no aresto recorrido, qualquer nulidade ou vício que imponha a anulação daquele, tem este Supremo Tribunal de acatar a matéria de facto considerada provada na instância, ex vi do disposto no citado artigo 418º, n.º 1, disposição esta conforme com a Constituição, como decidiu o Tribunal Constitucional no seu douto acórdão n.º
17/97, de 14 de Janeiro (processo n.º 377/95 daquele Tribunal).'
4. - Deste aresto, bem como da decisão proferida em audiência que indeferiu a produção de prova para reapreciação da matéria de facto, interpôs o réu o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, através do requerimento de fls. 214, o qual completou após despacho-convite nesse sentido, indicando pretender ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 418º do CJM. O Conselheiro Relator proferiu despacho de admissibilidade, 'embora com as mais fortes dúvidas quanto ao acórdão proferido no decorrer da audiência de julgamento neste Supremo', conforme referiu no despacho de fls. 219. Nas alegações de recurso que oportunamente apresentou, o recorrente conclui nos seguintes termos:
1. O recorrente foi condenado na 1ª instância, dando-se como provada boa parte da matéria constante da acusação.
O julgamento da matéria de facto feito pela 1ª instância foi definitivo, nos
termos do artigo 418º do Código de Justiça Militar.
Por esta razão, o Supremo Tribunal Militar impediu a reapreciação da matéria
de facto, como era pretensão do recorrente.
O recorrente havia suscitado na alegação de recurso e em audiência de
julgamento a inconstitucionalidade do artigo 418º do Código de Justiça
Militar, por violação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
O acórdão do Supremo Tribunal Militar ao impedir a reapreciação da matéria de
facto violou o artigo 32º da Constituição da República.
Em contra-alegações, o Ministério Público suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso e concluindo nos seguintes termos:
'1ª Não deve conhecer-se do recurso quanto ao acórdão proferido no decorrer da audiência de julgamento do Supremo Tribunal Militar, porque, ainda que o artigo
418º, n.º1, do Código de Justiça Militar fosse considerado inconstitucional, não teria tal decisão a virtualidade de obrigar aquele Supremo Tribunal a substituir-se à 1ª instância na apreciação directa da prova.
2ª A norma constante do artigo 418º, n.º1 do Código de Justiça Militar, tal como foi aplicada pelo Tribunal recorrido, não colide com as garantias de defesa do arguido, consagradas na Constituição.'
Ouvido para se pronunciar quanto à suscitada questão prévia do não conhecimento do recurso, o arguido pugnou pelo indeferimento da mesma, como consta de fls.
237 e 238. Cumpre decidir.
II
1. - Delimitação do objecto do recurso
1.1.- O presente recurso de constitucionalidade, conforme o recorrente o delimita nos requerimentos de fls. 214 e 218, já aludidos, vem interposto de dois acórdãos do Supremo Tribunal Militar, - o primeiro, ditado para a acta na audiência de julgamento, que indeferiu a pretensão do recorrente de produzir prova naquele Tribunal para reapreciação da matéria de facto, e, o segundo, que decidiu do mérito da causa e confirmou a decisão condenatória da 1ª instância -, e visa a apreciação da constitucionalidade do artigo 418º do Código de Justiça Militar. Embora o recorrente não o refira expressamente o presente recurso é restrito à norma constante do n.º1 do citado artigo 418º, única do preceito convocado que está relacionada com a questão suscitada nos autos: - o alegado direito ao duplo grau de julgamento da matéria de facto.
2.2. - Sustenta, porém, o Ministério Público que não deve conhecer-se do recurso quanto ao acórdão proferido no decorrer da audiência de julgamento no Supremo Tribunal Militar, 'porque, ainda que o artigo 418º, n.º1, do Código de Justiça Militar fosse considerado inconstitucional, não teria tal decisão a virtualidade de obrigar aquele Supremo Tribunal a substituir-se à 1ª instância na apreciação directa da prova'. O recorrente, considerando ser inconstitucional a citada norma do artigo 418º do Código de Justiça Militar, requereu a produção de prova no Supremo Tribunal Militar relativamente a determinados factos dados como provados na decisão da 1ª instância e relativamente aos quais tinha posição diversa. Como já se referiu (cfr. I.2.) o acórdão interlocutório (ditado para a acta de julgamento que indeferiu o requerimento de produção de prova), embora tenha remetido para a decisão final o conhecimento da questão da constitucionalidade da norma do artigo 418º n.º1, logo adiantou que, ainda que tal preceito fosse inconstitucional, não podia o Supremo Tribunal Militar fazer produzir prova perante si mesmo, mas, tão só, aplicar subsidiariamente o artigo 433º do Código de Processo Penal, que impede a produção da prova, autorizando apenas o reenvio do processo (cfr. artigo 436º do mesmo código). Assim perspectivada a questão e não tendo o recorrente suscitado a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 433º e 436º do Código de Processo Penal, invocadas como fundamento na decisão recorrida, a decisão a proferir pelo Tribunal Constitucional quanto à constitucionalidade da norma impugnada, não tem a virtualidade de modificar a decisão recorrida no sentido pretendido pelo recorrente. Na verdade, é incontroverso revestir-se o recurso de constitucionalidade, entre nós, de natureza instrumental, pelo que só deve conhecer-se da questão suscitada se se repercutir no sentido e conteúdo da decisão recorrida; de outro modo, o Tribunal não conhece do respectivo objecto (cfr., entre outros, os Acórdãos nºs.
578/95, 556/98, 358/99, o primeiro, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 32º, pág. 403, e, os restantes, ainda inéditos). Deste modo, não pode conhecer-se do recurso interposto do acórdão proferido em audiência.
2. - Resta, assim, apreciar do recurso interposto do acórdão final, que tem por objecto a (in)constitucionalidade da norma do n.º1 do artigo 418º do Código de Justiça Militar. A norma impugnada dispõe o seguinte:
Artigo 418º
'1. O tribunal julgará de facto definitivamente, segundo a sua consciência, em plena liberdade de apreciação de direito.'
Entende o recorrente que esta norma, impedindo a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso, viola as garantias de defesa consagradas pelo artigo 32º da Constituição, nas quais se inclui o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria de recursos, que abrangerá a matéria de facto e de direito. Tese diferente perfilhou o Supremo Tribunal Militar que, após concluir não haver no julgamento nem no aresto recorrido qualquer nulidade ou vício que imponha a anulação do julgamento, aplicou a norma do n.º1 do artigo 418º, que considerou conforme à Constituição, fazendo apelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional expressa no Acórdão n.º 17/97, de 14 de Janeiro (publicado no Diário da República, II Série, de 30-04-97). Na verdade, a boa hermenêutica do preceito não se compadece com uma sua interpretação meramente literal, havendo que o conjugar com outros artigos do Código e, mormente, com a convocação de normas como as dos artigos 410º e 433º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
É este, aliás, o entendimento seguido, entre outros, pelo citado acórdão n.º 17/97, onde, nomeadamente, se ponderou:
'[...]porque o tribunal de instância julga de facto definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito (artigo 418º, n.º 1), no que respeita à matéria de facto o STM limita-se a verificar se existe ou não deficiência, obscuridade ou contradição no julgamento da matéria de facto ou preterição de acto substancial para a boa administração da justiça, de modo que possa ter influído ou influa no exame e decisão da causa [alíneas c) e d) do artigo 438º]. Se o tribunal de recurso constata a ocorrência de algum dos vícios referidos e não pode decidir a causa, tem de determinar o reenvio do processo para se proceder a novo julgamento, que pode abranger a totalidade do objecto do processo ou questões concretamente identificadas na decisão de reenvio. Na apreciação a que procedeu, não se considerou o STM limitado ao que resulta do próprio texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, limitação essa contida no artigo 410º, n.º 1, in fine, do CPP, muito embora o tribunal de recurso, enquanto tal, não possa substituir-se à
1ª instância na apreciação directa da prova nem realizar ele próprio diligências de prova.'
E mais a seguir:
'O recurso penal, interposto do acórdão final do tribunal colectivo para o STM,
à luz do que decorre da decisão sob recurso, estrutura-se, assim, como um recurso de revista ampliada, em que a decisão de 1ª instância é apreciada quanto
à matéria de direito, pois que, quanto ao facto, o tribunal de recurso intervém somente para «despistar situações indiciadoras de erro judiciário» (Cf., Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 394, de algum modo transponível para esta sede).'
A tese expendida nesta acórdão nº 17/97 foi, por sua vez, adoptada pelo acórdão nº 126/98, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Maio de 1998.
E, ainda consta daquele acórdão nº 17/97:
'Aquele preceito constitucional [refere-se ao n.º 2 do artigo 32º] não consagra expressamente o princípio do duplo grau de jurisdição, como aliás acontece também com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Tal princípio surge consagrado apenas no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (aprovado, para ratificação, pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho), no seu artigo 14º, n.º 5, onde se refere que «qualquer pessoa declarada culpada de crimes terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei».
É sabido que constitui jurisprudência firme do Tribunal Constitucional que uma das garantias de defesa a que se reporta o artigo 32º, n.º 1, da Constituição é justamente o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias, o que equivale a reconhecer o aludido princípio. Todavia, sublinha essa jurisprudência que, «tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras
(decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal colectivo». Conforme resulta do Acórdão n.º
401/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., a pp. 153 e segs., que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, não estará em conflito com a Constituição «outra solução que não seja a da repetição da prova em audiência perante as relações», pois outros sistemas haverá «que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional». Devem assim ser considerados como compatíveis com a Constituição aqueles regimes legais que protejam o arguido dos perigos de erro de julgamento - designadamente de um erro grosseiro na decisão da matéria de facto - e que, em consequência, o defendam do risco de uma sentença injusta.»
3. - De resto, no domínio dos artigos 433º e 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, entendeu-se em Plenário, se bem que por maioria, não ter o direito ao recurso sobre a matéria de facto 'que implicar renovação de prova perante o tribunal ad quem, nem tão-pouco que conduzir à reapreciação de provas gravadas ou registadas': o sistema plasmado nessas normas preserva o núcleo essencial do direito ao recurso, em matéria de facto. Escreveu-se, na verdade, no acórdão nº 573/98, publicado no Diário citado, II Série, de 13 de Novembro de 1998, nomeadamente:
'[...]a revista alargada, tal como o nosso ordenamento jurídico modela, ainda é remédio jurídico ou válvula de segurança suficiente contra erros grosseiros de julgamento. Por ela, o processo penal, ao mesmo tempo que assegura ao Estado «a possibilidade de realizar o seu ius puniendi», oferece aos cidadãos «as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta» (cf. o Acórdão nº 434/87, publicado no Diário da República, 2ª série, de 23 de janeiro de 1988). Ou seja: a revista alargada cumpre as exigências feitas, nesse domínio, pelo princípio do Estado de direito.'
Neste acórdão, de que se transcreve a passagem supra, decidiu-se, em Plenário, como se referiu, não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do nº 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que 'o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum'.
Ora, no caso sub judice, foi nesse sentido que o Supremo Tribunal Militar interpretou a norma em sindicância: ao apoiar-se expressamente na interpretação feita pelo acórdão nº 17/97 do Tribunal Constitucional que é, afinal, a do acórdão nº 573/98, o Supremo deu ao artigo 418º, nº 1, do Código de Justiça Militar um sentido que o compagina com a interpretação acolhida nesses arestos relativamente às normas dos artigos 433º e 410º, nº 2, citados.
Mais não resta, agora, do que aplicar ao caso vertente a doutrina do Plenário.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida