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Processo n.º 192/98
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Na sequência do Acórdão da Relação de Lisboa, de 6 de Novembro de 1997, que concedeu provimento parcial ao recurso interposto pela Câmara Municipal de Almada, enquanto entidade expropriante e condenada, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Almada de 16 de Setembro de 1997, ao pagamento de
192.660.000$00 actualizados pelos índices de preços ao consumidor – reduzindo o montante indemnizatório a pagar aos expropriados M. C. e outros para
88.085.500$00 –, vieram estes interpor recurso de constitucionalidade com fundamento no disposto em cinco das nove alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro – a saber, as alíneas a), b), c), f) e g). Proferido despacho de aperfeiçoamento, por estarem em falta elementos referidos nos n.º 1 e 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, foi elaborada pelo relator decisão sumária, a 14 de Junho de 1999, no sentido do não conhecimento do recurso, por a resposta dos recorrentes não ter suprido a falta dos requisitos indispensáveis ao conhecimento dos tipos de recurso interpostos ou por não verificação dos seus pressupostos. Inconformados, os recorrentes reclamaram de tal decisão para a conferência, que, pelo Acórdão n.º 617/99, tirado a 10 de Novembro de 1999, desatendeu a reclamação.
2. Ainda inconformados, trazem agora os recorrentes a este Tribunal arguição de nulidade daquele acórdão, por 'abstenção de pronúncia' invocando um Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de Fevereiro de 1999 e um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 1993, que teriam considerado interpretativa a norma do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, acrescentando ser essa
'uma questão constitucional e legal já tratada anteriormente, em sentido positivo, pelo Ac. TC de 7.3.90, in DR - I Série de 30.3.90.' II. Fundamentos
3. O Acórdão do Tribunal Constitucional referido pelos ora reclamantes – o n.º
52/90 – declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 2 do artigo 30º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro, que limitava o valor dos terrenos situados em zona diferenciada do aglomerado urbano ao 'valor correspondente aos terrenos de médio rendimento da mesma zona ou região', nele nada se referindo, porém, quanto à natureza interpretativa ou não interpretativa da norma do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 438/91. Isto, como é natural, já que, como logo se escreveu no Acórdão deste Tribunal n.º 44/85 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, 1985, págs. 403-409):
'Para o Tribunal Constitucional a norma de direito infra-constitucional que vem questionada no recurso é um dado; cabe-lhe apenas verificar se essa norma é ou não inconstitucional. Saber se essa norma era ou não aplicável ao caso, se foi ou não bem aplicada, isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional. Em princípio, o Tribunal Constitucional não pode censurar o modo como os restantes tribunais aplicam o direito infra-constitucional'. Logo se alcança, portanto, a irrelevância dos acórdãos do Tribunal da Relação de
Évora e do Supremo Tribunal de Justiça, proferidos em processos alheios aos presentes autos, para as questões de constitucionalidade que nele se discutem. E também a invocação do Acórdão n.º 52/90 não é menos irrelevante para a pretendida 'omissão de pronúncia', tendo em conta, desde logo, que as decisões proferidas nos autos expressamente o referiram, interpretando e aplicando o direito infra-constitucional à sua luz (e do Acórdão n.º 131/88), e que – como pela terceira vez se refere – o Acórdão da Relação de Lisboa não recusou 'com fundamento em inconstitucionalidade e ilegalidade a aplicação da norma do artigo
23º do DL n.º438/91, de 9 de Novembro' (que é o fundamento invocado pelos recorrentes para imputarem omissão de pronúncia ao Acórdão deste Tribunal n.º
617/99, ora reclamado).
4. De facto, a primeira vez que se explicou que a norma do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 438/91 foi desaplicada pela decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, mas não com fundamento em inconstitucionalidade (ou ilegalidade), foi logo na decisão sumária onde se escreveu que
'a norma do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, não foi aplicada [na decisão então recorrida] apenas por se ter decidido a questão de direito transitório a favor da lei anteriormente aplicável (o Decreto-Lei n.º
845/76, de 11 de Dezembro), e não por se ter formulado qualquer dúvida de constitucionalidade em relação a ela.' E no Acórdão agora acusado de omissão de pronúncia, escreveu-se que
'o acórdão recorrido [o do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Novembro de
1997] (…) optou por aplicar aos autos as disposições constantes do Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro, não recusando com fundamento em inconstitucionalidade a aplicação daquele Decreto-Lei n.º 438/91.' O que se reafirmou na sua parte final:
'não houve pelo tribunal recorrido qualquer recusa de aplicação da norma do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade.' Não existe, pois, qualquer omissão de pronúncia relativamente à recusa de aplicação da norma do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, que se verificou não ter ocorrido com fundamento em inconstitucinoalidade. Entendem os recorrentes, mesmo assim, que 'o Tribunal Constitucional refugia-se em «sofismas algébricos» e não responde à questão constitucional tão profusamente expendida e fundamentada'. Mas o que designam por «sofismas algébricos» é o puro e simples cumprimento, constitucional e legalmente imposto, das condições previstas para conhecer dos recursos de constitucionalidade.
É que, como é sabido, não basta que uma questão de constitucionalidade seja excogitável para que dela se ocupe este Tribunal: é também necessário que a questão de constitucionalidade lhe seja colocada, em termos adequados, por quem tem legitimidade para o fazer e em termos de poder reflectir-se utilmente no processo em que o recurso de constitucionalidade teve origem. Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, pág. 875, 'para que se possa suscitar um incidente de inconstitucionalidade é necessária a verificação de certos requisitos e circunstâncias que na doutrina processual geral se designam por requisitos ou pressupostos processuais'. Não faltando, no caso, legitimidade para questionar a constitucionalidade da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, faltou, porém, manifestamente, adequação na forma como o recurso foi intentado, e, como se vê pelo crasso não cumprimento dos pressupostos processuais do recurso de constitucionalidade, entendimento correcto do que seja o nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade. O que se revela, até, no fundamento invocado para a alegada abstenção de pronúncia: segundo os recorrentes, este Tribunal 'nem ao menos' esclareceu se o Tribunal da Relação de Lisboa ajuizou que o montante indemnizatório deve ser actualizado no âmbito de Decreto-Lei n.º 845/76, como se este Tribunal o pudesse fazer e, mais do que isso, devesse fazer.
5. Também invocam os recorrentes 'erro de julgamento' no Acórdão reclamado, porquanto o n.º 11 da resposta ao despacho de aperfeiçoamento do relator
'completa os n.º 2 e 3, tendo os reclamantes indicado, de entre as normas cuja inconstitucionalidade/ilegalidade se pretendia que o Tribunal apreciasse, os n.º
1 e 2 do artigo 30º e o artigo 33º do Decreto-Lei n.º 845/76, normas aplicadas pela decisão recorrida, razão pela qual tais normas constituem inequivocamente objecto de recurso.' Transcrevem-se os números referidos, bem como as epígrafes que os antecediam para melhor aferir dessa alegada relação de complementaridade:
'II. As normas cuja inconstitucionalidade/ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie:
2. Pretende-se que o TC aprecie a ilegalidade/inconstitucionalidade das normas dos artigos 264º/3, 660º/2 e 712º/2 do CPC, na interpretação e dimensão que lhes foi dada pelas Instâncias.
3. Pretende-se ainda que o TC aprecie a recusa de aplicação das normas dos artigos
137º, 287º/e e 677º do Cód. Processo Civil, bem como da norma do artigo 23º do DL 438/91, de 9 de Novembro.
(…)
I. Peças processuais em que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade/ilegalidade
(…)
11.
II. A 1ª Instância decidiu e bem que para determinação da ‘justa indemnização’ devida só fazia sentido ‘aplicar in casu’ os critérios do Código aprovado pelo DL 438/91, até porque a avaliação foi feita tendo em conta quer o estatuído no DL 845/76, quer no DL 438/91, para obviar às declarações de inconstitucionalidade, objecto dos Acs. do TC n.ºs
131/88, de 8.6 e 52/90, de 7.3, relativamente aos n.ºs 1 e 2 dos arts. 30º e 33º do DL 845/76.' Ora, ainda que se pudesse ter por perceptível que 'os n.ºs 2, 3 e 11 dessa exposição estão conjugados', como agora invocam os recorrentes – o que certamente se não infere da transcrita redacção, mesmo quando justaposta –, em nada se alteraria a decisão impugnada já que, mesmo perante essa reposição do problema, a solução haveria de ser a mesma. Nesta nova configuração da questão de constitucionalidade 'os n.º 1 e 2 do artigo 30º e o artigo 33º do DL 845/76, normas aplicadas pela decisão recorrida', são referidos no n.º11, 'de forma que o n.º 11 completa os n.º 2 e
3.' Como se refere expressamente que tais normas foram aplicadas pela decisão recorrida, conclui-se que está em causa completar o n.º 2 (supra transcrito) e não propriamente completar o n.º 3 (que se refere a recusa de aplicação de normas). Ora, para se poder apreciar a constitucionalidade de normas aplicadas durante o processo era necessário que também durante ele se tivesse impugnado a sua constitucionalidade – o que os recorrentes não fizeram, nem sequer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, na subsequente resposta ao despacho de aperfeiçoamento ou na reclamação para a conferência. Não que não tivessem, nestes dois últimos momentos, referido tais normas: simplesmente, referiram-nas enquanto objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, sem lhes imputarem um preciso sentido alegadamente inconstitucional, e sem que, nesses termos, se pudesse fazer corresponder esse sentido ao que foi aplicado nos autos. É certo que nesse momento pretendiam
(intempestivamente, porém) identificar as normas aplicadas na decisão recorrida que teriam sido anteriormente julgadas inconstitucionais, e não impugnar a sua constitucionalidade. Além de extemporâneo, porém, qualquer desses exercícios era vão: quanto à alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, porque as normas aplicadas pela decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Novembro de 1997 não coincidiam com as normas aplicadas pela decisão recorrida, justamente porque esta teve presente a dimensão de inconstitucionalidade de que elas padeciam, afastando-se de tal dimensão; quanto à alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, porque nunca – nem durante o processo, nem, após esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal a quo, perante o Tribunal Constitucional – se identificou nas normas dos artigos 30º e 33º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, a inconstitucionalidade de que padeciam. E, naturalmente, não é possível apurar se foi ou não aplicado na decisão do Tribunal da Relação um qualquer sentido inconstitucional que nunca se concretizou nas intervenções da parte que ora o invoca, por remissão para Acórdãos deste Tribunal. Por outras palavras: mesmo à quarta tentativa, foram os recorrentes incapazes de articular um recurso de constitucionalidade: não o fizeram adequadamente no requerimento de interposição do recurso, nem na resposta ao convite de aperfeiçoamento proferido pelo relator, nem na reclamação para a conferência, nem na arguição de nulidade da decisão desta. Assim, nem mesmo subvertendo as regras processuais aplicáveis – por forma a admitir que a invocação de elementos para efeito de um tipo de recurso valesse antes para outro, e reavaliando os requisitos dos recursos de constitucionalidade no momento da arguição de nulidade em vez de no momento a que se referia a decisão arguida de nulidade – se conclui que a solução seria diversa. O que bem reforça o sem-sentido da arguição de nulidade por erro de julgamento. III. Decisão Nestes termos, decide-se desatender a arguição de nulidade, condenando-se os reclamantes em custas, com 10 unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 3 de Fevereiro de 2000 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa