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Proc. nº 856/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - C... intentou, em 14 de Novembro de 1995, no Tribunal Judicial da comarca de Oeiras, contra A..., acção de investigação de paternidade, pedindo que seja reconhecida como filha de J..., falecido em 5 de Dezembro de 1994.
Alegou para o efeito que, nascida em 7 de Março de 1970, não consta do respectivo assento quem é o seu pai, não obstante ser filha de uma relação mantida entre a sua mãe e o investigado, como assim a consideram as pessoas conhecidas de uma e de outro e o próprio tivesse assumido essa paternidade, tratando até à morte a autora como filha.
A acção foi contestada e, para além da impugnação dos factos, deduziu-se a excepção peremptória da caducidade, uma vez que o direito de accionar tinha de ser exercido até 7 de Março de 1990, ou seja, até dois anos após a autora ter atingido a maioridade, considerando o disposto no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil.
Na 1ª instância, por sentença de 4 de Abril de 1997, foi a excepção de caducidade julgada improcedente e, apreciada a matéria de facto dada como provada, subsumida ao respectivo enquadramento legal, julgou-se a acção procedente, por provada, e, em consequência, reconheceu-se o investigado como pai biológico da autora.
No tocante à questão da caducidade, pronunciou-se o tribunal pela tempestividade da acção, uma vez que a autora sempre fora tratada como filha pelo investigado, de modo que 'esse tratamento só terminou com a sua morte' e teve-se em conta o disposto no nº 4 do citado artigo 1817º.
Recorreu a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 11 de Dezembro de 1997, confirmou a sentença recorrida, se bem que por diferente via: em face da prova resultou incerta a época em que os actos de tratamento ocorreram, nomeadamente se perduraram ou não até à morte do investigado, mas, em todo o caso, improcede a excepção, uma vez que o ónus da prova sobre os factos capazes de suportar a excepção de caducidade recai sobre a ré, nos termos do nº 2 do artigo 342º do Código Civil, resolvendo-se, no caso, a dúvida contra a dita ré.
Inconformada, recorreu esta para o Supremo Tribunal de Justiça, de revista, invocando, para o efeito, violação do disposto nos artigos
1817º, nº 4, 1873º, 333º, nº 1, e 342º, nºs. 1 e 3, todos do Código Civil e nos artigos 439º, nº 3, 516º e 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
2. - O Conselheiro relator, por despacho de 3 de Abril de
1998, ordenou a audição das partes, dado o disposto no nº 3 do artigo 3º deste
último diploma legal, introduzindo na lide uma questão de constitucionalidade como objecto de ponderação provocada:
'Para a hipótese de se vir a decidir que a investigante não beneficia do prazo do artigo 1817º, nº 4, do Código Civil [escreveu], colocar-se-á a questão de aplicar o disposto no nº 1 do mesmo preceito legal. Neste caso, o Tribunal terá que enfrentar uma questão que é de conhecimento oficioso: a de saber se esta norma, a do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, ao fixar o prazo de dois anos,
é inconstitucional por tal prazo não ser razoável, face aos princípios da adequação e da proporcionalidade; se o estabelecimento de um prazo tão curto assume o carácter de restrição do direito da pessoa à sua identidade e estado pessoal, com violação do disposto nos artigos 25º, nº 1, e 26º nº 1, da Constituição, caindo, assim, sob a alçada do artigo 18º, nºs. 2 e 3, da mesma Constituição.'
Face a este discurso retórico - que se pretendeu libertar do acento positivista da argumentação utilizada - as partes vieram, naturalmente, aos autos.
A autora e recorrida considerando, em síntese, que, na hipótese de se entender que não beneficia do prazo do nº 4 do artigo 1817º do Código Civil, não poderá ser aplicada a norma do nº 1 do mesmo artigo, por inconstitucional, 'na medida em que limita o prazo de propositura da acção de investigação de paternidade aos dois primeiros anos posteriores à maioridade do investigante', o que viola o disposto nos artigos 25º, nº 1, 26º, nº 1, 2º e
18º, nºs. 2 e 3 da Constituição. Acresce que, independentemente do prazo de um ano ali estabelecido, também a norma do nº 4 é inconstitucional, por ofensa aos mesmos preceitos constitucionais, 'se interpretada no sentido de incumbir ao investigante o ónus da prova do não decurso do prazo de caducidade, pois também em tal caso e em tais termos, a lei restringe desproporcionadamente o direito fundamental à filiação'.
Por seu turno, a ré e recorrente manifesta-se em sentido discordante. Em sua tese, o artigo 1817º é a expressão do equilíbrio entre o exercício irrestrito do direito e a sua regulamentação em termos que, negando a natureza absoluta do direito o procura conciliar, em parâmetros de constitucionalidade, com a subjacente utilidade social que representa o limite à insegurança familiar que assumiria a permanente ameaça de uma acção deste tipo.
3. - Prosseguindo os autos seus termos, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 25 de Junho de 1998, chegou à conclusão que a acção foi intentada em tempo e, em consequência, negou a revista.
Para esse Alto Tribunal, 'o disposto no artigo 1817º, nº
1, do Código Civil, enquanto faz correr o prazo de caducidade da acção de maternidade ou de paternidade, de apenas dois anos após a maioridade, entre os dezoito e os vinte anos de idade, em tempo em que o jovem é ainda muito imaturo, inexperiente, idealista, impreparado para a complexidade da vida actual e carecido de meios económicos próprios, assume o carácter de restrição do direito ao conhecimento e ao reconhecimento da maternidade ou da paternidade, consagrado nos artigos 25º, nº 1, e 26º, nº 1, com a ofensa do disposto nos artigos 18º, nº
2, 1º e 13º, estes artigos da Constituição da República'.
Assim sendo, trata-se aquele nº 1 do artigo 1817º do Código Civil de norma inconstitucional, cuja aplicação deve ser recusada pelos tribunais, em obediência ao disposto no artigo 204º da Constituição, o que se faz.
A demandada A..., notificada, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com vista à apreciação da constitucionalidade da norma cuja aplicação o Supremo recusou.
Igualmente o competente magistrado do Ministério Público recorreu para o Tribunal Constitucional, com o mesmo objectivo, ao abrigo do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), 72º, nº 1, alínea a) e 3, 75º-A, nº
1, e 76º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
4. - Notificados, alegaram recorrentes e recorrida.
O Senhor Procurador-Geral adjunto, com o apoio da jurisprudência deste Tribunal, que não tem surpreendido vício de constitucionalidade na norma em sindicância, concluíu pela procedência do recurso, formulando a seguinte conclusão:
'A norma constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, ao estabelecer que a acção de reconhecimento judicial da filiação deve ser proposta, em regra, antes de decorridos dois anos, contados da maioridade do investigante, não constitui restrição excessiva ou desproporcionada ao direito do filho de investigar e obter o reconhecimento judicial da filiação.'
A recorrente A..., por seu turno, elaborou as seguintes conclusões, no sentido de ser dado provimento ao recurso:
'A)- A recorrente apresentou ao Supremo Tribunal de Justiça as razões do seu inconformismo ante as soluções encontradas, para a causa, pelo Tribunal de Círculo de Oeiras e pelo Tribunal da Relação de Lisboa. B)- A questão proposta, e discutida, prende-se com os prazos previstos para a instauração da acção de investigação de paternidade, regulados pelo artº 1817º do CC, aplicável por força do disposto no artº 1873º, do mesmo Código. C)- Entendeu a recorrente que o Tribunal de Círculo de Oeiras assentou a decisão em factos que não estavam provados. D)- E que, por isso, tinha que ter considerada a acção improcedente, por intempestiva. D)- O Tribunal da relação, tal como a recorrente, assim também o entendeu, mas negou provimento ao recurso, por entender que a prova dos factos cabia à recorrente. E) O Supremo Tribunal de Justiça, a cuja superior apreciação foi posta a questão, antendeu às razões da recorrente, considerando que a acção era intempestiva, por ter transcorrido o prazo de caducidade previsto naqueles preceitos do CC. F)- Contudo, negou revista, por entender que as normas dispostas pelo artº 1817º são inconstitucionais. G)- Suporta a declaração de inconstitucionalidade das referidas normas, na consagração constitucional do direito ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade como direito fundamental, de natureza pessoal, insusceptível de ser restringido. H)- Assim, que nada justifica que o direito de investigar a própria maternidade ou paternidade caduque aos 20 anos de idade do investigante. I)- Daí a inconstitucionalidade do disposto no referido artº 1817º do CC que, segundo tal entendimento, ao impor a caducidade do direito de investigar a maternidade ou a paternidade, restringe este direito em termos que não encontram justificação no disposto no artº 18º da Constituição. J)- Por isso, em cumprimento do disposto no artº 204º, da mesma Lei, recusou a aplicação daquela norma do Código Civil, deste modo tornando possível, sem limitação temporal, a investigação da maternidade ou da paternidade. L)- Em argumento, refere quer um jovem de dezoito anos é suficientemente imaturo para decidir-se por uma actuação que visa a sua completa identidade. M)- Diremos nós, sob esse ponto de vista, também o será para o exercício de muitos outros direitos que a maioridade, aos dezoito anos, lhe confere. N)- Ou, do mesmo modo, para a assunção de obrigações de conteúdo profundo e vasto que, a ocorrer, os não liberta da responsabilidade que lhes é inerente. O)- Mas, e além de tudo isso, o mais que pudessemos dizer, já foi dito por este Tribunal, em acórdãos que constituem doutrina a seguir. P)- De facto, em socorro na nossa convicção da constitucionalidade das normas propostas pelo artº 1817º, colhemos os ensinamentos veiculados pelo Acórdão nº
99/88 (in DR, II Série, de 22.08), e pelos Acórdãos nºs. 413/89 (in DR, II Série, de 15.09), 451/89 (in DE, II Série, de 21.09) e 370/91, de 25.09, in BMJ nº 409, 314 ss. Q)- O estudo profundo que a questão suscitou, resultou na declaração, por via de tais Acórdãos, da constitucionalidade do referido artº 1817º. R)- Entendendo, como entendeu, este Tribunal, que o direito do investigante não pode ter um valor tão absoluto, colocou-o no confronto com outros valores que, pelo grande mérito que não pode deixar de se lhes atribuir, obrigam ao condicionamento daquele. S)- Tanto é o que faz o Código Civil, por via do seu artº 1817º. T)- Na verdade, este diploma não restringe aquele direito, antes conforma o seu exercício por forma a permitir o seu convívio com todos os outros valores que, referidos naqueles arestos, estão com ele em íntima conexão. U)- O Supremo Tribunal de Justiça, ao não aplicar o artº 1817º do CC, por remissão feita pelo artº 1873º, do mesmo Código, violou estes, tanto como o disposto no artº 204º da Constituição da República Portuguesa.'
Finalmente, a autora e recorrida defende a confirmação do decidido, negando-se provimento ao recurso, entendendo, conclusivamente, que
'o juízo de valor quanto à norma do artº 1817º, nº 1, do Código Civil não pode deixar de conduzir à conclusão da sua inconstitucionalidade, por ser manifestamente injusto, violando a justiça acolhida nos princípios constitucionais referidos no douto acórdão recorrido'.
Cumpre decidir.
II
1.1. - O objecto do presente recurso de constitucionalidade circunscreve-se à norma do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil (aplicável às acções de investigação de paternidade, de acordo com o artigo 1873º do mesmo texto de lei), que assim dispõe:
'A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.'
1.2. - Após citar o artigo 342º do Código Civil, o acórdão recorrido desenvolve o seguinte teor argumentativo:
'Na espécie, a autora intentou a acção quando já tinha vinte e quatro anos de idade. Para se colocar ao abrigo do caso especial previsto no artº 1817º, nº 4, do Cód. Civil a autora alegou actos de tratamento praticados pelo investigado
'sempre', 'todas as semanas', 'até à sua morte'. Uma vez que acabou por se não provar qual o tempo em que os actos de tratamento, os que se provaram, ocorreram, coloca-se a questão de saber sobre qual das partes recai o ónus da prova respectivo. Ou, por outras palavras, cabe dilucidar se o tempo dos actos de tratamento é facto constitutivo de a autora ingressar a acção em juízo quando já tinha vinte e quatro anos de idade; ou se aquele tempo tem carácter de facto extintivo do direito apontado. Na lição de Antunes Varela, 'os factos constitutivos antecedem ou acompanham o nascimento da relação em que se integra o direito ou se baseia a pretensão; os factos extintivos pressupõem a constituição anterior da relação, visto actuarem de certo modo sobre os efeitos dela. Por outro lado, os factos constitutivos integram o processo de formação do direito ou da pretensão, enquanto os factos extintivos operam a cessação dos efeitos da relação. (...) Ao autor cabe a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido. O autor terá assim o ónus de provar os factos correspondentes à situação de facto traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão. Ao réu incumbirá, por sua vez, a prova dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que se baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva invocada'. Resulta agora claro que o tempo em que os actos de tratamento, pelo investigado praticados, aconteceram, acompanha o nascimento do direito de a autora investigar a sua paternidade depois de haver completado os vinte anos de idade. O tempo dos actos de tratamento integra a formação do direito de a autora investigar tardiamente (em relação à regra do artº 1817º, nº 1, do Cód. Civil) a sua paternidade. O tempo destes actos de tratamento serve, de harmonia com o disposto no primeiro segmento do artº 1817º, nº 4, do Cód. Civil, de pressuposto do direito de a autora intentar a acção quando o fez. Assim, o tempo revela-se, neste primeiro segmento daquele preceito legal, um facto constitutivo do direito da autora. Recai sobre a autora o ónus da prova, arcando com a consequência de se não ter provado que aqueles actos foram praticados pelo investigado 'sempre',
'todas as semanas', 'até à sua morte'. Este tempo que identifica os actos de tratamento não se confunde com esse outro tempo, agora o referido no segundo segmento do artº 1817º, nº 4, do Cód. Civil, aquele que, sendo vazio de actos de tratamento, determina, por caducidade, a perda do direito de a autora investigar a sua paternidade. Este último prazo, este lapso de tempo de um ano, é que é um prazo de caducidade. Ele pressupõe que anteriormente ao seu início se tenha formado o direito de a autora investigar tardiamente a sua paternidade, surgindo posteriormente, com a função de fazer extinguir aquele direito. Aqui, sim, que o ónus da prova do início e decurso deste tempo recai sobre a ré por se tratar de facto extintivo. Ora, na espécie, não tendo a autora conseguido fazer a prova de que os actos de tratamento ocorreram no tempo capaz, segundo o primeiro segmento do artº 1817º, nº 4, do Cód. Civil, de a autorizar a investigar a sua paternidade depois de haver completado vinte anos de idade, improcede este direito que procurou fazer valer. A situação cai, assim, na regra geral do artº 1817º, nº 1, do Cód. Civil que obrigava a autora a ingressar a acção em juízo até completar os vinte anos de idade. Não o tendo feito, teria caducado o seu direito.'
1.3. - Não estão em causa, por conseguinte, nem o prazo fixado no nº 3 do artigo 1817º, relativo a escrito em que inequivocamente se declare a maternidade (ou a paternidade), nem tão-pouco o do nº 4, que contempla a hipótese de cessação de tratamento como filho por parte do investigado - ambos constituindo excepções à regra fixada naquele nº 1.
Qualquer destes preceitos regem para situações cuja apreciação foi subtraída à competência do Tribunal Constitucional, face à matéria de facto apurada nas instâncias e à interpretação que o Supremo acolheu quanto às normas sobre a repartição do ónus da prova.
2.1. - No entanto, no aresto recorrido não se colocou a questão de legitimidade constitucional da existência de prazo para a propositura da acção; apenas se recusa a aceitação do prazo legalmente previsto, face à sua amplitude. Assim é que, a dado passo do acórdão, se afirma peremptoriamente
'nada justificar que o direito a investigar a própria maternidade ou paternidade caduque aos vinte anos de idade'.
Esta é, na verdade, a chave da questão a que se terá de dar resposta. Se é 'desproporcionadamente exíguo' o prazo para o exercício da acção judicial, quid juris?
2.2. - Escreveu-se no acórdão:
'São três as justificações que se costumam dar para fixar a caducidade tão prematuramente: a) conveniência de estabelecer a maternidade ou a paternidade para o período da vida do filho em que é mais necessário e pode ser mais útil; b) conveniência de investigar a verdade o mais próximo possível dos acontecimentos; c) contrariar a tendência de converter a acção de investigação em instrumento de caça à herança.'
O acórdão passa, em seguida, a analisar cada um destes elementos, de per si:
'Quanto à primeira justificação, a alegada conveniência de o estabelecimento da filiação dever ter lugar quando é mais necessário e pode ser mais útil para o filho, contrapõe-se o disposto no artº 1880º do Código Civil onde se prevê a prestação de alimentos pelos pais aos filhos muito para lá da idade em que se atinge a maioridade. A aprendizagem escolar e profissional, cada vez mais especializada, prolonga-se actualmente por muitos anos para além da idade em que se atinge a maioridade, de tal sorte que em muitos casos só perto dos trinta anos de idade se vem a completar. Ora, é precisamente ao longo dos vinte anos
(isto é, até próximo dos trinta anos de idade) que, tantas vezes, o filho mais necessita do apoio e esforço de ambos os progenitores, nomeadamente do ponto de vista económico. Quanto ao argumento da dificuldade de prova dos factos muito depois de eles terem acontecido, contrapõe-se que, actualmente, o avanço da ciência permite estabelecer com grande segurança a maternidade ou a paternidade, até mesmo depois da morte. O terceiro argumento envolve muito de hipocrisia. O que verdadeiramente ele procura encobrir, hoje como no passado, é a luta dos filhos do casamento pela divisão entre si dos bens da herança, com preterição dos filhos extramatrimoniais, os antigos ilegítimos. Tanto anda à 'caça' da herança o filho do casamento (quando pretende, com palavras como 'defesa da família', ficar com toda a herança só para si) como o de fora do casamento (quando só aparece à hora da morte do progenitor quiça, como muitas vezes se percebeu no passado, por só então aparecer quem se disponibilizasse a patrociná-lo).'
Resulta, assim, observa-se a concluir, que 'o estabelecimento de caducidade do direito de investigar a maternidade ou a paternidade aos vinte anos, nos termos em que o faz o artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, restringe o direito ao conhecimento e ao reconhecimento da filiação em termos que não encontram justificação no disposto no artigo 18º, nº
2, da Constituição da República Portuguesa'.
E acrescenta-se:
'O estabelecimento da caducidade da acção de investigação aos vinte anos de idade do investigante, como regra, ofende de modo frontal, real e inequívoco a ideia, ínsita no artigo 1ºda Constituição da República, de protecção dos direitos humanos que vincula o Estado à criação de um direito que salvaguarde a dignidade da pessoa humana. Dignidade esta que resulta agredida com o estabelecimento de uma tão baixa idade para a caducidade da acção de investigação. O artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, no aspecto em apreço, não encontra justificação nos interesses a tutelar, revelando-se aquela solução legal, na sua faceta actual, desadequada, desproporcionada, arbitrária e excessiva, de onde ofender as exigências do artigo 13º da Constituição.'
De resto, seriam especialmente relevantes, quando está em causa o ingressar e fazer seguir em juízo uma acção judicial, a complexidade da vida actual - para o jovem ainda muito imaturo, inexperiente, idealista e impreparado - e a carência de meios económicos.
3.1. - Assim, retira-se da leitura do acórdão que não se vai ao ponto de não aceitar um prazo de caducidade para a acção em si, em nome da verdade biológica da filiação jurídica, pois nele não se questiona nem 'a limitação no tempo do direito de se investigar a paternidade face à indisponibilidade dos direitos respeitantes ao estado das pessoas', nem tão pouco se impetra a validade da norma respeitante à filiação fora do casamento em confronto com 'a determinação da maternidade ou paternidade dos filhos nascidos dentro da casamento e à luz do princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º da Constituição da República, com as precisões do artigo 36º, nº 4, da Lei Fundamental'.
O acórdão, ao menos implicitamente, admite que outros valores - que não apenas o da ilimitada recepção à averiguação da verdade biológica da filiação - como os relativos à certeza e à segurança jurídicas, possam intervir na ponderação dos interesses em causa, como que 'comprimindo a revelação da verdade biológica', para utilizar uma expressão de Guilherme de Oliveira (cfr. 'O Estabelecimento da Filiação – Mudança recente e perspectivas' in Temas de Direito da Família, Coimbra, 1986, pág. 98).
Não se abordará, no entanto, por desnecessário, a controversa problemática do sentido dessa compressão, se verdadeira restrição a direitos pessoais com assento constitucional, se mero 'condicionamento' do seu exercício, polémica que, nesta própria área, certa jurisprudência do Tribunal Constitucional reflecte (cfr. os acórdãos nºs. 99/88 e 370/91, publicados no Diário da República, II Série, de 27 de Agosto de 1988 e 2 de Abril de 1992, respectivamente).
A tese prosseguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao recusar a aplicação da norma do nº 1 do artigo 1817º, é, na verdade, desconstrutiva: tomando em consideração a integridade e a identidade pessoais dos cidadãos, enquanto direitos fundamentais garantidos pelos artigos 25º, nº 1, e 26º, nº 1, da Constituição, e articulando esse complexo normativo com o prazo de caducidade previsto na lei, em seu critério exíguo, configurando desrazoablidade e desproporção, ajuíza inconstitucional a norma que impõe ao titular do direito ponderar adequadamente, em tão curto espaço de tempo, o modo de o exercer, dadas a imaturidade, inexperiência e impreparação inerentes ao seu nível etário.
3.2. - Não se duvida da pertinência dos parâmetros constitucionais convocados - o que, de resto, desde há muito a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem salientado.
Assim, poderá ilustrar-se essa preocupação citando não só os já referidos acórdãos nºs. 99/88 e 370/91, como também o nº 451/89, publicado no Diário citado, II Série, de 21 de Setembro de 1989, e outro mais recente que daqueles se faz eco (acórdão nº 311/95, ainda inédito): na averiguação do vínculo real de parentesco, neles se surpreendeu uma decorrência seja do direito fundamental à integridade pessoal, com assento no nº 1 do artigo
25º da Constituição da República, seja do direito fundamental à identidade pessoal, acolhido no nº 1 do artigo 26º do mesmo texto, como expressão do entendimento já então professado por Guilherme de Oliveira, segundo o qual o conhecimento da ascendência verdadeira é um aspecto relevante da personalidade individual e uma condição de gozo pleno desses direitos fundamentais (cfr.,
'Impugnação da Paternidade', in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Suplemento XX, Coimbra, 1973, pág. 193; em Separata, Coimbra, 1979, pág. 66).
Certo é que o Tribunal Constitucional, sem prejuízo de ter aceite que o decurso do prazo 'cala a revelação da progenitora e a relevância jurídica do parentesco' (de novo Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, Coimbra, 1983, pág. 460), reconheceu dever assumir-se uma visão mais holística da realidade, pois também são valores ligados à organização social a certeza e a segurança, admitindo-se, assim, como constitucionalmente incensurável uma solução legislativa que fixe prazos de caducidade para a propositura deste tipo de acções (cfr. os acórdãos nºs.
451/89, já citado, e 413/89, publicado no Diário citado, II Série, de 15 de Setembro de 1989).
4.1. - Não se acompanha, no entanto, ao menos em toda a sua extensão, a tese do Supremo que, ao intervir modeladoramente na capacidade de exercício de direitos de um cidadão que, pela maioridade, fica habilitado a reger a sua pessoa e a dispor dos seus bens 'toca' na plenitude dessa capacidade
- a não ser que pretenda pôr em causa a constitucionalidade da própria norma do artigo 130º do Código Civil.
Com efeito, para quem possui maioridade legal, emerge da tutela geral da personalidade que o artigo 70º do Código Civil consagra, o pressuposto 'tanto da maturidade física, psíquica e moral de cada homem, como das suas potencialidades de aperfeiçoamento e de obtenção de níveis mais conseguidos de maturidade', como observa um autor (Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, pág. 171).
A própria lei não deixa, pontualmente, de valorar a maturidade de cada cidadão, tomando-a, quer na área do direito público, quer na do privado, como bem jurídico a considerar como pressuposto para a prática ou para a avaliação de certos actos jurídicos (cfr. Capelo de Sousa, ob. cit., pág.
172), como acontece, por exemplo, no próprio texto constitucional, no caso da idade mínima exigida na eligibilidade para Presidente da República (artigo 122º da Constituição), ou, como ocorre no instituto da adopção, com as idades mínimas exigidas para os adoptantes (cfr. os artigos 1979º e 1992º do Código Civil). O que se revela particularmente sensível no domínio do direito penal, onde, para além do regime especial para jovens adultos, são evidentes as aflorações de critérios de maturidade biológica, intelectual, afectiva e ética, nos índices comportamentais de indivíduos e de grupo, não se prescindindo de investigar a maturação da inteligência e as reais capacidades de abstracção, discernimento, apreciação ética e determinação da vontade (Maria Fernanda Palma,
'Desenvolvimento da pessoa e imputabilidade no Código Penal Português', in Sub Judice, nº 11, 1996, pág. 61 e ss.).
No entanto, em princípio, quaisquer iniciativas pontuais conducentes a uma intromissão na estatuição normativa, ditadas por uma
'convicção de certeza' fundamentada em pré-compreensões ganhas pela longa experiência da vida - no fundo, extrapolando para o domínio dessa estatuição o
'ir e vir' da perspectiva entre a situação de facto e a proposição jurídica, de que fala Larenz - a terem lugar, devem processar-se em sede da liberdade de conformação do legislador ordinário, só se emitindo um juízo de
(in)constitucionalidade perante a evidência da violação da 'justa medida'.
O que não é o caso.
4.2. - De resto, uma vez que se está perante um processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, será pertinente observar que, no caso concreto, a acção foi proposta quando a investigante tinha já 25 anos de idade.
Por sua vez, as considerações tecidas a respeito das dificuldades económicas, que é suposto experimentarem os jovens para fazerem face a este tipo de acções, cedem naturalmente se fôr utilizado o mecanismo do apoio judiciário o que sucedeu no caso, tendo a autora litigado com esse apoio, em toda a sua amplitude.
III
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em conformidade, determina-se a reforma da decisão recorrida em consonância com o juízo de não inconstitucionalidade.
Custas pela recorrida, fixando-se em 15 unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 21 de Setembro de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida