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Processo n.º 630/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação para a conferência tem o seguinte teor:
«(...)
1º
Vem a decisão do TC de não conhecer do objeto do recurso fundamentada no facto de o segmento normativo atacado pelo ora reclamante não foi o fundamento determinante da decisão recorrida.
2º
Diz, em consequência desta afirmação, a mesma decisão, que o objeto da controvérsia na relação e no Supremo Tribunal de Justiça é a extensão do trânsito em julgado da decisão penal condenatória e a consequente intempestividade da invocação da prescrição do procedimento criminal,
3º
Com o que uma eventual decisão do TC não teria qualquer projeção no conteúdo e sentido da decisão recorrida, e, que, em consequência torna este recurso ferido por não beneficiar de todos os seus pressupostos processuais.
4º
Não podemos deixar de discordar de tal construção.
5º
É certo que se recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça de uma decisão da Relação de Coimbra que considerou “intempestiva” a invocação da prescrição.
6º
Daí se recorreu para o STJ para se obter uma nova decisão sobre a tempestividade dessa invocação.
7º
Ora o que sucedeu foi o que o STJ considerou, por razões processuais, a decisão da Relação de Coimbra irrecorrível; e dessa decisão tem o ora reclamante recorrido agora, com motivo na inconstitucionalidade da norma que suportou essa decisão, até ao TC.
8º
Daí não se compreender a questão da extensão da decisão recorrida como relevante para os autos.
9º
O ora reclamante não quer discorrer no TC sobre a tempestividade ou intempestividade da prescrição. Não foi para isto que a fiscalização concreta da constitucionalidade foi desenhada.
10º
O que ora reclamante pretende é que a inconstitucionalidade, tal como levantada na petição de recurso para o TC (que se dá aqui por reproduzida para todos os efeitos legais), seja decretada.
11º
E que, com isso, seja reconhecido o direito ao recurso para o STJ em questões relativas a prescrições.
12º
E sendo reconhecido esse direito ao recurso para o Supremo, competirá, nos termos do direito substantivo, a esse Tribunal, julgar se o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu bem ou não na concreta questão da invocação da prescrição do procedimento criminal.
13º
Assim sendo, julgamos que toda a lógica processual dos recursos para o TC está presente neste processo, sendo da maior relevância que o Tribunal Constitucional dê decisão, de forma a saber-se se, por razões de inconstitucionalidade, é, ou não, o STJ obrigado a conhecer o recurso proveniente da Relação de Coimbra relativo à prescrição invocada.
14º
Não detetamos, assim, nenhuma irrelevância para os autos, nem detetamos que algum dos requisitos processuais esteja em falta no presente processo.
(...)»
3. O Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação deduzida.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem a seguinte redação:
«(...)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de junho de 2013, que indeferiu a reclamação deduzida pelo recorrente.
2. O requerimento de recurso apresenta o seguinte teor:
«(...)
2.º
A norma cuja constitucionalidade se suscita é da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada (artigo 80.º, n.º 3, da LTC) pela decisão que não admitiu o recurso e, agora, na decisão que indeferiu a reclamação.
3.º
A norma violada é a do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, onde se prescrevem todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
4.º
A inconstitucionalidade foi suscitada “durante o processo”, mais precisamente na reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça, primeira ocasião que ocorreu para trazer esta questão aos autos.
5.º
Como se referiu na reclamação para o STJ, a questão tem origem na alteração legislativa de 2007 do Código de Processo Penal, onde passaram a ser irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões das relações “que não conheçam, a final, do objeto do processo”.
6.º
Passando, assim, a só existir “duplo grau” de recurso às decisões que conheçam do objeto do processo.
7.º
O que se torna a invocar, agora perante o Tribunal Constitucional, é que esta “compressão” recursória, se aplicada às prescrições do procedimento ou das penas, confere à disposição em análise uma interpretação desconforme à Constituição, tendo essa norma, nessa interpretação, de ser julgada inconstitucional. Vejamos:
8.º
De facto, a questão da prescrição do procedimento criminal não se reporta diretamente, no domínio da averiguação da dinâmica dos factos e da teoria do crime a ela aplicável, ao “mérito da causa” (entre comas pois a disposição não utiliza a expressão) é verdade.
9.º
No entanto, o “mérito da causa” não pode, em sede penal, reconduzir-se ao seu conceito estritamente civilístico. Não. Ele tem de integrar no seu conteúdo todas as realidades substantivas a ele subjacentes.
10.º
A prescrição do procedimento criminal, apesar de se referir ao processo em termos literais, integra, indiscutivelmente, a parte substantiva da realidade jurídico-penal, uma vez que ele representa o período de tempo em que jus puniendi do Estado se pode efetivar na pendência de um procedimento criminal. Mais, este jus puniendi é prerrogativa exclusiva do Estado.
11.º
A ser assim, esta realidade cai fora das chamadas questões meramente interlocutórias, mesmo daquelas que ponham fim ao processo.
12.º
Nestes termos, a averiguação da prescrição do procedimento criminal é, ainda, integrante do conceito de “objeto do processo” e de “mérito da causa” porque o que esta figura regula é o direito, em abstrato, do Estado punir aqueles que violam o sistema mais severo de normas – o sistema penal. Não se trata de questões de prova, da sua nulidade, ou de outras vicissitudes meramente processuais e/ou formais.
13.º
Tanto que assim é que a prescrição – seja ela da pena ou do procedimento – está prevista, não no Código de Processo Penal, mas no Código Penal (artigos 118.º e segs.) e na parte geral, como geradora da extinção da responsabilidade criminal, portanto, na vertente substantiva do direito do Estado de punir os prevaricadores dos valores mais fundamentais da vida em sociedade.
14.º
A prescrição, uma vez verificada, faz caducar o jus puniendi do Estado, daí que quer na sua vertente do procedimento, quer na sua vertente das penas, não pode ser considerada uma questão formal, mas antes uma questão de fundo em matéria penal.
15.º
Não ser punido quando a prescrição está verificada é até um direito fundamental dos cidadãos que se encontrem no espaço jurídico português. Pelo que a possibilidade de ser punido aquando da sua verificação ofende os valores constitucionais em vigor.
16.º
Mesmo na jurisprudência citada pela Relação de Coimbra quer agora pelo Supremo Tribunal a questão em causa não era a prescrição do procedimento ou das penas. Até, no caso dos acórdãos do TC ora citados pelo Supremo Tribunal está em causa o concurso de crimes e cúmulo jurídico de penas (Acórdãos 189/01 e 377/2003), o que, assim, não invalida os argumentos do ora recorrente.
17.º
A compressão recursória efetuada pela alteração legislativa em causa não pode ser interpretada, sob pena de inconstitucionalidade, no sentido de abarcar tudo o que não tenha a ver com a tríade investigação, acusação, sentença, o tal “mérito da causa”.
18.º
Não se pode conceber que o legislador ordinário diminuiu (com a citada alteração legislativa) as garantias recursórias, não apenas em questões meramente formais ou de procedimento, mas também em questões de substância como a averiguação da extinção do jus puniendi do Estado, pela verificação de uma qualquer prescrição.
19.º
Pelo que as prescrições ainda integram o conceito de “objeto do processo” do artigo 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, sob pena da diminuição inconstitucional do direito ao recurso em questões substantivas.
20.º
Assim, e desta forma, o artigo 400.º, n.º 1, al. c) do CPP, na interpretação que o Tribunal da Relação lhe deu na decisão reclamada e que lhe deu o Supremo Tribunal de Justiça na decisão da reclamação, é inconstitucional, violando diretamente o artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.
21.º
Na verdade, subtrair à via de recurso, por uma interpretação simplista, a averiguação da extinção do procedimento criminal pela verificação de uma prescrição é não conferir ao acusado uma tutela jurisdicional efetiva e violar as suas garantias de defesa, pois o que a norma faz, se assim interpretada, é negar, numa questão substantiva, uma via de recurso.
(...)»
3. Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de novembro de 2012 foi negado provimento ao recurso interposto pelo arguido (ora recorrente) do despacho da 1.ª instância de 19 de abril de 2012, que considerou extemporânea a invocação da prescrição do procedimento criminal. Concluiu o tribunal “no sentido de não assistir razão ao recorrente quando defende, concretamente para efeitos de prescrição do procedimento criminal, não haver transitado em julgado o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29.09.2010, sendo certo que tal ocorreu quando se tornou pacífica no processo a irrecorribilidade da parte relativa à respetiva decisão penal” (fls. 22).
Inconformado, o recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso não foi admitido através do despacho de 24 de abril de 2013 (fls. 37), com fundamento nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPP, tendo em conta que o Tribunal da Relação não conheceu, a final, do objeto do processo. Sobre esse despacho recaiu reclamação (fls. 2), onde, com pertinência para os presentes autos, avançou o recorrente que “o artigo 400.º, n.º 1, al. c) do CPP, na interpretação que o Tribunal da Relação lhe deu na decisão reclamada, é inconstitucional, violando diretamente os artigos 20.º, n.º 4, e o artigo 32.º, n.º 1, ambos da Constituição.”
Seguiu-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de junho de 2013, que indeferiu a reclamação deduzida, louvando-se nos seguintes fundamentos:
«(...)
3. No domínio dos recursos e das normas que disciplinam a competência em razão da hierarquia, a redação do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP, dispõe que há recurso para o Supremo Tribunal das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas em recurso pelas relações nos termos do artigo 400.º.
E deste preceito destaca-se a alínea c) do seu n.º 1, que estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo”.
O objeto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronúncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa – ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.
No caso concreto, o acórdão de que o reclamante pretende recorrer, proferido em instância de recurso, que manteve a decisão da 1.ª instância que considerara extemporânea a prescrição do procedimento criminal invocada pelo reclamante, não conhecer do objeto do processo nem julgou do mérito da causa.
O recurso não é assim admissível (artigos 432.º, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP).
4. O reclamante suscita a inconstitucionalidade da alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, na interpretação que lhe deu o despacho reclamado, por violação dos arts. 20.º, n.º 4 e 32.º n.º 1, ambos da CRP.
No respeitante à invocada violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP, o direito ao recurso em processo penal, justificado pela efetivação do duplo grau de jurisdição, terá de ser perspetivado como uma faculdade de recorrer sobre a matéria da causa, e não sempre e em qualquer caso atomisticamente, ato a ato desenquadrado do conjunto, ou sobre uma questão parcial ou incidental ainda que decidida no procedimento de recurso ou por ocasião de um recurso (cf., Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 424/09, de 14.08.09).
E no plano constitucional a garantia do direito ao recurso prevista no n.º 1 do art. 32.º da Constituição fica constitucionalmente perfeita com a previsão de um único grau, que foi exercido através do recurso interposto para a Relação pelo reclamante (cf., v.g., Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 189/01 e 377/2003 de 3 de maio de 2001 e de 15 de julho de 2003, respetivamente).
No caso, houve duplo grau de jurisdição sobre a questão suscitada – a decisão de que se pretende recorrer decidiu o objeto que lhe foi definido relativamente à decisão da 1.ª instância impugnada.
Por outro lado, o reclamante não refere qual a dimensão que estaria em causa das várias que integram o conceito de processo equitativo (n.º 4 do art. 20.º da CRP), e uma invocação categorial genérica não permite a identificação de uma qualquer questão que possa ser objeto de apreciação no plano do respeito das imposições constitucionais.
5. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação.
(...)»
4. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
5. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
In casu, porém, não é isso que sucede. Com efeito, afigura-se claro que o segmento normativo extraído do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, que o recorrente reputa desconforme com a Constituição, não foi fundamento determinante da decisão recorrida.
Em causa nos presentes autos não está a questão de saber se uma eventual decisão sobre a prescrição do procedimento criminal deve ou não considerar-se, para efeitos do disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea c) do CPP, uma decisão incidente sobre o “objeto do processo”, nem tampouco os problemas que uma eventual resposta negativa possa repercutir sobre o direito ao recurso constitucionalmente consagrado. Na verdade, talqualmente resulta quer do acórdão da Relação, quer da decisão do STJ, o objeto da controvérsia aí dirimida centrou-se na extensão do trânsito em julgado da decisão penal condenatória já proferida nos autos, e na consequente intempestividade da prescrição do procedimento criminal invocada pelo recorrente.
Destarte, mesmo que o Tribunal Constitucional, conhecendo da questão de constitucionalidade reiteradamente levantada nos autos, viesse a emitir um juízo positivo de inconstitucionalidade, certo é que o mesmo não teria qualquer projeção no conteúdo e sentido da decisão recorrida, a qual – sublinhe-se novamente – não assentou na irrecorribilidade de decisão que se debruce sobre a prescrição do procedimento criminal, mas na extemporaneidade da invocação dessa prescrição.
Assim sendo, somos levados a concluir que o recurso de constitucionalidade em análise não reúne os pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
6. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(...)»
5. A reclamação apresentada pelo reclamante não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
Invoca o reclamante que, não obstante o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ter assentado na extemporaneidade da invocação da prescrição do procedimento criminal, a decisão recorrida, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, teve por objeto a irrecorribilidade de tal decisão, por razões processuais. Ora, tal facto é incontestável e decorre do próprio meio processual no quadro do qual o STJ foi chamado a intervir – a reclamação contra despacho que não admitiu o recurso, disciplinada no artigo 405.º, do Código do Processo Penal (CPP).
Talqualmente resulta da decisão sumária objeto de reclamação, a questão de constitucionalidade levantada pelo ora reclamante ao longo da sua intervenção processual centrou-se no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, quando interpretado no sentido de dele se extrair a irrecorribilidade de decisões das Relações que apreciem a prescrição do procedimento criminal. Sucede, porém, que o segmento normativo assim enunciado não tem respaldo na decisão do STJ, que, com base naquele preceito, se limitou a reiterar a irrecorribilidade da decisão prolatada pela segunda instância quanto à extemporaneidade da invocação da prescrição do procedimento criminal (cfr. fls. 53).
Nada ali se disse, portanto, sobre a irrecorribilidade das decisões que versem sobre a prescrição propriamente dita, pelo que tanto basta para que se reafirme o não preenchimento, in casu, dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
III. Decisão
6. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada, e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 3 de março de 2014.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral –Joaquim de Sousa Ribeiro.