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Proc. nº 50/95 Plenário Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1. Um Grupo de Deputados da Assembleia Legislativa Regional da Madeira requereu ao Tribunal Constitucional, em 30 de Janeiro de 1995, nos termos e para os efeitos do artigo 280º, nº 2, alínea g), da Constituição da República Portuguesa e do artigo 51º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação da ilegalidade do artigo 1º da Portaria nº 322/94 do Secretário Regional de Educação do Governo Regional da Madeira, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, I Série, nº 160, de 25 de Novembro de 1994.
É o seguinte o teor da norma submetida à apreciação do Tribunal Constitucional: Artigo 1º
(Dispensas de serviços para frequência das aulas) Os docentes que pretendam prosseguir os estudos com vista a obtenção de habilitação própria para a docência podem usufruir para frequência das aulas de uma dispensa de serviço até 4 horas semanais, sendo 2 horas da componente lectiva e 2 da componente não lectiva.
2. Para fundamentar o pedido, os requerentes alegaram, em síntese:
- a parte final dessa norma, ao condicionar e restringir a dispensa de horas
['(....) sendo 2 horas da componente lectiva e 2 da componente não lectiva'] para a prossecução de estudos, viola a Lei nº 26/81, de 21 de Agosto, que aprova o Estatuto do Trabalhador Estudante;
- a Lei nº 26/81 é uma lei geral da República [no pedido, é utilizada a expressão 'lei da República de aplicação nacional'];
- por outro lado, o condicionamento introduzido pela Portaria nº
322/94 é menos favorável do que o regime definido pela Lei nº 26/81 - no entender dos requerentes, tal condicionamento resulta, na prática, na redução de duas horas de dispensa em relação ao tempo conferido pela Lei nº 26/81, visto que 'não faz nenhum sentido fazer dispensar o professor (trabalhador-estudante) da componente não lectiva do seu horário, uma vez que o mesmo não é obrigado a estar na escola ou estabelecimento de ensino neste tipo de horas (não lectivas)';
- assim, não se pode qualificar tal condicionamento como uma mera
'pormenorização', 'especificação' ou 'adaptação' do disposto no Estatuto do Trabalhador Estudante;
- finalmente, ao implicar uma redução de duas horas de dispensa, o artigo 1º é também materialmente inconstitucional, já que às Regiões Autónomas é vedado 'restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores', nos termos da alínea a) do artigo 230º da Constituição da República Portuguesa [na versão anterior à revisão constitucional de 1997].
Além da 'ilegalidade', é também questionada a
'inconstitucionalidade' da norma em apreço. Mas – consoante logo se considerou no despacho a seguir referido – só o primeiro vício integra (e podia integrar) o objecto do pedido.
3. Em 17 de Fevereiro de 1995, o Presidente do Tribunal Constitucional exarou o seguinte despacho:
'Nos termos do artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição, os deputados às assembleias regionais, no mínimo de um décimo (exigência que, no caso, é respeitada) apenas podem requerer a intervenção do Tribunal Constitucional para que este aprecie a 'inconstitucionalidade' de normas que se traduza 'em violação dos direitos das Regiões Autónomas' ou a 'ilegalidade' que se funde em violação do estatuto da respectiva Região ou de lei geral da República. No precedente requerimento, acaba por invocar-se igualmente a
'inconstitucionalidade' da norma questionada, sem que tal tipo de vício pareça poder reconduzir-se à hipótese considerada no preceito constitucional antes referido. Mas a verdade é que, seja como for, os requerentes apenas solicitam ao Tribunal a apreciação da 'ilegalidade' dessa norma. E se, quanto a esta 'ilegalidade', não chegam a qualificá-la eo nomine como de
'violação de lei geral da República', a verdade é também que não é outra a qualificação que se afigura pressuposta no requerimento. Nestes termos, notifique-se o Senhor Presidente do Governo Regional da Madeira, com cópia deste despacho, para promover, querendo, a resposta ao pedido - conforme o disposto nos artigos 54º, 55º, nº 3, e 56º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional. Notifique-se igualmente o presente despacho aos requerentes, na pessoa do primeiro Senhor deputado regional subscritor'.
4. Notificado nos termos do despacho referido, o Presidente do Governo Regional da Madeira comunicou ao Tribunal o despacho que sobre o assunto proferiu: 'Ao Senhor Secretário Regional de Educação, para conduzir a questão em nome do Governo Regional'.
Em ofício subscrito pelo Chefe do seu Gabinete, o Secretário Regional de Educação veio sustentar:
- nos termos do artigo 76º do Estatuto da Carreira Docente, o pessoal docente em exercício de funções é obrigado à prestação de 35 horas semanais de serviço;
- este horário semanal integra uma componente lectiva e uma componente não lectiva (artigo 76º, nº 2, do Estatuto da Carreira Docente), sendo a primeira variável em função do nível de ensino em que o docente se encontre a prestar funções (artigo 77º do referido Estatuto) e correspondendo a segunda - a componente não lectiva - ao diferencial entre a componente lectiva e as 35 horas semanais;
- a componente não lectiva compreende não só a realização de trabalho a nível individual como a prestação de trabalho a nível do estabelecimento de educação ou de ensino (artigo 82º do referido Estatuto);
- a Lei nº 26/81, que aprovou o Estatuto do Trabalhador Estudante, não distingue a realidade específica da duração do trabalho do pessoal docente, mas contém uma referência à dispensa de serviço - de 4 horas - para os trabalhadores que possuam um horário semanal inferior a 36 horas, o que abrange naturalmente os professores, cuja duração semanal de trabalho é de 35 horas;
- assim, a Portaria nº 322/94 não veio 'restringir' os efeitos da Lei nº 26/81: desde logo, porque não reduziu o número de 4 horas de dispensa de serviço; por outro lado, porque veio apenas determinar que essa dispensa corresponderá a 2 horas da componente lectiva e 2 horas da componente não lectiva e esta última - ao contrário do que sustentam os requerentes - não deve ser entendida numa perspectiva 'residual' ou 'quase nula', visto que faz parte da carga horária semanal a que se encontram adstritos os professores.
5. Nos termos do artigo 63º da Lei do Tribunal Constitucional, foi discutido em Plenário o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal. Fixada a orientação a seguir, foi o processo distribuído à relatora, em 19 de Janeiro de 2000, para elaboração do acórdão.
II
6. Independentemente da questão de saber se a Lei nº 26/81, de 21 de Agosto (que aprova o Estatuto do Trabalhador Estudante), é de qualificar como
'lei geral da República' ou como 'lei que, emanando de um órgão legislativo nacional, se aplica igualmente nas Regiões Autónomas' e independentemente da discussão sobre a competência do Tribunal Constitucional para apreciar a conformidade com as 'leis gerais da República' dos regulamentos dos Governos Regionais, certo é que o Tribunal Constitucional não deve tomar conhecimento do pedido.
7. Na verdade, a Lei nº 26/81, de 21 de Agosto - cujo artigo 3º, nº 4, constitui a norma de referência no presente processo - foi revogada pela Lei nº
116/97, de 4 de Novembro.
Por seu lado, também a Portaria nº 322/94 do Secretário Regional de Educação do Governo Regional da Madeira foi expressamente revogada pelo artigo
10º da Portaria nº 140/98, do mesmo Secretário Regional de Educação, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, I Série, nº 60, de 24 de Agosto de 1998.
Ora, por força do 'princípio do pedido', consagrado no artigo 51º, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional, e de acordo com a jurisprudência deste Tribunal (cfr., sobre este ponto, o Acórdão nº 57/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 141ss, e o Acórdão nº 31/99, inédito), não pode operar-se a 'convolação' do objecto do processo - o artigo 1º da Portaria nº
322/94 - nas normas da Portaria nº 140/98 que tenham um conteúdo preceptivo correspondente ou semelhante (no caso, o artigo 2º deste outro diploma, nos termos do qual 'Os professores estudantes previstos no artigo anterior podem usufruir para frequência de aulas de uma dispensa até 5 horas semanais, sendo 2 horas da componente lectiva e 3 horas da componente não lectiva').
Assim, subsistindo esse objecto nos precisos termos em que foi definido, mas encontrando-se revogada a norma que constitui o seu suporte, coloca-se o problema de utilidade do conhecimento do pedido.
8. De harmonia com reiterada jurisprudência do Tribunal, a circunstância de a norma sub judice se encontrar revogada não é suficiente, por si só, para se deixar de conhecer do pedido de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade (ou de legalidade) - e nomeadamente para concluir pela inutilidade desse conhecimento (cfr., desde logo, o Acórdão nº 17/83, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., p. 93 ss).
No entanto – e como também é jurisprudência conhecida do Tribunal – não basta que a norma já revogada haja produzido um qualquer efeito, para que tenha de entrar-se na apreciação do pedido da sua declaração de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade) com força obrigatória geral (neste sentido, cfr., entre outros, o Acórdão nº 116/97, Diário da República, II Série, nº 68, de 21 de Março de 1997, p. 3510 ss). Para tanto, é necessário que tal apreciação se revista de um interesse jurídico relevante.
Como se escreveu, a este propósito, no Acórdão nº 238/88 (Diário da República, II Série, nº 293, Suplemento, de 21 de Dezembro de 1988, p. 12002(16) ss):
'há-de (...) tratar-se de um interesse com ‘conteúdo prático apreciável’, pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, ‘seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de
índole genérica e abstracta, como é a declaração de inconstitucionalidade’ [ou de ilegalidade] (...) para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo'. 'Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade [ou de ilegalidade], com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade' - afirmou-se ainda nesse Acórdão (no mesmo sentido, cfr., por exemplo, o Acórdão nº 465/91, Diário da República, II Série, nº 78, Suplemento, de 2 de Abril de 1992, p. 3112(46) ss).
Por outro lado, e de todo o modo, é ainda jurisprudência conhecida do Tribunal que não existe um interesse jurídico relevante - um interesse prático apreciável - no conhecimento do pedido quando a situação for tal que, no caso de uma eventual declaração de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade), os seus efeitos sempre viriam a ser limitados, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 282º da CR (veja-se, por todos, o Acórdão nº 639/98, Diário da República, II Série, nº 299, de 29 de Dezembro de 1998, p. 18368 ss, onde são citados diversos acórdãos anteriores no mesmo sentido).
9. À luz desta orientação jurisprudencial, bem firmada, afigura-se claro que, em razão da sua inutilidade superveniente, não deverá conhecer-se do pedido formulado no presente processo. Com efeito: a) A norma em apreço não respeita à constituição de situações jurídicas permanentes, mas antes de situações jurídicas por natureza 'temporárias', e que se esgotam, ou esgotaram, num tempo determinado.
Por conseguinte, a apreciação da legalidade de tal norma, e uma eventual declaração da sua ilegalidade, só poderia ter reflexo, quanto a situações já inteiramente passadas – e nunca, de resto, em termos de se traduzir numa 'reconstituição' in natura, já impossível, dessas situações. Semelhante circunstância, só por si, já denuncia a falta de interesse na apreciação da legalidade da norma, pois que a utilidade dessa apreciação só se verificaria se se demonstrasse que ainda algum outro efeito, lateral ou compensatório, os interessados poderiam obter, a partir da mencionada e eventual declaração de ilegalidade.
A conclusão quanto à 'inutilidade' do conhecimento do pedido é confirmada, em definitivo, pelas considerações subsequentes. b) A admitir-se que algum efeito, ainda que lateral, se poderia extrair da verificação da 'ilegalidade' da norma sub judice, sempre importaria, seguidamente, distinguir, quanto às situações (passadas) constituídas à sombra dessa norma, entre aquelas que os interessados aceitaram, sem mais, e aquelas contra as quais reagiram administrativa e contenciosamente. Ora, quanto às primeiras, a apreciação da legalidade da norma, e uma eventual declaração da sua ilegalidade, não lograria surtir qualquer efeito, por uma de duas razões:
– ou porque esse possível efeito seria logo excluído pelo limite do artigo 282º, nº 3, da Constituição (a entender-se que a referência ao 'caso julgado', aí feita, abrange igualmente situações equiparáveis, e entre estas, desde logo, a do 'caso resolvido' administrativo – cfr. acórdãos deste Tribunal nº 786/96, Diário da República, II Série, nº 192, de 20 de Agosto de 1996, p. 11654 ss, e
671/99, ainda inédito);
– ou porque o Tribunal sempre limitaria, ao abrigo do disposto no artigo 282º, nº 4, da Constituição, e por 'razões de segurança jurídica', os efeitos da
'ilegalidade', de modo que ela não abrangesse os ditos 'casos resolvidos', para evitar a reabertura de um imprevisível número de processos administrativos
(todos os relativos a concessões de dispensa de serviço ao longo de quatro anos, ou seja, entre as datas da entrada em vigor das Portaria nº 322/94 e da Portaria nº 140/98) – uma reabertura, para mais, desprovida já de utilidade 'directa' para os interessados.
Quanto às situações da segunda espécie – aquelas em que, por terem sido objecto de reacção graciosa e/ou contenciosa dos interessados, não se haja formado ainda
'caso resolvido' –, é desde logo muito pouco crível que alguma situação subsista. Mas, a admitir-se que sim, sempre será de todo o modo desproporcionado, para a sua tutela, o mecanismo da fiscalização abstracta de legalidade. Ou seja, o uso de tal mecanismo quanto a uma norma revogada não se revestirá, no caso, de 'interesse jurídico relevante' – e isso porque algum eventual, mas de todo improvável, interessado na obtenção de um qualquer efeito da ilegalidade da norma em apreço, sempre terá ao seu dispor, para tentar obtê-lo, o instrumento do controlo concreto da legalidade.
III
10. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido de declaração de ilegalidade, por inutilidade superveniente. Lisboa, 1 de Fevereiro de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Paulo Mota Pinto Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa