Imprimir acórdão
Processo nº 157/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
Recorrente(s): J...
Recorrido(s): Ministério Público
I. Relatório:
1. O recorrente interpõe o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e g) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação do Porto, de 24 de Novembro de 1999 (rectificado pelo de 15 de Dezembro de 1999), que negou provimento ao recurso por ele interposto do acórdão do Tribunal de Círculo de Braga (de 15 de Março de 1999), que o condenou na pena de quinze meses de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de crianças (previsto e punível pelo artigo 172º, nº 1, do Código Penal).
Pretende o recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade dos artigos 127º, 129º, 339º, nº 4, 374º, nº 2, e 426º do Código de Processo Penal,
'na interpretação e aplicação que lhe foi dada no douto acórdão recorrido'.
O relator, por entender não poder conhecer-se do recurso, por se não verificarem os respectivos pressupostos, proferiu decisão sumária nesse sentido.
2. Desta decisão sumária reclama, agora, o recorrente para a conferência, sustentando, em síntese, que suscitou, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 4 do artigo 339º do Código de Processo Penal 'na interpretação/aplicação feita pela 1ª Instância e sufragada pela Relação'; e que também se verifica 'o requisito ou pressuposto para o conhecimento do recurso interposto, também quanto à constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal tal como foi interpretada/aplicada pelo acórdão recorrido'.
O Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal respondeu como segue:
1º A presente reclamação é obviamente infundada, já que – como bem se refere na douta decisão sumária: a) Não se verificam os pressupostos do recurso infundado na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, já que o tribunal da Relação não aplicou a norma constante do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal com o sentido inconstitucional, invocado pelo recorrente; b)Relativamente ao recurso fundado na alínea b) daquele preceito legal, é manifesto que o recorrente não suscitou, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que pudesse constituir objecto idóneo do recurso de fiscalização concreta que interpôs.
2º Deverá, pois, confirmar-se inteiramente tal decisão, cujos fundamentos não resultam minimamente abalados pela reclamação ora deduzida.
3. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. Na decisão sumária reclamada, para fundamentar o não conhecimento do recurso, escreveu-se o seguinte:
2.1.O recurso, enquanto fundado na alínea g) do nº 1 do artigo 70º (aplicação de norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal), embora o recorrente o não diga, só pode ter por objecto a norma do citado artigo 374º, nº
2, como decorre da invocação, feita na motivação do recurso para a Relação, do acórdão deste Tribunal nº 680/98 (publicado no Diário da República, II série, de
5 de Março de 1999). Nessa motivação, pode, na verdade, ler-se o seguinte, com referência ao acórdão de 2 de Dezembro de 1998: 'assim, não foi fundamentada suficientemente a decisão, contra o entendimento do acórdão do Tribunal Constitucional, de
2/12/1998, interpretando e aplicando o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal em violação das mais amplas garantias de defesa, incluindo o recurso, consignadas no nº 1 do artigo 32º da Constituição'. Simplesmente, contrariamente ao que o recorrente pretende, este artigo 374º, nº
2, não foi interpretado e aplicado pelo acórdão recorrido com o sentido que o referido acórdão nº 680/98 julgou inconstitucional. De facto, tal preceito legal foi julgado inconstitucional 'na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal'. Ora, no acórdão recorrido, diz-se expressamente, com referência à decisão da 1ª instância, que a mesma 'é bem explícita quanto às razões que conduzem à adesão às declarações da mãe da lesada – ‘minuciosas e coerentes (surpreendeu o arguido com a menor, vindos dum local isolado do parque; constatou alterações físicas no rosto da menor; esta veio a relatar ter sido molestada pelo arguido)’'. E acrescenta-se:
'portanto, a fundamentação do acórdão não é passível de censura, não tendo contrariado, de forma alguma, o disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Demonstra-se absoluto respeito ao entendimento do acórdão do Tribunal Constitucional de 2 de Dezembro de 1998, na interpretação e aplicação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, sem beliscar as mais amplas garantias de defesa, incluindo o recurso, consignadas no artigo 32º, nº 1, da CRP. O qual vem excluir determinada prática duma referência genérica às provas tomadas em audiência, enquanto se limita a mera ‘enunciação’'. Não tendo o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal sido interpretado com o sentido que este Tribunal julgou inconstitucional no seu acórdão nº 680/98, não se verificam os pressupostos do recurso de constitucionalidade a que se refere a alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
2.2. O recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional tem, como pressupostos, entre outros, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinadas normas jurídicas (ou de uma certa interpretação das mesmas) e que a decisão recorrida tenha aplicado tais normas (ou essa interpretação) como suas rationes decidendi.
Só as normas jurídicas assim aplicadas pela decisão recorrida podem ser objecto do recurso de constitucionalidade, e não as próprias decisões em si mesmas consideradas. É dizer que o controlo de constitucionalidade é um controlo normativo, pelo que não pode ter por objecto actos não normativos do poder público, designadamente as sentenças judiciais a se. Pois bem: no presente caso, a única norma a que, na motivação do recurso para a Relação, o recorrente assacou o vício de inconstitucionalidade foi à do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, da qual disse violar o nº 1 do artigo
32º da Constituição. Tal resulta do capítulo V daquela peça processual, subordinada à epígrafe inconstitucionalidade, e, bem assim, das conclusões dessa motivação (cf. a conclusão 4ª). No mais, o recorrente imputou os vícios à própria decisão de que então recorria: atribuiu-lhe violação dos artigos 339º, nº 4, e 340º do Código de Processo Penal (conclusão 1ª) e do nº 2 do artigo 32º da Constituição, ou seja, do princípio in dubio pro reo ou da presunção de inocência, nele consagrado. Só que aquele artigo 374º, nº 2 – única norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo – não foi aplicada pelo acórdão recorrido com o sentido inconstitucional que o recorrente lhe imputa: desde logo, não é exacta a afirmação que o recorrente faz de que 'a indicação dos meios de prova não contêm o exame crítico suficiente para garantir credibilidade ao depoimento' (refere-se ao depoimento da mãe da menor). Do mesmo passo, também o não é a asserção de que
'a decisão recorrida, ao não ouvir a menor e ao dar toda a credibilidade ao depoimento da mãe, não fundamentou suficientemente a formação da sua convicção, pois não considerou a versão do arguido, e nenhuma prova directa foi produzida'. E o mesmo se diz quanto à afirmação de que 'ao mesmo tempo, valorou como agravante e coadjuvante do sentido da decisão a posição assumida em audiência pelo arguido e que eufemisticamente retratou como ‘não tendo colaborado para a averiguação da verdade’'. Com efeito, para além do que consta da transcrição do acórdão a que atrás se procedeu, em tal aresto consignou-se ainda que a decisão da 1ª instância, ao referir que o arguido 'não colaborou para averiguação da verdade', não está a afirmar a existência de uma qualquer agravante, mas tão-só a sublinhar que é de excluir o arrependimento e 'tudo quanto possa propender para uma atenuação da pena, no sentido da prevenção especial'. Acrescentou-se que o depoimento da mãe da menor, 'enquanto narra que vê o arguido e a lesada imediatamente após o acto sexual, quando regressavam ao ponto de partida, bem como a detecção de evidências fisiológicas estampadas no rosto da lesada e a sua imediata revelação, por confissão, sem dúvida que se trata de uma prova de natureza directa'. Disse-se que a menor tem apenas seis anos de idade, o que explica que não tenha sido ouvida. Ajuntou-se que o arguido não contestou, 'não havendo documentação na acta das declarações orais e, no que versa ao disposto no artigo
361º, nº 1, tendo o arguido respondido negativamente, não é admissível atacar a sentença por não se discutir a ‘defesa’'. E ainda que, se interessava a audição da menor, competia ao arguido reagir de imediato, o que ele não fez. Quanto ao recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º, não se verifica, pois, a suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade relativamente às normas dos artigos 127º, 129º, 339º, nº 4, e 426º do Código de Processo Penal. E, quanto à norma do artigo 374º, nº 2, do mesmo Código, suposto que ela também constitui objecto do recurso fundado nessa alínea, não foi tal norma aplicada com o sentido reputado inconstitucional.
5. Nada há a alterar no que então se escreveu. De facto, a norma constante do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal não foi aplicada com o sentido com que este Tribunal a julgou inconstitucional no seu acórdão nº 680/98, como se mostrou na decisão reclamada. E o que importa
é o julgamento de inconstitucionalidade tal como este Tribunal o fez, e não que o reclamante leia esse aresto 'como abrangendo o exame crítico das provas com vista ao estabelecimento crítico da sua credibilidade'.
Quanto à norma constante do nº 4 do artigo 339º do Código de Processo Penal, a sua inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, como se mostrou na decisão reclamada. Isso mesmo resulta, de resto, da transcrição da motivação de recurso, que o reclamante agora faz, para sustentar que 'manifestamente se impugnou [...] a interpretação/aplicação feita pelo tribunal de 1ª Instância da norma do nº 4 do artigo 339º do Código de Processo Penal, como violadora do nº 1 do artigo 32º da Constituição'. Na verdade, depois de dizer que tal norma 'define o objecto da discussão como constituído pelos factos da acusação, da defesa (ou seja da contestação escrita) e os resultantes da discussão da causa, entre os quais se incluem obviamente os relatados pelo arguido na audiência, desde que relevantes para a decisão', o ora reclamante reproduz o que então escreveu, que foi o seguinte: 'o que não foi feito. Com violação, obviamente, das mais amplas garantias de defesa consignadas no artigo 32º, nº 1, da Constituição e no nº 4 do artigo 339º do Código de Processo Penal'.
Há, por isso, que indeferir a reclamação apresentada e confirmar a decisão de não conhecimento do recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar a decisão de não conhecimento do recurso;
(b). condenar o reclamante nas custas com quinze unidades de conta de taxa da justiça.
Lisboa, 2 de Maio de 2000 Messias Bento José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa