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Processo nº 630/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
Recorrente(s): M. R. Recorrido(s): A. F. e mulher, M. L. I. Relatório:
1. A recorrente interpõe o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e f) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Pretende que este Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma constante do artigo 123º do Código de Processo Penal, 'com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, interpretação esta que vai no sentido de que tal norma permite ao tribunal de recurso anular o julgamento já terminado, bem como todos os actos subsequentes, permitindo ainda tal norma que o mesmo tribunal de recurso determine a repetição do julgamento'.
Refere que esta questão de inconstitucionalidade não foi suscitada antes, 'por tal ter sido manifestamente impossível à ora recorrente, uma vez que não dispôs de oportunidade processual para suscitar tal questão antes de proferida a decisão'.
2. O relator, por entender não poder conhecer-se do recurso, uma vez que se não verificam os respectivos pressupostos, proferiu decisão sumária neste sentido.
É desta decisão sumária que a recorrente agora reclama, dizendo, em síntese, que, embora não tenha suscitado, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade, também lhe não era exigível que o fizesse, pois 'não era exigível à reclamante a antevisão da aplicação da norma cuja interpretação conduziu à decisão pelo Tribunal da Relação' – norma que é, em seu entender, a do nº 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal, e não – como se diz na decisão sumária - a dos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, nº 1, do mesmo Código.
Os recorridos, por sua vez, entendem que a conferência não deve conhecer do recurso e condenar a recorrente em multa e indemnização, por litigar de má fé, pois 'vem fazendo uso reprovável do processo', já que 'sabe bem que as razões por si invocadas não têm qualquer sustentação possível, e mais não pretende que o arrastamento do processo com fins de fácil alcance'.
Sobre este pedido de condenação por litigância de má fé foi ouvida a recorrente, que disse dever o mesmo ser declarado improcedente.
3. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. Escreveu-se na decisão sumária: A recorrente, com efeito, como ela própria reconhece, não suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada sub specie constitutionis – a saber: da norma que 'permite ao tribunal de recurso anular o julgamento já terminado, bem como todos os actos subsequentes' e 'determin[ar] a repetição do julgamento'. E também não é caso de ser dispensada do cumprimento desse ónus. Na verdade o Procurador-Geral Adjunto na Relação, ao ser-lhe dada vista dos autos, pronunciou-se no sentido de que devia 'determinar-se o reenvio do processo com repetição de toda a prova'. Ora, a recorrente foi ouvida sobre este parecer. Podia, por isso, na sua resposta, suscitar a inconstitucionalidade de uma norma com aquele recorte, se era esse o seu entendimento. Não o fez, contudo. Acresce ainda que a norma ao abrigo da qual a Relação anulou o julgamento e actos subsequentes, determinando a sua repetição, consta dos artigos 426º, nº 1, e 426º-A, nº 1, do Código de Processo Penal. Tal norma, que é aquela cuja constitucionalidade vem questionada, não pode, pois, ser imputada ao artigo 123º do citado Código, que trata de irregularidades processuais. Mas, dizer isto é concluir que este artigo 123º não foi aplicado com o sentido que a recorrente lhe atribui, razão por que falha outro pressuposto do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a saber: ter a norma sido aplicada com o sentido que a recorrente reputa inconstitucional. Quanto ao recurso fundado na alínea f) do nº 1 do mesmo artigo 70º - aplicação de norma cuja ilegalidade (reforçada) tenha sido suscitada durante o processo -, também se não verificam os seus pressupostos.
5. A quanto se escreveu na decisão sumária há que acrescentar que, embora o acórdão recorrido não faça apelo expresso aos artigos 426º, nº 1, e 426º-A, nº
1, do Código de Processo Penal, para o efeito de determinar 'a repetição do julgamento pelo tribunal singular, com satisfação das formalidades legais essenciais à eficaz documentação dos actos da audiência', o certo é que não se vê que outras normas fossem aplicáveis. De facto, a Relação, depois de referir que a impossibilidade em que se encontrava de conhecer da matéria de facto a colocava numa situação que
'consubstancia ‘irregularidade’, que se encontra prevista no artigo 123º, nº 2, do Código de Processo Penal, afectando decisivamente a validade do acto praticado', concluiu que 'essa irregularidade só poderá ser sanada com a realização de novo julgamento pelo tribunal singular competente, que deverá providenciar pela cabal satisfação do requerido e deferido'. Ou seja: ao que tudo indica, a Relação deferiu o pedido de reenvio do processo, com repetição de toda a prova, promovido pelo Ministério Público no seu parecer. E, desse modo, aplicou os referidos artigos 426º, nº 1, e 426º-A, nº 1, por entender que, só com esse reenvio, era possível reparar a irregularidade que constatara. Dizendo de outro modo: a Relação, depois de verificar que a irregularidade cometida afectava a validade do julgamento efectuado, concluiu que tal vício só podia ser reparado aplicando, no caso, o regime dos ditos artigos 426º, nº 1, e 426º-A, nº
1, que visam expressamente os vícios referidos nas várias alíneas do nº 2 do artigo 410º do mesmo Código.
Vendo-se a questão sob o prisma apontado por último, poder-se-á, então, dizer que o que a recorrente verdadeiramente questiona não é a constitucionalidade de uma norma – extraia-se esta dos referidos artigos 426º, nº 1, e 426º-A, nº 1, ou antes do citado artigo 123º, nº 2 – mas a constitucionalidade da decisão judicial de, para reparar a irregularidade, recorrer à aplicação daqueles artigos 426º, nº 1, e 426º-A, nº 1. Se a questão dever ser assim encarada, a conclusão continua a ser o não conhecimento do recurso: na verdade, como este Tribunal tem sublinhado repetidamente, ele só pode controlar a constitucionalidade de normas jurídicas aplicadas pelas decisões judiciais recorridas, não obstante ter sido questionada, durante o processo, a respectiva constitucionalidade, ou por elas desaplicadas, com fundamento na sua inconstitucionalidade – e não também a constitucionalidade das próprias decisões judiciais consideradas em si mesmas.
De todo o modo, se houvesse de conhecer-se do recurso quanto à norma do artigo
123º do Código de Processo Penal, sempre ele haveria de julgar-se improcedente, pois a questão de constitucionalidade que constitui o seu objecto – a da norma segundo a qual a Relação, quando não disponha do registo da prova em termos de poder conhecer da matéria de facto que perante si foi impugnada, deve anular o julgamento e mandá-lo repetir – não viola, seguramente, qualquer norma ou princípio constitucional.
6. O pedido de condenação da recorrente como litigante de má fé não pode ser atendido, uma vez que a divergência de entendimento manifestada pela recorrente não pode ser qualificada de uso reprovável do processo.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). confirmar a decisão sumária reclamada e, em consequência, não conhecer do recurso;
(b). condenar a recorrente nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 25 de Janeiro de 2000 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida