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Processo nº 335/97
2ª secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A... interpôs recurso contencioso de anulação do acto da DIRECÇÃO DOS SERVIÇOS DE PREVIDÊNCIA DA CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, de 13 de Abril de 1994, que, respondendo ao pedido de 'atribuição da subvenção mensal a que tem direito ao abrigo dos artigos 24º e seguintes da Lei nº 4/85, de 9 de Abril (Estatuto Remuneratório dos Titulares de Cargos Políticos)', baseado 'no facto de, durante mais de 13 anos Ter exercido os cargos de Deputado à Assembleia da República, Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Secretário Adjunto do Governo de Macau e Juiz do Tribunal Constitucional', apenas considerou o tempo de 11 anos. Por sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa de 29 de Junho de
1995, de fls. 90, foi negado provimento ao recurso. Para o que agora interessa, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa julgou não relevar para o efeito o tempo em que o recorrente exerceu as funções de Secretário Adjunto do Governo de Macau, por não considerar tal cargo abrangido pelo nº 2 do artigo 1º da Lei nº 4/85. Inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que confirmou a sentença da 1ª instância. Conforme se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18 de Fevereiro de 1997, de fls.126, 'a questão a decidir é tão somente a de saber, se o tempo de serviço prestado no exercício do cargo de Secretário Adjunto do Governo de Macau, releva para o cômputo do tempo para a atribuição da subvenção mensal vitalícia prevista no nº 1 do artigo 24º da Lei nº 4/85, de 9 de Abril, especialmente em relação àqueles que, tal como o recorrente, estando a exercer o cargo de deputado à Assembleia da República, viram suspenso o respectivo mandato por despacho do respectivo Presidente, durante o período de tempo em que exerceram aquelas outras funções.' O Supremo Tribunal Administrativo decidiu que não havia que contar esse tempo. Entendeu que o cargo em questão não estava abrangido, nem no elenco dos cargos políticos definido pelo nº 2 do artigo 1º da Lei nº 4/85, nem no nº 1 do seu artigo 24º, relativo aos titulares de cargos políticos com direito a subvenção vitalícia, solução que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não violava nenhum princípio constitucional. De novo inconformado, A... recorreu para o Tribunal Constitucional. Ao abrigo do disposto na al. B) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, veio sustentar que 'a interpretação dada no (...) acórdão [recorrido] ao artigo 24º n º 1 da Lei nº 4/85 de 9 de Abril viola o artigo 268º, nº 2 da Constituição na parte em que afirma a subordinação da actividade administrativa ao princípio da justiça; (...) viola os artigos 8º e 16º da Lei nº 1/76, de 17 de Fevereiro e o artigo 11º da Lei nº 13/90, de 10 de Maio, leis materialmente constitucionais por força do artigo 290º nº 1 e 292º nº 2 da lei Fundamental;
(...) a norma do nº 2 do artigo 50º da Constituição'. Afirma ainda que alegou as referidas inconstitucionalidades, quer na petição de recurso contencioso, quer nas alegações apresentadas no Supremo Tribunal Administrativo. O recurso foi admitido no Supremo Tribunal Administrativo. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações. Corridos os vistos, cumpre decidir.
2. Em primeiro lugar, há que fixar o objecto do presente recurso. Está em causa a alegação da inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 24º da Lei nº 4/85, de 9 de Abril, enquanto interpretada no sentido de que não releva, para o efeito da contagem do tempo de serviço nela previsto, o exercício das funções de Secretário Adjunto do Governo de Macau, sendo certo que, à data da nomeação para esse cargo, o interessado exercia o mandato de deputado à Assembleia da República. Sustenta o recorrente, no requerimento de interposição de recurso, que invocou oportunamente a inconstitucionalidade desta norma, nomeadamente nas alegações que apresentou no recurso que interpôs para o Supremo Tribunal Administrativo, por violação do princípio da justiça na actividade administrativa, consagrado no nº 2 do artigo 266º da Constituição, por violação dos 'artigos 8º e 16º nº 2 da Lei nº 1/76, de 17 de Fevereiro, e o artigo 11º da Lei nº 13/90, de 10 de Maio, leis materialmente constitucionais por força do artigo 290º nº 1 e 292º nº 2 da Lei Fundamental' e da 'norma do nº 2 do artigo 50º da Constituição'. Da leitura atenta das referidas alegações decorre, porém, que, nos dois primeiros casos, a inconstitucionalidade é imputada à decisão e não a qualquer norma; de todo o modo, e porque só é invocada a inconstitucionalidade de uma norma, nada há que excluir do objecto do recurso definido pelo recorrente no requerimento de interposição.
3. O nº 1 do artigo 24º da Lei nº 4/85 foi alterado pela Lei nº 26/95, de 1 de Agosto. No novo texto, por um lado, contemplam-se expressamente o Governador e os Secretários Adjuntos de Macau mas, por outro, passa de oito para doze anos o período de tempo de exercício de funções necessário para a aquisição do direito
à subvenção. Poderá assim colocar-se a dúvida de saber se o presente recurso mantém interesse para o recorrente. Ora, tal como se julgou no acórdão nº 457/99, cuja fotocópia se junta, para um caso semelhante, a resposta é afirmativa. Desde logo, porque existe uma decisão judicial que negou provimento à sua pretensão de anulação do acto da Caixa Geral de Aposentações que não atendeu o que lhe requerera na totalidade.
4. Começar-se-á pela apreciação do fundamento de inconstitucionalidade atribuído pelo recorrente à norma que constitui o objecto deste recurso: a violação do princípio consagrado no nº 2 do artigo 50º da Constituição, segundo o qual
'Ninguém pode ser prejudicado na sua colocação, no seu emprego, na sua carreira profissional ou nos benefícios sociais a que tenha direito, em virtude do exercício de direitos políticos ou do desempenho de cargos públicos'. Sustenta o recorrente que, por um lado, não pode duvidar-se, nem de que constitua um 'benefício social' a subvenção em causa, nem que tenha 'natureza política' o cargo de Secretário Adjunto do Governo de Macau e, por outro, que
'se a investidura do ora recorrente no cargo de Secretário Adjunto do Governo de Macau não tivesse como efeito a suspensão do estatuto de Deputado, ser-lhe-ia contado, para efeitos do disposto no artigo 24º da Lei nº 4/85, todo o tempo de exercício nessas funções'. Nas contra-alegações, a Caixa Geral de Aposentações opõe que, tal como se julgou no acórdão recorrido, 'para efeitos do disposto no artigo 50º, nº 2, ninguém pode ser considerado prejudicado em relação a um benefício social que nunca lhe foi atribuído'. O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo considerara não violado o nº 2 do artigo 50º da Constituição, não só por esse motivo, mas também porque, mesmo que se entendesse de modo diferente, ainda assim o recorrente não teria razão porque, para poder contar o tempo em que exerceu o cargo de Secretário Adjunto do Governo de Macau, seria necessário que esse cargo figurasse entre aqueles que conferem direito à subvenção vitalícia, o que não é o caso. Com efeito, há uma ligação logicamente necessária entre a inclusão de um determinado cargo naqueles cujo exercício confere direito à subvenção mensal vitalícia agora em questão e naqueles que relevam para o efeito da contagem do prazo. Sendo constitucionalmente admissível a exclusão do cargo de Secretário Adjunto do Governo de Macau do âmbito dos primeiros, será também constitucionalmente admissível a sua exclusão do número dos segundos. Ora, do ponto de vista do princípio consagrado no nº 2 do artigo 50º da Constituição, não se pode considerar inconstitucional a norma agora em causa. Com efeito, o recorrente nada perdeu pelo facto de deixar (em rigor, suspender) o exercício de um cargo público, o de deputado, para exercer um outro cargo público, o de Secretário Adjunto do Governo de Macau. Note-se que nunca poderia deixar de ser suspenso o mandato de deputado, porque, segundo o artigo 17º da Lei nº 1/76, de 17 de Fevereiro (Estatuto Orgânico de Macau), na redacção vigente à data da nomeação para o Governo de Macau (passou a artigo 18º com a Lei nº 13/90), 'O Governador e os Secretários Adjuntos não podem acumular com a respectiva função o exercício de outra função pública ou de qualquer actividade privada'. Nunca seria, pois, admissível não suspender o mandato, continuando a contar o tempo na qualidade de deputado, para efeitos da subvenção mensal vitalícia.
5. Passando à análise dos outros fundamentos invocados, a verdade é que o recorrente sempre os relacionou com o acto que impugnou contenciosamente e, depois, com a decisão da 1ª instância porque não podem, manifestamente, ser imputados à norma objecto deste recurso. Pretende o recorrente que foi violado o princípio da justiça na actividade administrativa porque se verificou uma discrepância quanto ao âmbito em que opera a equiparação entre o cargo que exerceu em Macau e o de membro do Governo da República, constante do referido preceito do Estatuto Orgânico de Macau, entre a interpretação adoptada pelo Presidente da Assembleia da República por duas vezes e aquela que levou a Caixa Geral de Aposentações à prática do acto que impugnou contenciosamente. Com efeito, o Presidente da Assembleia da República, por despacho de 28 de Maio de 1986, suspendeu-lhe o mandato de deputado à Assembleia da República porque equiparou o cargo para que foi nomeado ao de Secretário de Estado; e, mais tarde, por despacho de 11 de Agosto de 1989, concordando com o parecer da Auditoria Jurídica da Assembleia da República emitido fundamentalmente com base na mesma equiparação, entendeu que devia contar o tempo em que foi Secretário Adjunto do Governo de Macau para o efeito da subvenção mensal vitalícia. Diferentemente, a Caixa Geral de Aposentações negou essa equiparação, para lhe negar a contagem do tempo correspondente. Em primeiro lugar, e sem fazer qualquer juízo sobre qual das interpretações normativas pressupostas nestas conclusões será a mais acertada, a verdade é que a opinião do Presidente da Assembleia da República quanto ao sentido da equiparação operada pelo Estatuto Orgânico de Macau não tem qualquer valor vinculativo que possa condicionar a decisão da Caixa Geral de Aposentações. Em segundo lugar, é inegável que a infracção deste princípio só pode ser atribuída a uma norma que estabeleça critérios de decisão da Administração que lhe permitam actuar em contradição com a justiça – o que não é, manifestamente, o caso. Do que o recorrente se queixa, em rigor, é o de que foram frustradas determinadas expectativas que fundou na equiparação feita pelo Presidente da Assembleia da República; mas não se pode daí extrair que a norma constante do nº
1 do artigo 24º da Lei nº 4/85, com o conteúdo atrás definido, seja inconstitucional por violação do princípio da justiça na actividade administrativa.
6. Quanto à eventual violação dos artigos 8º e 16º, nº 2, da Lei nº 1/76, e do artigo 11ºda Lei nº 13/90, de 10 de Maio, também não ocorre. O primeiro dos preceitos citados estabelece que, 'na hierarquia da função pública', o Governador de Macau tem a categoria 'de Ministro do Governo da República' e o segundo procede à equiparação, nos mesmos termos, entre os Secretários Adjuntos e os Secretários de Estado. A equiparação foi mantida pela Lei nº 13/90, para os dois cargos. Todavia, foi suprimida a expressão 'hierarquia na função pública' (artigos 3º e 11º). Não se vai tratar da questão de saber se pode alegar-se a ocorrência de uma inconstitucionalidade com este fundamento, porque seria inútil. Com efeito, seja qual for a extensão precisa desta equiparação, quer se restrinja, quer não, à posição do membro do Governo de Macau na hierarquia do Estado, não se vê por que razão a contrariaria o nº1 do artigo 24º da Lei nº 4/85 por não o incluir para o efeito da atribuição da subvenção mensal vitalícia, apenas. Sendo manifesta a não contradição de regras, não se vai curar de saber se o Estatuto Orgânico de Macau tem ou não valor de lei constitucional e em que termos, por interpretação do disposto no nº 1 do artigo 290º e do nº 2 do artigo
292º da Constituição, preceitos cujo real alcance tem gerado controvérsia.
7. Já se decidiu, porém, neste Tribunal que violava o princípio da igualdade a não inclusão no nº 1 do artigo 24º da Lei nº 4/85 do cargo de Governador de Macau, no acórdão nº 457/99 atrás citado. As razões aí enunciadas valem plenamente para o cargo de Secretário Adjunto do Governo de Macau.
Transpondo a solução ali adoptada, o princípio da igualdade impõe que o tempo de exercício do cargo de Secretário Adjunto do Governo de Macau seja tido em conta, quer para a aquisição do direito ao pagamento da subvenção, quer para a determinação do respectivo montante, em termos idênticos aos do cargo a que se encontra equiparado. Com efeito, e para além das razões indicadas naquele acórdão, que aqui se adoptam, a verdade é que as razões substanciais que justificam a atribuição da subvenção mensal vitalícia se verificam da mesma forma, quer para os cargos expressamente previstos no artigo 24º, quer para o exercício de funções no Governo de Macau. A identidade material das funções exercidas entre os membros do Governo de Macau e os do Governo da República; o interesse público em, por um lado, compensar o esforço dedicado ao exercício dessas funções com eventual prejuízo da actividade anteriormente desenvolvida e necessariamente interrompida e, por outro, afastar a consideração desse eventual prejuízo dos motivos que podem levar a aceitar ou não desempenhá-las; e, acima de tudo, a independência que se pretende no seu exercício são objectivamente as mesmas. Considera-se irrelevante, pelas razões atrás apontadas, que o recorrente desempenhasse as funções de deputado à Assembleia da República na data em que foi nomeado Secretário Adjunto do Governo de Macau.
Assim, decide-se:
Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma
constante do nº 1 do artigo 24º da Lei nº 4/85, de 9 de Abril, enquanto
interpretada no sentido de que não releva, para o efeito da contagem do
tempo de serviço nela previsto, o exercício das funções de Secretário
Adjunto do Governo de Macau; b) Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser objecto de reformulação, de acordo com o juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 13 de Outubro de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa