Imprimir acórdão
Proc. 668/98
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO
1. – R... foi acusado e condenado pela respectiva autoridade administrativa, por conduzir o veículo ligeiro de passageiros com uma taxa de álcool no sangue (T.A.S.)de 0,68, sendo-lhe aplicada uma coima de
30.000$00 e a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias.
Não se conformando com o assim decidido, R... impugnou tal decisão junto do Tribunal Judicial da Comarca de Caminha que, por despacho de 22 de Setembro de 1997, decidiu não receber o recurso por o mesmo não conter conclusões.
2. – Notificado deste despacho, R... veio dele interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto aí alegando, entre outras coisas, que 'o disposto no artigo 59º n.º3 e 63º n.º1 do Decreto-Lei n.º 433/82, quando interpretados com o sentido que a impugnação judicial é automaticamente rejeitada se não contiver as conclusões, está ferido de inconstitucionalidade material, por violar o disposto no nº 8 do artigo 32º da constituição da República Portuguesa'.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 15 de Abril de 1998, decidiu negar provimento ao recurso e confirmar o despacho recorrido.
É desta decisão, que o arguido vem recorrer para o Tribunal Constitucional, para apreciação da questão de constitucionalidade que suscitara no recurso para a Relação.
3. - Neste Tribunal, o arguido apresentou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
'1ª - A impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a coima e a sanção acessória não assume a natureza de um recurso tal como previsto no artigo
399º e seguintes do Código de Processo Penal, apresentando-se antes como o exercício de um direito de acção de anulação de um acto que ofende a esfera jurídica de defesa do cidadão.
2ª - O processo contra-ordenacional rege-se por regras de simplicidade e celeridade processual, sem beliscar as garantias de defesa do arguido.
3ª - Assim é que o legislador no próprio artigo 59º nº 2 do Decreto-Lei nº
433/82 teve a preocupação de esclarecer que a impugnação deve ser apresentada por 'escrito' atenta a simplicidade do processo e a celeridade que do mesmo se espera.
4ª - O artigo 59º nº 2 do Decreto-Lei nº 433/82 ao prescrever que o recurso deve constar de alegações e conclusões impõe uma regra processual demasiado solene em contradição com a natureza celere e simples do processo contra-ordenacional.
5ª - O artigo 63º do mesmo Decreto-Lei ao sancionar com a rejeição liminar a impugnação que não contenha conclusões, prevê um efeito cominatório que é inaceitável às garantias de defesa do arguido em processo crime e contra-ordenacional.
6ª - As mesmas disposições limitam o direito de defesa do particular perante os
órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito, violando o princípio da proibição da indefesa, na medida em que a inobservância de uma norma processual que impõe conclusões na impugnação acarreta a impossibilidade de a discutir em juízo.
7ª - Além de violarem aquele princípio da 'proibição da indefesa', o disposto no artigo 59º nº 3 e 63º nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, quando interpretados com o sentido de que a impugnação judicial é automaticamente rejeitada se não contiver conclusões, está ferido de constitucionalidade material por violar o disposto no nº 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. Termos em que deve o recurso ser julgado procedente e em consequência declarada a inconstitucionalidade material do disposto nos artigos 59º nº 3 e 63º nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, quando interpretados com o sentido de que a impugnação judicial é automaticamente rejeitada se não tiver conclusões, por violação do princípio da proibição da indefesa e o disposto no nº 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. Declaração que deverá produzir efeitos nos presentes autos, ordenando-se a remessa dos mesmos ao Tribunal de Primeira Instância a fim de ser recebida a impugnação deduzida assim se fazendo JUSTIÇA!!'
Também o Ministério Publico apresentou alegações em que concluíu pela forma seguinte:
'1º A norma constante dos artigos 59º, n.º3 , e 63º, n.º1, do Decreto-Lei n.º
433/82, interpretada com o sentido de a omissão de conclusões por parte do recorrente determinar a imediata rejeição liminar do recurso, não implica violação dos direitos de audiência e defesa do arguido em processo contraordenacional, nem contende com o princípio da proporcionalidade, atento o grau de negligência que tal comportamento revela e a natureza e gravidade das sanções que correspondem à infracção cometida.
2º Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS
4. – Vem questionada nos autos a interpretação da norma constante dos artigos 59º, n.º3 e 63º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, enquanto permite rejeitar de forma imediata a impugnação judicial que não contenha conclusões.
Efectivamente, a primeira daquelas normas estabelece que:
'Art. 59º
(Forma e prazo)
1. A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial.
2. O recurso de impugnação poderá ser interposto pelo arguido ou pelo seu defensor.
3. O recurso é feito por escrito e apresentado á autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões.' Pelo seu lado, o artigo 63º determina:
'Art.63
(Não aceitação de recurso)
1.O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora de prazo ou sem respeito pelas exigências de forma.
2.[...]'.
Violará a norma que impõe a rejeição imediata da impugnação judicial que não contiver as conclusões o direito de defesa do arguido, como pretende o recorrente?
5. – O artigo 32º da Constituição, no seu n.º8 (na versão de 1989) e agora (versão de 1997) no seu n.º10, estabelece que 'nos processos por contraordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa'.
Por outro lado, é o próprio diploma regulador das contraordenações que expressamente determina, a nível infraconstitucional, serem os preceitos reguladores do processo criminal, devidamente adaptados, aplicáveis em processo contraordenacional como direito subsidiário (artigo 41º, n.º1).
Portanto, não só se aplicam ao ilícito contraordenacional garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal
(v.g., princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável), como também existe um evidente paralelismo entre o processo criminal e o processo contraordenacional, que é conformado por princípios básicos daquele, tendo em atenção os interesses subjacentes.
Aliás, no que se refere aos direito de audiência e de defesa é a própria Constituição que expressamente os assegura ao agente de qualquer contraordenação.
O direito ao recurso integra-se naturalmente no direito de defesa do arguido: porém, uma coisa é a garantia do direito ao recurso – que não está em causa nos presentes autos -, outra coisa é a exigência legal de respeitar certos formalismos no exercício do direito de recurso. Efectivamente, o legislador pode impor regras formais para exercer o direito ao recurso.
No caso em apreço, o recorrente exerceu o seu direito de defesa recorrendo da decisão condenatória da autoridade administrativa para o tribunal judicial competente, apresentando as sua alegações; porém, com as alegações não apresentou as necessárias conclusões.
Com base no preceito que determina que o recurso deve constar de alegações e conclusões, o juiz rejeitou o recurso por não respeitar
'as exigências de forma', decisão que foi confirmada pela Relação.
A questão a dilucidar consiste, assim, em apurar se a imediata rejeição do recurso interposto pelo arguido, sem que o mesmo fosse convidado para apresentar as conclusões em falta, não viola o direito de defesa, na medida em que tal omissão podia afectar – como afectou - substancialmente o próprio direito ao recurso.
Efectivamente, em regra, a rejeição do recurso apenas ocorre quando falta a motivação (artigo 412º, n.º1, do Código de Processo Penal
- CPP). Deverá a mera falta de conclusões ter o mesmo efeito preclusivo do direito ao recurso, que a lei atribui á falta de motivação?
A formulação de conclusões integra-se, sem dúvida, no
ónus de alegar e formular conclusões a que se refere o artigo 690º do Código de processo Civil (CPC), enquanto conjunto complexo de actos que constitui a fase processual do recurso.
As conclusões devem constituir o complemento lógico e sintético do procedimento de recurso explanado ao longo das alegações.
Em processo civil, a falta ou a deficiência, obscuridade ou complexidade das alegações não levam á rejeição do recurso sem que o recorrente seja convidado para corrigir tais falhas.
Quanto à falta de concisão ou prolixidade das alegações, o Tribunal já decidiu que a rejeição do recurso pelo facto de as conclusões estarem afectadas daquelas deficiências, sem que o recorrente tenha sido previamente convidado para as corrigir, afecta desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), garantido pelo artigo
32º, n.º1, da Constituição (cf. Acórdãos n.º 193/97 e 43/99, ainda inéditos).
Não se vê razão para concluir diferentemente se a falta for das próprias conclusões. Com efeito, se a rejeição do recurso só ocorre faltando a motivação, a extensão desta ‘sanção’ à falta das conclusões consiste num alargamento do âmbito da norma, ou seja, na criação de um outro fundamento de rejeição. Por outro lado, o dever de convidar o recorrente a apresentar as conclusões antes de rejeitar o recurso corresponde à exigência de um processo equitativo, porquanto o essencial do próprio recurso – as alegações ou a motivação – já se encontram nos autos, apenas faltando a fase conclusiva.
Tem, por isso de se concluir que, no caso de um recurso em processo de contraordenação – em que valem também as garantias constitucionais do direito de audiência e do direito de defesa – a rejeição do recurso que não contiver as respectivas alegações sem que o recorrente seja convidado a apresentá-las previamente a essa rejeição, afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32º, n.º10 da Constituição da República Portuguesa, pelo que a interpretação da norma constante dos artigos 59º, n.º3 e
63º, n.º1, ambos do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, feita na decisão recorrida, é inconstitucional. III – DECISÃO:
Nestes termos e de acordo com o exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º10 da Constituição, a norma constante dos artigos 59º, n.º3 e 63º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 433/83, de 29 de Outubro, quando interpretada no sentido de que o recurso apresentado em processo de contraordenação sem conclusões deve ser imediatamente rejeitado, sem que o recorrente seja previamente convidado a apresentar as conclusões em falta; b. Em consequência, conceder provimento ao recurso para que a decisão recorrida seja reformulada, tendo em atenção o presente julgamento de inconstitucionalidade. Lisboa, 26 de Maio de 1999 Vitor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa