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Proc. nº 57/99 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I O Pedido
1. O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, ao abrigo dos artigos 281º, nº 3, da Constituição e 82º da Lei do Tribunal Constitucional, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, na dimensão em que não permite que haja indemnização pelas servidões fixadas directamente na lei que incidam sobre a parte sobrante do prédio expropriado, no
âmbito de expropriação parcial, desde que a parcela sujeita a servidão já tivesse, anteriormente ao processo expropriativo, aptidão edificativa.
O requerente invocou como fundamento do seu pedido os Acórdãos nºs
193/98, de 19 de Fevereiro, 614/98, de 21 de Outubro, e 740/98, de 16 de Dezembro, que julgaram a referida norma inconstitucional, por violação dos artigos 13º, nº 1, e 62º, nº 2, da Constituição. No primeiro aresto, o Tribunal Constitucional apreciou a conformidade à Constituição do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações de 1991, enquanto não permite que haja indemnização pelas servidões fixadas directamente na lei, desde que essa servidão resulte para a totalidade da parte sobrante de um prédio na sequência de um processo expropriativo incidente sobre parte de tal prédio, quando este, anteriormente
àquele processo, tivesse já aptidão edificante. Nos Acórdãos nºs 614/98 e
740/98, o Tribunal considerou inconstitucional a norma em questão enquanto não permite que haja indemnização pelas servidões legais, desde que essa servidão afecte a parte sobrante de um prédio na sequência de um processo expropriativo incidente sobre parte de tal prédio.
O Ministério Público, antes da notificação da entidade emitente da norma em apreciação, requereu, nos termos do artigo 268º do Código de Processo Civil (que considerou analogicamente aplicável), que o processo seguisse tendo como fundamento o decidido nos Acórdãos nºs 614/98, 740/98 e 41/99 (e já não o Acórdão nº 193/98), em virtude de no último aresto citado (Acórdão nº 41/99) o Tribunal Constitucional, à semelhança do que aconteceu nos Acórdãos nºs 614/98 e
740/98, não ter feito constar da decisão a referência à totalidade da parte sobrante do prédio parcialmente expropriado. Deste modo, o Ministério Público pretendeu que o alcance da declaração de inconstitucionalidade tivesse uma dimensão diversa, mais ampliada do que aquela que resultaria da referência à
'totalidade da parte sobrante'.
O Primeiro-Ministro foi notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 57º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional. Em resposta, pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma contida no nº 2 do artigo 8º do Código das Expropriações de 1991, concluindo o seguinte: A) Não há inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 8º do Código de Expropriações, por violação do disposto nos artigos 13º, nº 1 e 62º, nº 2 da Constituição. A verdade é que o disposto no nº 2 do art. 62º da Constituição se refere expressamente ao conceito de 'expropriação' e não ao de 'servidão' 'estabelecido directamente na lei'. B) Sendo os conceitos de 'expropriação' e 'servidão' noções jurídicas distintas, não parece ser possível estabelecer aqui legitimamente uma identificação de regimes jurídicos em sede de fiscalização de constitucionalidade quando o que resultaria curial seria proceder a uma diferenciação jurídica objectiva de situações. A opção do legislador funda-se numa legítima diferenciação objectiva de situações. Não viola qualquer dos motivos indicados no nº 2 do artigo 13º da Constituição. Ostenta, pelo contrário um fim legítimo de interesse público. Essas 'medidas de diferenciação' não se mostram inadmissíveis, inadequadas ou desproporcionadas à realização desse fim legítimo de interesse público relevante. C) Não se considera adequado, de igual modo, que presido que possa ser estabelecida uma equiparação, em sede de direitos, entre o regime jurídico--constitucional dos direitos, liberdades e garantias e o regime dos direitos económicos e sociais. A liberdade de conformação do legislador político democrático é maior na concretização dos direitos económicos e sociais do que na hipótese de concretização dos direitos, liberdades e garantias. No primeiro caso a generalidade da doutrina, entre nós como no eixo euro-atlântico, fala na realização de um 'teste negativo' de constitucio-nalidade, situação essa que será unicamente invertida na hipótese de concretização de direitos, liberdades e garantias. Aí, sim, vigoraria um sistema de fiscalização muito mais apertado, um 'controle intensivo' de constitucionalidade, numa palavra, um 'teste positivo' de constitucionalidade.
Nestes termos, e sem prescindir do douto suprimento de Vossas Excelências, não deve a norma constante do nº 2 do artigo 8º do Decreto referendado nos autos ser julgada inconstitucional.
2. O Presidente do Tribunal Constitucional apresentou memorando, nos termos do artigo 63º da Lei do Tribunal Constitucional.
II Fundamentação A A dimensão normativa do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações sujeita à apreciação pelo Tribunal Constitucional
3. Nos presentes autos de fiscalização abstracta da constitucionalidade, como se referiu, é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a conformidade à Constituição da norma do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, na medida em que não permite que haja indemnização pelas servidões fixadas directamente na lei que incidam sobre a parte sobrante do prédio expropriado, no
âmbito de expropriação parcial, nas situações em que a mesma parcela já tivesse, anteriormente ao processo expropriativo, aptidão edificante.
O Tribunal Constitucional, nos Acórdãos invocados pelo Ministério Público como fundamento do pedido de generalização deduzido, formulou um juízo de inconstitucionalidade que incidiu apenas sobre a dimensão normativa referente
às situações em que a servidão non aedificandi se constituiu na sequência de um processo expropriativo. Será, pois, exclusivamente uma tal dimensão normativa que deverá ser delimitada e, posteriormente, apreciada.
A delimitação da dimensão normativa realizada não desloca, aliás, a análise da questão em apreço para o momento da aplicação. Com efeito, o que resulta dela é o critério jurídico de valoração de uma categoria de casos como fundamento de determinada consequência jurídica.
Deste modo, o Tribunal Constitucional apreciará a dimensão normativa do artigo 8º, nº 2, que se refere à servidão, na sequência de expropriação parcial, constituída para parte sobrante do prédio expropriado.
B A ratio do juízo de inconstitucionalidade nos Acórdãos-fundamento
4. A ratio do juízo de inconstitucionalidade nos Acórdãos que servem de fundamento a este pedido tem como pressuposto a diminuição efectiva da utilidade do prédio (serviente) derivada da imposição legal de uma servidão non aedificandi decorrente de acto expropriativo e relativamente a parte sobrante com anterior aptidão edificante.
Com efeito, apesar de, em si mesma, uma servidão non aedificandi não se confundir com a expropriação, ela suscita pela afectação de uma faculdade essencial do direito de propriedade, um prejuízo do titular do direito de propriedade, que é, pelo menos em princípio, susceptível de indemnização, por força de um princípio geral de indemnização de danos que, no que se refere à afectação do direito de propriedade, radica no artigo 62º da Constituição (como resultante da protecção constitucional de tal direito).
Independentemente dessa susceptibilidade abstracta decorrente da tutela constitucional do direito de propriedade, mas que pode sofrer compressões em razão do interesse público, cuja constitucionalidade não cabe, aqui, averiguar em geral, uma razão específica aponta, no tipo de situações agora consideradas, para, por razões de justiça e de igualdade, tornar concretamente exigível uma indemnização quando a constituição da servidão incidente sobre a parte sobrante do prédio surgir na sequência de expropriação de parte do mesmo prédio. Essa razão consiste em que, nesse caso, à extinção do direito de propriedade decorrente da mesma expropriação acresce uma essencial diminuição das faculdades do direito de propriedade quanto à parte sobrante.
Embora a constituição da servidão tenha, obviamente, como causa jurídica, a protecção legal do interesse público, a precedência da expropriação cria um efeito global na função económica da propriedade, que, incidindo a sujeição sobre a parte sobrante, faz decorrer histórica e funcionalmente da expropriação uma redução global das utilidades do bem que é objecto do direito de propriedade. A não indemnização da servidão non aedificandi implicaria, por isso, uma compressão desproporcionada do direito de propriedade e uma violação da igualdade na tutela desse direito.
São estas razões que justificaram a decisão do Tribunal Constitucional nos Acórdãos fundamento, os quais se limitaram a julgar a inconstitucionalidade do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações, por violação dos artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição, enquanto admitisse, sem indemnização, a constituição de uma servidão legal na sequência fáctica de um processo expropriativo.
5. O Tribunal Constitucional decide, pois, pelas razões que justificaram o julgamento de inconstitucionalidade constante dos Acórdãos que foram causa deste pedido, nos termos do artigo 281º, nº 3, da Constituição e 82º da Lei do Tribunal Constitucional, declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações, na dimensão normativa segundo a qual não é reconhecido o direito à indemnização em situações de servidões non aedificandi legalmente constituídas relativas a parte sobrante de prédio sujeito a processo expropriativo parcial.
III Decisão
6. Ante o exposto, declara-se com força obrigatória geral a inconstitu-cionalidade do artigo 8º, nº 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, na medida em que não permite que haja indemnização pelas servidões fixadas directamente pela lei que incidam sobre parte sobrante do prédio expropriado, no âmbito de expropriação parcial, desde que a mesma parcela já tivesse, anteriormente ao processo expropriativo, capacidade edificativa, por violação do disposto nos artigos 13º, nº 1, e 62º, nº 2, da Constituição. Lisboa, 2 de Junho de 1999 Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Messias Bento Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto Votei vencido essencialmente pela razão constante da declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 740/98, cujo teor é o seguinte:
'Entendo que a hipótese, compreendida na previsão do artigo 8º, n.º 2, do Código das Expropriações, de servidão non aedificandi resultante directamente da lei
(no caso, o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 13/94, de 15 de Janeiro) para a parte sobrante de prédio expropriado não pode, sem entorse ao princípio da igualdade, ser distinguida, para efeitos indemnizatórios e de controlo de constitucionalidade, daqueloutra em que tal servidão fica constituída independentemente de qualquer expropriação, por o prédio simplesmente ser marginado por uma estrada, sendo servidão idêntica imposta pela mesma disposição legal. Como bem se nota na declaração de voto aposta pelo Ex.mº Consº Cardoso da Costa ao Acórdão n.º 262/93, não cabe seccionar a norma em questão, como neste e no Acórdão citado, para efeitos de sobre ela formular um juízo de constitucionalidade, entre hipóteses em que uma servidão de idêntico conteúdo e imposta pela mesma disposição resulta para a totalidade ou para parte da área sobrante de prédio expropriado e hipóteses em que resulta para a totalidade ou para parte de um prédio que não é objecto de qualquer expropriação. Em ambos os casos, a situação, sob todos os pontos de vista possivelmente relevantes para o problema da indemnizabilidade da imposição da servidão resultante da lei, afigura-se-me perfeitamente idêntica: está em discussão a indemnização por uma servidão idêntica, imposta pela mesma lei, numa determinada situação, incida tal servidão ou não sobre parte sobrante de prédio expropriado (pois pela perda do direito de propriedade sobre a parte do prédio expropriada há obviamente indemnização). Mesmo quando a servidão surge, para a parte sobrante, ‘na sequência de processo expropriativo relativo a parte’ do prédio, a expropriação não é a causa da imposição dessa servidão, mas sim o preenchimento da hipótese legal que prevê a constituição da servidão. Não pode a constituição da servidão, portanto, ser considerada como consequência da expropriação (apesar de a ela poder estar ligada), antes surgindo, como não deixou de se reconhecer no Acórdão n.º 329/94, ‘em consequência da realizanda obra exproprianda’ (cfr., todavia, o citado Acórdão n.º 262/93). Não concordando, portanto, com o tratamento específico da situação (como a presente) em que a servidão incide sobre a parte sobrante de prédio expropriado, e antes identificando tal caso, sob os pontos de vista juridico-constitucionalmente relevantes, ao da imposição de servidão sobre prédio não expropriado e marginado por uma estrada, apenas poderia concordar com o juízo de inconstitucionalidade formulado no Acórdão se, de forma mais abrangente, julgasse desconforme com a Constituição (designadamente, com o seu artigo 62º, n.º 2) todo o artigo 8º, n.º 2 do Código das Expropriações, enquanto exclui o direito de indemnização para as servidões resultantes directamente da lei. Ficam-me, todavia, sérias dúvidas sobre um juízo de inconstitucionalidade com tal amplitude, devido, quer ao tipo de encargo imposto (que não afectará normalmente o núcleo central do direito de propriedade), quer à via, legal (e não por acto individual e concreto), pela qual é imposto - mas sem deixar de considerar, por outro lado, a importância de que o ius aedificandi se pode revestir, sobretudo no caso de inserção do prédio em ‘área edificável’ ou
‘vocacionada para a edificabilidade’ (ver, para o caso de eliminação absoluta do ius aedificandi resultante do plano urbanístico, Fernando Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, págs. 523 e segs.). Em face de tais dúvidas, não me pronunciei pela inconstitucionalidade do artigo 8º, n.º 2, do Código das Expropriações, em todo o seu conteúdo normativo, assim também não podendo acompanhar o julgamento de inconstitucionalidade dos casos, autonomizados (a meu ver sem razão) na jurisprudência em que este Acórdão se insere, em que a servidão referida nessa norma resulta apenas para a parte sobrante de prédio expropriado.' José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme declaração de voto junta). Declaração de voto
Votei vencido pela razão constante da declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 262/93 (o qual versou sobre a norma do artigo 3º, nº 2, do anterior Código de Expropriações, de 1976, idêntica à ora em apreço) - declaração essa para a qual remeti em numerosos outros arestos do Tribunal sobre a matéria, e cujo teor (no que ainda importa) é o seguinte:
'No precedente acórdão restringiu-se a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 3º, nº 2, do anterior Código das Expropriações (de 1976) à hipótese em que a sua aplicação se conjuga com um processo expropriativo incidindo sobre parte do prédio que vai ficar onerado com uma servidão (non aedificandi) do tipo das que aí se trata. Foi só nesse seu segmento aplicativo que tal norma foi julgada inconstitucional.
Ora, não me parece que caiba seccionar a norma nesses termos, para o efeito de sobre ela emitir um juízo de constitucionalidade: é que não há certamente razão para distinguir entre a situação referida e uma outra, por exemplo, em que um prédio, sem ter sido objecto de qualquer expropriação para a abertura de uma nova via de comunicação, passa, todavia, a ser marginado por esta, e a ficar onerado, consequentemente, com uma correspondente servidão non aedificandi, abrangida, do mesmo modo, pelo disposto da norma em apreço. Afigura-se-me claro, na verdade, que o princípio da igualdade impõe um tratamento idêntico dos dois casos, quanto ao reconhecimento ou não de um direito a indemnização.
Eis, muito em síntese, por que não acompanhei o discurso argumentativo do acórdão, nem votei a decisão.