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Processo nº 13/00
3ª Secção Rel.. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - O Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (redacção da Lei nº 13-A/98, de 25 de Fevereiro), do despacho de 12 de Novembro de 1999 do Conselheiro relator que não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional do acórdão daquele Supremo de
24 de Junho de 1999, aclarado por acórdão de 14 de Outubro seguinte, proferido nos autos de recurso penal, registados sob o número 621/99, vindos do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Loures (processo comum nº 171/98.4 GELRS), em que são recorrente C... e recorridos o Ministério Público e outro.
2. - O mencionado aresto de 24 de Junho, proferido em conferência, entendeu que o recurso interposto por aquele recorrente do acórdão da 1ª instância não visava exclusivamente o reexame da matéria de direito pelo que o Supremo Tribunal de Justiça dele não podia conhecer.
Na respectiva fundamentação considerou esse Alto Tribunal que, de acordo com o disposto no artigo 432º, alínea d), do Código de Processo Penal (CPP), o recurso para si das decisões do tribunal colectivo visa exclusivamente aquele reexame, circunscrito à matéria de direito, cabendo recurso para o Tribunal da Relação se o interessado pretender abordar matéria de facto, 'nomeadamente a relacionada com os vícios referidos no nº 2 do artigo
410º do CPP', isto nos termos do preceituado nos artigos 427º e 428º, nº 1, do mesmo Código, como regra geral, sob pena de transitar em julgado a respectiva decisão.
Ora, no concreto caso, o recorrente questiona a apreciação que o tribunal recorrido fez da prova produzida.
Por outro lado, alega igualmente o recorrente insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição entre a fundamentação e a decisão, vícios sobre matéria de facto a que se reporta o artigo 410º, nº 2, alíneas a) e b), do CPP, o que justifica a realização de novo julgamento para sanação desses vícios, nos termos do nº 1 do artigo 426º do Código em referência, remédio, no entanto, vedado ao Supremo, no caso de recurso de acórdão final proferido por tribunal colectivo.
3. - Em face do assim decidido sobraram dúvidas ao Ministério Público que requereu a aclaração do acórdão de 24 de Junho, dando aso ao acórdão de 14 de Outubro.
O facto de não ter sido ordenada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação não será impeditivo da posterior remessa ou traduz o entendimento da inaplicabilidade, neste caso, do disposto no artigo 33º, nº 1, do CPP?
A este propósito escreveu-se no acórdão clarificador:
'Efectivamente, diz-se aí [no aresto inicial] que, abordando o recurso matéria de facto, nomeadamente a relacionada com os vícios referidos no nº 2 do artigo
410º do CPP, o recorrente terá de interpô-lo para o Tribunal da Relação, sob pena de transitar em julgado a respectiva decisão (ou seja a decisão da 1ª instância) [...].'
Ora, face ao decidido, é óbvio que é esta a situação que ocorre 'in casu'. De facto, como o presente recurso, por versar matéria de facto, foi indevidamente interposto para este Supremo Tribunal, é evidente que este Tribunal dele não pode conhecer. E não há que remetê-lo para a Relação competente, pois, entretanto, transitou em julgado a decisão da 1ª instância, por dela não ter sido interposto, em tempo, recurso para a dita Relação. E disto só o recorrente foi culpado.
Enfim, face a esta situação, não há lei que imponha a referida remessa, nem mesmo o artigo 33º, nº 1, do CPP, que não se coloca no plano da competência hierárquica, que é o que aqui ocorre (note-se que neste plano não é configurável um conflito de competência), mas só quando estiverem em causa tribunais que funcionem em 1ª instância – v. Maia Gonçalves, in 'Código de Processo Penal', 7ª ed., 106 (nota 2 ao artigo 27º) e 113 (nota 3 ao artigo 33º)
[...]' (sublinhados originais).
4. - Consoante se retira da parte transcrita do acórdão subsequente ao pedido de aclaração, este não se pronunciou em matéria de constitucionalidade.
No entanto, ao requerer a aclaração, o Ministério Público – e só então – argumentou que um entendimento que se traduza na não aplicação ao caso dos autos do preceituado no artigo 33º, nº 1, do CPP implicaria uma interpretação desta norma, 'atentatória do disposto no artº 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, onde se consagra que o processo criminal tem de assegurar todas as garantias de defesa, nas quais se inclui o direito ao recurso, o qual seria, assim, manifestamente, posto em causa, pois ficariam diminuídos a extensão e o alcance do conteúdo essencial do aludido preceito constitucional, assim se afrontando, também, o disposto no artº 18º da Constituição da República Portuguesa'.
5. - O recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público subentende que o Supremo, ao afirmar a competência do Tribunal da Relação e não conhecendo, por isso, do recurso, sem dar cumprimento ao disposto no artigo 33º, nº 1, por considerar precludido o direito por, entretanto, ter ocorrido o trânsito em julgado do acórdão da 1ª instância, deu uma interpretação aos artigos 427º, 428º, nº 1, 432º, alínea d), e 33º, nº 1, todos do CPP, que afronta as garantias de defesa, violando o disposto nos artigos 32º, nº 1 e 18º, nº 2 ambos da CR.
Pretende assim ver apreciada a constitucionalidade destas normas 'quando interpretados no sentido de que a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão final proferido pelo Tribunal colectivo, no qual se invoque a existência de vício a que alude o artº 410º, nº
2, do CPP, implica a irremediável preclusão de recurso para o Tribunal da Relação, por, entretanto, ter transitado o acórdão recorrido'.
6. - O recurso não foi, no entanto, admitido, por despacho do Conselheiro relator de 12 de Novembro de 1999, dando origem à reclamação de que ora se cuida.
Nesse despacho sustenta-se, em síntese:
- a suscitação de inconstitucionalidade das normas dos artigos 427º e 428º, nº 1, e 432º, alínea d), do CPP só teve lugar no requerimento de interposição do recurso, contrariamente ao caso da norma do artigo 33º, nº 1, que ocorreu no requerimento de aclaração do acórdão de 24 de Junho;
- por seu lado, esta última norma não foi aplicada no mencionado acórdão;
- assim, não se observam os pressupostos de admissibilidade do recurso com base no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, seja por suscitação não atempada da questão de constitucionalidade [caso das normas dos artigos 427º,
428º, nº 1, e 432º, alínea d) do CPP], seja por não aplicação da norma questionada (caso do artigo 33º, nº 1, do mesmo diploma).
7. - Na reclamação deduzida, defende o Ministério Público, em síntese:
- a tese do acórdão, pelo seu conteúdo 'insólito e imprevisível' constitui uma verdadeira decisão-surpresa que o Ministério Público, quando da vista a que se reporta o artigo 416º do CPP, não podia previsível e razoavelmente antecipar;
- a função processual de um requerimento de aclaração não é de permitir ao Tribunal a quo a apreciação e decisão, em termos inovadores, de uma questão jurídico-constitucional, mas tão-só esclarecer ambiguidades ou inintelegibilidades do decidido;
- não podendo o Ministério Publico, quando da vista a que alude o artigo 416º do CPP, colocar à apreciação do Tribunal a questão de constitucionalidade, por não lhe ser exigível a antecipação de tal solução dada a mesma ser objectivamente surpreendente, é-lhe lícito colocá-la apenas quando da interposição de recurso de fiscalização concreta, removidas que se mostrem as dúvidas que o acórdão proferido legitimamente suscitou;
- o facto de no requerimento de interposição do recurso apenas se ter indicado a norma do artigo 31º, nº 1, do CPP – que, efectivamente, não foi aplicado – não impede que o Tribunal Constitucional possa apreciar da inconstitucionalidade de outras normas também invocadas naquele requerimento, as dos artigos 427º, 428º, nº 1, e 432º, alínea d), todos do CPP.
8. - O Conselheiro relator, no subsequente despacho que manteve a sua decisão anterior, defende que devendo a questão de constitucionalidade ser suscitada no decurso do processo, ou seja, 'antes de estar esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido', só assim não sendo em casos excepcionais e anómalos que não seria razoável prever – aliás, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Constitucional -, no caso concreto era perfeitamente admissível representar a possibilidade de uma decisão como a adoptada, proporcionando o visto preliminar ao Ministério Público ocasião adequada para levantar a questão.
Acresce que, na tese adoptada, verificado o trânsito em julgado da decisão, não ocorrendo recurso para a Relação, seria inútil ordenar a remessa para este último Tribunal.
De qualquer modo, o requerimento de aclaração teria constituído momento oportuno para o efeito, a entender-se ter ocorrido
'decisão-surpresa', como igualmente a jurisprudência constitucional admite, sem assumir uma posição radical. Ora, nesse requerimento, o reclamante limitou-se à norma do artigo 31º, nº 1, do CPP que a decisão não aplicou.
9. - Neste Tribunal, o magistrado do Ministério Público, ao pronunciar-se nos termos do nº 2 do artigo 77º da Lei nº 28/82, emitiu parecer no sentido da procedência da reclamação.
Em primeiro lugar, entende ser 'objectivamente surpreendente' a tese professada pelo Supremo no sentido de considerar
'absolutamente precludido' o recurso para a Relação quando houve eventual 'erro na forma do processo' pelo recorrente, consistente em ter arguido directamente para aquele Tribunal os vícios da decisão da matéria de facto enumerados pelo artigo 410º do CPP, em vez de colocar a questão perante a Relação. Trata-se de uma tese 'desmesuradamente formalística e preclusiva, dificilmente conciliável com os princípios estruturantes do processo penal e, acima de tudo, com o princípio constitucional das garantias de defesa'.
Em segundo lugar, salienta a função processual do pedido de aclaração considerando-a não compaginável com o ónus de logo delinear definitivamente a questão de constitucionalidade normativa quando ainda está pendente o pedido de esclarecimento das dúvidas ocasionadas pela decisão recorrida. Removidas as dúvidas, era lícito ao Ministério Público proceder, então, à 'exacta e definitiva delimitação normativa do objecto do recurso apenas no momento em que, removidas as dúvidas, interpôs o recurso de constitucionalidade'.
Cumpre decidir.
II
1. - Constitui jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional entender que, nos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, a suscitação da questão de constitucionalidade reportada a normas, na sua integralidade, em dada dimensão ou na interpretação que delas se faz, há-de ocorrer durante o processo, e, bem assim – entre outros pressupostos de admissibilidade do recurso que, no caso, não interessa considerar – que a decisão recorrida haja aplicado essa norma, que como tal se assuma como seu suporte fundamentante.
A suscitação atempada, ou seja, durante o processo, significa que a questão deve ser levantada, em princípio, em momento anterior ao de o tribunal recorrido proferir a decisão final, de modo a ser-lhe ainda possível pronunciar-se a seu respeito. A inconstitucionalidade há-de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a questão de constitucionalidade versa, entendendo-se, por conseguinte, a locução durante o processo não em sentido formal que permita equacionar o problema até à extinção da instância, mas sim em sentido funcional, determinante de a invocação ocorrer em momento em que o tribunal recorrido ainda possa conhecer da questão.
Nesta linha de orientação – que está apoiada abundantemente na jurisprudência como, a título exemplificativo, o ilustram os acórdãos nºs. 479/89 e 232/94, publicados no Diário da República, II Série, de
24 de Abril de 1992 e 22 de Agosto de 1994, respectivamente – igualmente se vem entendendo que o pedido de aclaração da decisão ou a arguição de nulidades desta não constituem já, em princípio, momento atempado e via idónea para equacionar os problemas de constitucionalidade articulados com a decisão, o mesmo se dizendo da suscitação ocorrida apenas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Também neste sentido o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado repetidamente, como nos casos dos acórdãos citados ou nos nºs.
635/93 e 102/95, publicados no mesmo Diário, II Série, de 31 de Março de 1994 e
17 de Junho de 1995, respectivamente.
Por outro lado, os apontados critérios jurisprudenciais não hão-se ser tomados rigidamente, de jeito a não permitir o recurso quando ao interessado se depare uma decisão relativamente à qual não seria razoável exigir uma prognose de um conteúdo e de um despacho inesperados, anómalos ou excepcionais. Como igualmente, quando não houve oportunidade processual de suscitar a questão anteriormente, tem lugar a flexibilização dos descritos critérios em benefício do direito de recurso (vejam-se, neste domínios específicos, os acórdãos nºs. 188/93 e 60/95, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 24, págs. 495 e segs., e 30, págs. 445 e segs., respectivamente).
2. - Interessa, finalmente, registar a necessidade de aplicação concreta e determinante – como causa decidendi – da norma controvertida. Não basta, assim, um tratamento normativo que não passe de mero obiter dictum ou de simples argumento ad ostentationem (cfr., entre outros, os acórdãos nºs. 364/96 e 206/92, publicados no Diário da República, II Série, de 9 de Maio de 1995 e de 12 de Setembro de 1992, respectivamente), sendo necessário que a norma tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida ou, se estiver em causa uma sua interpretação, que ela tenha sido aplicada in casu com essa interpretação (cfr., entre outros, os acórdãos nºs. 187/95 e 139/95, para as duas hipóteses, publicados no citado Diário, II Série, de 22 de Junho de 1995 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 30º, págs. 701 e segs., respectivamente).
3. - Aplicando a jurisprudência deste Tribunal relativa aos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade com fundamento no artigo 70º, nº 1, alínea b), citado, ilustrada pela menção de alguns dos muitos arestos que sobre a matéria se têm debruçado, poderá concluir-se que a norma do artigo 33º, nº 1, do CPP (a referência reiterada, na reclamação, à norma do artigo 31º, nº 1, é de atribuir a manifesto lapso) não foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Pelo menos, assim o afirma, em termos inequívocos, esse próprio Tribunal, seja no acórdão de aclaração, seja no despacho do Conselheiro relator, de 12 de Novembro, parcialmente transcritos e com esse entendimento se terá conformado (se não admitido expressamente) o Ministério Público que, na reclamação, deixou 'cair' essa norma.
4. - Ora, a aceitar-se uma correcta convocação das normas elencadas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o problema da atempada suscitação da questão a apreciar por este Tribunal há-se ser equacionado tendo em conta o momento temporal em que ocorreu.
A esta luz, convenha-se que, não obstante a fase processual em causa não constituir já, em regra, o meio idóneo e atempado para o efeito, o certo é que, contrariamente ao decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, bem se pode concluir pela inexistência de oportunidade processual para, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, se suscitar a questão – o que, na verdade, significa que a decisão se tem por imprevisível, anómala ou insólita.
Com efeito, entendeu aquele Supremo Tribunal que, perante o erro do arguido na identificação do tribunal para o qual interpôs recurso, deve este considerar-se precludido, uma vez que, no que à matéria de facto impugnada respeita, não pode dele conhecer ou determinar a remessa do processo para o tribunal que seria o competente, o da Relação.
Ora, está em causa um complexo normativo que é, se assim se pode dizer, 'comandado', no caso, pelo nº 1 do artigo 33º do CPP – a implicar a remessa do processo para o tribunal competente. A não observância deste normativo – a sua não aplicação – constitui objectivamente uma surpresa, na medida em que os demais como que o pressupõem.
O certo é que estas últimas normas – as dos artigos
427º, 428º, nº 1, e 432º, alínea d), do CPP -, foram autonomizadas daquele artigo 33º, nº 1, na decisão recorrida, para dar sentido ao afastamento da aplicação do artigo 33º, nº 1. Ou seja, tais normas foram aplicadas no sentido de que o artigo 33º, nº 1, não é aplicável aos recursos.
São pois estas normas, com essa interpretação, que constituem o objecto do recurso.
O insólito da decisão resulta, precisamente, da interpretação que, na verdade, deu á norma do nº 1 do artigo 33º, ao não remeter os autos para o tribunal competente, como na mesma se ordena, e, antes, considerando precludido o recurso para este último (como, de resto, expressamente entenderam, nas suas declarações de voto, dois dos três Conselheiros que subscreveram o acórdão recorrido).
Há que reconhecer que, nas circunstâncias do processo, o insólito da decisão não exigia ao recorrente o ónus de considerar antecipadamente a interpretação normativa nela adoptada, como, aliás, se ponderou no recente acórdão nº 74/2000, ainda inédito, ao debruçar-se sobre uma situação semelhante.
III
Em face do exposto, decide-se deferir a presente reclamação. Lisboa, 22 de Março de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida