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Processo nº 179/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. C. L. e S. Sv., com os sinais identificadores dos autos, vieram, 'ao abrigo do disposto nos arts 69º, 70º (al. b) nº 1 e nº 2), 72º (al. b), nº 1), 75º,
75º-A e 78º (nº 4) da Lei nº 28/82, interpor recurso para o Tribunal Constitucional', da decisão do Tribunal da Relação do Porto (1ª Secção), de 20 de Janeiro de 1999, que desatendeu as pretensões dos recorrentes, arguidos 'nos autos vindos do 1º juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – autuados como querela e registados sob o nº 301/97 – que o Ministério Público lhes move' e confirmou os vários despachos por eles impugnados naqueles autos, incluindo o despacho de pronúncia.
2. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade invocam os recorrentes que o 'recurso é interposto ao abrigo da al. b) do nº 1 do artigo
70º da referida Lei, pretendendo-se que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade das seguintes normas: a)...do artigo 664º do C. P. Penal de 1929 na interpretação específica adoptada no douto aresto proferido, sendo que, consideram-se violados os princípios constitucionais consagrados no nº 2 do artigo 32º e artigo 13º da Constituição, referindo-se que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidade apresentado em 11.05.98. b)...do nº 1, nº 3 e al. b) do nº 4, todos conjugados, do artº 205º do C. Penal na interpretação determinada seguida no douto acórdão proferido, sendo que, consideram-se violados os princípios constitucionais dos nºs 1 e 2 do artigo 32º e artigos 13º e 18º da Constituição, esclarecendo-se que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade nas alegações de recurso apresentadas em 26.01.98. c)...da al. b) do nº 1 do artº 668º, do nº 3 do artº 666º e artº 158º do C. P. Civil (aplicáveis ex-vi artº 1º C.P.P. 29) na interpretação específica adoptada no douto aresto proferido, sendo que, considera-se violado o princípio constitucional consagrado no nº 1 do artº 208º da Constituição, referindo-se que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade nas alegações de recurso apresentadas em 26.01.98. d)...da 2ª parte do artº 328º e 1ª parte do artº 327º do C. P. Penal 1929 na interpretação específica seguida no douto acórdão proferido, sendo que, considera-se violado o princípio constitucional consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição, esclarecendo-se que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade nas alegações de recurso apresentadas em 26.01.98. e)...do artº 335º (parte final) e 354º (corpo - 1ª parte) do C. P. Penal 1929 e nº 1 do artº 156º C.P. Civil (aplicável ex vi artº 1º CPP) , na interpretação específica seguida no douto acórdão proferido, sendo que, consideram-se violados os princípios constitucionais consagrados no nº 1 do artigo 208º, no nº 2 do artigo 205º e nº 1 do artigo 32º da Constituição, esclarecendo-se que os recorrentes suscitaram a questão de inconstitucionalidade nas alegações de recurso apresentadas em 08.10.97. f)...do artº 12º (corpo) do Dec. Lei nº 35007, do artº 3º do Dec. Lei nº 605/75 e artº 337º (corpo - 2º parágrafo) do C. P. Penal 1929, na interpretação determinada adoptada no douto aresto proferido, sendo que, consideram-se violados os princípios constitucionais dos nºs 1, 4, e 5, do artigo 32º da Constituição, esclarecendo-se que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade nas alegações de recurso apresentadas em 20.02.98'.
3. Nas suas alegações apresentaram os recorrentes a seguinte SÍNTESE CONCLUSIVA:
'Atento o que exposto ficou, pode, resumidamente, concluir-se o seguinte: I...
1ª...O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Viana de Castelo e o Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto devem ter-se pela mesma e única entidade, pelo que, tendo o Mº Público no tribunal de 1ª Instância respondido devidamente aos recursos dos arguidos, não é admissível que o Mº Público no Tribunal Superior apresente nova resposta a coberto do artº 664º do C. P. Penal 1929.
2ª... Os princípios constitucionais da igualdade perante a lei e das garantias de processo criminal, impedem que o Ministério Público se pronuncie uma segunda vez sobre as mesmas questões carreando para o processo mais e novos argumentos no sentido de fazer vingar a sua tese – cfr. artigos 13º e 23º da Lei Fundamental.
3ª...No caso específico tratado no processo ‘assegurar todas as garantias de defesa’ significa impossibilitar que o Ministério Público junto do Tribunal Superior, em longa intervenção, repise os argumentos antes expostos e acrescente ainda outros, depreciando numa fase crucial do processo as razões dos arguidos – cfr. citado artº 664º e artigo 13º. II...
4ª...O nº 3 do artº 205º do C. Penal reporta-se e é directamente aplicável quer ao nº 1, quer à al. b) do nº 4 do mesmo artigo, pelo que no caso concreto do processo terá que considerar-se relevante a inexistência ou a desistência de queixa por parte dos supostos ofendidos.
5ª... Ao interpretar a mesma norma jurídica – citado artigo 205º C. P. – não é possível discriminar os visados, pois que tal equivaleria a relevar uma restrição desnecessária para a salvaguarda de qualquer direito ou interesse constitucionalmente protegido, dando ainda importância a um dispositivo que não reveste carácter geral e abstracto – cfr. citada al. b) e artigo 18º Constituição.
6ª... Os arguidos reclamam o direito de serem tratados em situação de igualdade com outros visados pela prática do mesmo tipo de crime, abstraindo-se de diferenciações baseadas em elementos económicos – cfr. artº 13º Constituição e também com interesse o Ac. STJ de 24.09.98 in Acs. STJ III 1998 pág. 170. III...
7ª...Para decidir questões tão importantes suscitadas pelos arguidos como são o problema da ilegitimidade do Mº Público e a extinção do procedimento criminal, o tribunal não pode limitar-se comodamente e sem mais a declarar que adere na integra às razões do Mº Público, desconsiderando qualquer fundamentação – cfr. artºs 668º (al. b), 666º (nº 3) e 158º C.P. Civil e artigo 205º da Constituição.
8ª...O tribunal deve especificar as razões por que decide em determinado sentido, discorrendo sobre as mesmas e extraindo as correspondentes ilações, por forma a que os interessados compreendam exactamente o teor de tal decisão, fiquem devidamente habilitados para querendo a impugnar e se convençam da imparcialidade e objectividade do Juiz – cfr. Normativos indicados na concl. 7ª e Doutor Gomes Canotilho in ‘Direito e Justiça’ citados nas alegações.
9ª... O Tribunal da Relação no caso específico dos autos não pode suprimir a falta total de fundamentação do Tribunal de 1ª Instância, pois que tal significa proferir uma decisão totalmente nova cujos fundamentos os arguidos só então ficam a conhecer e que não podem discutir por lhes estar nessa ocasião vedado interpor recurso ordinário – cfr. artºs 20º (nº 1) e 32º (nº 1) da Constituição. IV...
10ª...Não é admissível a intervenção desregrada do Mº Público no processo após uma intervenção decisiva dos arguidos e tão-só para destruir previamente todos os argumentos por eles aduzidos em sua defesa - cfr. artºs 328º (2ª parte) e
327º (1ª parte) C. P. Penal 29 e artigo 32º nº 1 da Constituição.
11ª...As garantias (todas) de defesa dos arguidos consubstanciam-se intervenha também em impedir que o Mº Público no processo em momentos que não lhe estão destinados, por forma a assegurar a isenção e objectividade na realização de todos os actos de instrução por eles requeridos - cfr. normativos citados na conclusão 10ª. V...
12ª... No final da instrução contraditória o tribunal está obrigado a analisar todas as provas produzidas e todos os actos de instrução realizados, discorrendo sobre tudo e extraindo as ilações adequadas, parecendo inconcebível que sem mais se limite a reproduzir textualmente a querela deduzida - cfr. artºs 335º (parte final), 354º (corpo - 1ª parte) C.P.P. 29, artºs 156º e 158º CPC e artigos 208º
(nº 1) e 205º (nº 2) Constituição.
13ª...Na administração da justiça exige-se que o tribunal fundamente as suas decisões mencionando as razões concretas por que julga em certo sentido, não podendo pois alhear-se de elucidar os motivos determinantes da sua convicção, aderindo pura e simplesmente à posição escrita de uma das partes do processo - cfr. normativos citados sob a concl. 12ª.
14ª...Na situação específica do processo não pode relevar o facto de o Tribunal da Relação ter decidido suprir a total falta de fundamentação do despacho da 1ª Instância, já que só então são revelados aos arguidos os fundamentos da decisão, que nessa ocasião eles não podem mais discutir por lhes estar vedado o recurso ordinário - cfr. artºs 20º (nº 1) e 32º (nº 1) da Constituição. VI...
15ª...A volumosa actividade processual documentada de fls. 2 a fls. 475 levada a cabo ao longo de quase 15 meses, pela grandeza e amplitude das investigações e actos realizados, representa manifestamente instrução preparatória, que o Mº Público pela parcialidade e subjectividade atinente a parte que realmente é, por sua própria iniciativa e autonomamente, não podia levar a cabo - cfr. artº 12º
(corpo) Dec. Lei nº 35007.
16ª...O conjunto de provas assim recolhidas até fls. 475 verificou-se de acordo com um objectivo só previamente definido pelo Mº Público em vista de basear a acusação aos arguidos, sem a mínima intervenção ou fiscalização do Juiz, afectando irremediavelmente as garantias de defesa dos recorrentes - cfr. artº citado e artigo 32º (nº 1., 4. e 5.) da Lei Fundamental.
17ª...O Mº Público não podia assenhorear-se ao longo de quase 15 meses da fase de instrução preparatória, onde deve ponderar a objectividade e isenção que só o Juiz personifica, sendo certo que ao Mº Público só era consentido realizar diligências simples e breves e, mesmo assim, desde que se considerassem importantes para a descoberta da verdade material ou pudessem concorrer para formar a convicção sobre se o processo devia ou não ser introduzido em juízo - cfr. artº 3º Dec. Lei nº 605/75 e normativos citados nas duas concls. anteriores'.
4. O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo deste modo:
'1º Não tendo os recorrentes cumprido o ónus de suscitar, durante o processo, em termos idóneos e adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relativamente ao preceituado nos artigos 668º, 666º e 158º do Código de Processo Civil e nos artigos 327º, 328º, 335º, 337º e 354º do Código de Processo Penal de
1929, bem como relativamente ao estipulado nos artigos 12º do Decreto-Lei 35007 e 3º do Decreto-Lei 605/75, não deverá, nessa parte, conhecer-se do recurso interposto.
2º Não é inconstitucional a interpretação da norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, segundo a qual deve ser notificado ao arguido o visto exarado no processo pelo representante do Ministério Público no tribunal superior, facultando-se-lhe o contraditório relativamente à posição ali assumida.
3º Não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade a interpretação do estipulado no nº 3 do artigo 205º do Código Penal que se traduz em, considerando semi-público o crime de abuso de confiança simples, qualificar como público aquele crime quando se reporte a bens de valor consideravelmente elevado.
4º Termos em que deverá improceder o recurso, relativamente a estas duas questões de constitucionalidade suscitadas pelos recorrentes'.
5. Ouvidos os recorrentes sobre a matéria daquelas questões prévias, tal como se sintetiza na conclusão 1ª das contra-alegações do Ministério Público, vieram sustentar que elas 'devem ser desatendidas', na base da consideração essencial de que 'os recorrentes, quer no primeiro momento em que suscitaram as questões de inconstitucionalidade, quer nas alegações dos recurso interpostos para o Tribunal da Relação do Porto, quer mesmo no requerimento de recurso de 02.02.99 para este Alto Tribunal, quer por fim nas alegações do recurso juntas em
05.05.99, sempre tiveram todo o cuidado de explicitar com evidência e na realidade os termos precisos em que as determinadas interpretações adoptadas pelo Tribunal recorrido, violam as normas e princípios constitucionais nas exactas interpretações que se propugnam'.
6. Tudo visto, cumpre decidir. Há que começar naturalmente pelas questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, quanto a saber 'se estão presentes, relativamente às numerosas questões de constitucionalidade que dizem (os recorrentes) ter 'suscitado', os indispensáveis pressupostos de admissibilidade do recurso interposto', o recurso da alínea b), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, pois, a procederem, não se chegará, pelo menos, em parte, ao conhecimento do mérito desse recurso. Para além do reparo que o Ministério Público faz relativamente ao requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade - não obedecer este integralmente às exigências legais -, já que, 'estando em causa questões de inconstitucionalidade reportadas a determinadas e específicas interposições normativas, os recorrentes não curaram de indicar, de forma expressa e clara, quais as concretas interpretações normativas, feitas pela decisão recorrida, que consideravam inconstitucionais – limitando-se a lançar mão da vaga, genérica e tabelar afirmação de que certos preceitos legais 'na específica interpretação adoptada no acórdão recorrido' (que não curam de indicar) seriam inconstitucionais', o Ministério Público ainda adianta que, no que toca 'a algumas das questões que integram o longo estendal das pretensas
'inconstitucionalidades', os recorrentes também 'não curaram de suscitar, durante o processo isto é, antes da prolação da decisão recorrida, podendo perfeitamente tê-lo feito, uma verdadeira questão de inconstitucionalidade de
'normas' ou 'interpretações normativas' que pudesse funcionar como substracto idóneo do recurso de fiscalização concreta ora interposto, pelo que desde já se suscita a consequente 'questão prévia'.
É o que se vai ver.
7. O estendal dessas normas consta das alíneas c), d) e) e f) do requerimento de interposição do recurso atrás transcrito, e aí se identificam as peças processuais em que os recorrentes teriam eventualmente suscitado as pretensas questões de inconstitucionalidade (as alegações de recurso apresentadas perante o tribunal de relação em 26 de Janeiro e 20 de Fevereiro de 1998 e em 8 de Outubro de 1997). Tudo está em saber se tal suscitação teria sido feita 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, nos termos de este estar obrigado a dela conhecer', como exige o nº 2 do artigo 72º, da Lei nº
28/82, na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, acolhendo uma linha de jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional. Utilizando um critério cronológico, relativamente às várias alegações apresentadas pelos recorrentes perante o Tribunal da Relação do Porto, constata-se o seguinte: a) Nas alegações com a data de 8 de Outubro de 1997, respeitantes ao 'recurso interposto do douto despacho de pronúncia de fls. 1184 e ss. proferido em CAPut!'.06.97 pelo Exmo. Juiz do Tribunal do Trabalho do Circulo Judicial de Viana do Castelo', consta a alínea 'C. INCONSTITUCIONALIDADES QUE POR PRECAUÇÃO SE SUSCITAM', em que os recorrentes invocam:
'No exercício da sua função jurisdicional a Mmª Juíza da instrução estava obrigada a proferir despacho sobre o requerimento de interposição de recurso de fls. 1137, bem como a pronunciar-se a respeito da questão levantada pelos recorrentes sob a alínea D) do seu requerimento de abertura de instrução contraditória de 16.09.96, consubstanciando tais omissões a violação dos princípios gerais consagrados nos artigos 205º e 208º da Constituição. De resto o direito dos arguidos de impugnarem a douta decisão de fls. 1132, bem como de conhecerem a decisão do Tribunal respeitante à questão colocada sob a al. D) do referido requerimento de 16.09.96, integra-se manifestamente nas garantias de defesa que o nº 1, do artigo 32º da Constituição assegura, pelo que a preterição de pronúncia sobre tais direitos traduz clara violação daquele princípio fundamental. Acresce que, com o devido respeito e como já se referiu, o douto despacho de pronúncia de CAPut!'.06.97 mais não é que a reprodução da querela deduzida pelo Ministério Público, tendo o Mmo. Juiz do processo desconsiderado as provas carreadas para o processo que beneficiam os arguidos e, consequentemente, deixado de apreciar a acusação, pelo que a interpretação que seguiu quanto ao disposto nos artºs 335º, 354º e 365º do Cód. Proc. Penal 1929 viola frontalmente os princípios gerais consagrados no nº 1, artº 208º e nº 2, do artº 205º e o direito fundamental do nº 1 do artigo 32º da Constituição'. Nas respectivas conclusões os recorrentes reafirmam o texto das alegações, reportando sempre a censura à 'falta de decisão' e ao 'douto despacho de pronúncia' ('À Mma. Juíza de instrução no exercício da função jurisdicional...', o 'Mmo. Juiz do processo deveria ter apreciado...', pois só assim ficariam asseguradas as garantias de defesa – conclusões 8ª e 9ª), e concluindo, no final, deste modo: '10ª - A Mma. Juíza da instrução e o Mmo. Juiz do processo violaram, por errada indicação e interpretação, as normas jurídicas que se vêm de citar'. Donde resulta que não se descortina aqui uma arguição processualmente adequada de questão de inconstitucionalidade reportada a normas jurídicas – seriam as normas 'do art. 335º (parte final) e 354º (corpo - 1ª parte) do C. P. Penal-1929 e nº 1 do art. 156º C.P. Civil (aplicável ex vi artº 1º CPP)' -, mas essencialmente uma censura dirigida a actos jurisdicionais, o que não é um modo processualmente adequado de suscitação de inconstitucionalidade durante o processo (só uma arguição de inconstitucionalidade normativa pode relevar em contencioso de constitucionalidade). Tanto assim que o acórdão recorrido não se debruça sobre qualquer questão de inconstitucionalidade, limitando-se a responder àquela censura dos recorrentes nestes termos:
'Considerando que a exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais compreende uma directa remissão para os termos em que a lei ordinária estrutura essa mesma fundamentação, não se vê que o despacho de pronúncia em causa padeça de inconstitucionalidade por essa via ao não ter manifestado a motivação subjacente aos juízes de suficiência indiciária que dele constam; e se, pois bem, a formulação de tais juízos é essencialmente coincidente com a que foi adoptada na querela definitiva, não vemos como daí possa advir qualquer nulidade ou irregularidade do despacho judicial. Esta perspectiva não deve ter-se como limitativa dos direitos de defesa a um nível constitucionalmente intolerável, até porque no CPP/29, ao invés do que resulta do nº 1 do art. 310º do CPP de 1987, não está vedado ao arguido o direito de interpor recurso da decisão instrutória que o pronuncie pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, recurso que pode ser alargado a matéria de facto, o que permite que o juízo de suficiência e a correlativa subsunção jurídico-penal possam ser, com toda a amplitude, questionados e sindicados antes que o processo siga para a face de julgamento'. b) Nas alegações com a data de 20 de Fevereiro de 1998, relativamente ao
'recurso admitido a fls. 1247 do douto despacho proferido a fls. 1226v. que declarou improcedente a arguição de invalidade das diligências levadas a cabo pelo MºPº e constantes de fls. 1 a fls. 475 dos autos', os recorrentes formularam estas conclusões, que, por comodidade, se transcrevem:
'1ª.. Quando ao crime indicado corresponder processo de querela a recolha de todas as provas só pode ser levada a cabo no âmbito da instrução preparatória, atenta a seriedade do crime em causa e a necessidade de garantir a isenção na condução do processo – cfr. artº 12º (corpo) Dec. Lei nº 35007.
2ª..O inquérito preliminar consentido ao Ministério Público ou a qualquer outra autoridade tem natureza preambular, terá que revelar-se em diligências rápidas, simples e meramente esclarecedoras, que nunca ultrapassem os 3 meses, sempre com o único propósito de recolha de qualquer prova que seja importante para a descoberta da verdade material – cfr. artº 3º Dec.Lei nº 605/75, confrontado ainda com o artº 337º (corpo – 2º parágrafo) do C.P.P. 29 e artº 9º Cód. Civil.
3ª..O conjunto do processado de fls. 1 a fls. 475 levado a cabo exclusivamente pelo Ministério Público e mesmo autonomamente pelos seus funcionários ao longo de 15 meses, pela variedade, volume, grandeza e importância que demonstra, não se coaduna com os limites específicos do inquérito preliminar, traduzindo autêntica instrução preparatória para que tal autoridade e serviços não estavam legitimados, o que implica a sua invalidade total – cfr. referidos dispositivos legais conjugados.
4ª..O entendimento seguido pelo Mmo. Juiz ‘a quo’ fazendo corresponder todo o questionado processado ao discutido inquérito preliminar, viola frontalmente os princípios fundamentais das garantias (todas) de defesa dos arguidos e da exclusividade da instrução a cargo do Juiz cometendo ao Ministério Público funções que não lhe assistem e que prejudicam manifestamente os arguidos pela falta de isenção e imparcialidade de tal entidade – cfr. nºs 1., 4. e 5. artº
32º da Constituição.
5ª..Violou o Mmo. Juiz ‘a quo’ as normas jurídicas que se referiram, que devem ser interpretadas e aplicadas com o sentido expresso nas conclusões anteriores.' Neste ponto também a censura vem dirigida pelos recorrentes ao 'entendimento seguido pelo Mmº Juiz ‘a quo’ (...)'('Violou o Mmo. Juiz ‘a quo’ as normas jurídicas que se referiram, que devem ser interpretadas e aplicadas com o sentido expresso nas conclusões anteriores' – é a afirmação essencial dos recorrentes), pelo que não traduz esse modo de dizer uma arguição de inconstitucionalidade normativa, dirigida a normas jurídicas, no caso 'do art.
12º(corpo) do Dec. Lei nº 35007, do artº 3º do Dec. Lei nº 605/75 e artº 337º
(corpo - 2º parágrafo) do C. P. Penal 1929' (não é a aplicação delas ou a sua interpretação com determinado sentido que poderia ter implicado eventualmente a violação de normas ou princípios constitucionais, antes o entendimento do julgador, 'fazendo corresponder todo o questionado processado ao discutido inquérito preliminar'). Também o acórdão recorrido não questiona aquelas indicadas normas no pleno da sua conformidade ou desconformidade com a Constituição, apreciando apenas o que se teria passado com o inquérito preliminar nestes termos:
'Por isso que com a realização do inquérito preliminar se não tivesse infringido o comando legal da obrigatoriedade de instrução preparatória, pois ela teve lugar já no Tribunal de Instrução Criminal de Viana do Castelo, onde passou a ser processada a partir de fls. 473, e também não foi violado o princípio constitucional de judicialização da instrução, uma vez que esta foi sempre presidida por um juiz de instrução'.
'Finalmente -adianta-se ainda no acórdão -, não demonstrando os recorrentes que deste entendimento decorra a ofensa de qualquer das garantias constitucionais de defesa, e não se vislumbrando uma tal violação, temos por bem fundada a decisão impugnada, a fls. 1228, ainda que a realização do inquérito preliminar tivesse demandado um período de quase 14 meses, que por isso se não converteu em instrução e apenas revela quão escrupuloso foi o Ministério Público antes de decidir introduzir o feito em juízo contra os ora recorrentes, o que se compreende por se tratar de matéria de indagação difícil e reclamar aturadas pesquisas documentais; e o invocado art. 337º do CPP/29 só rege para a fase de instrução contra pessoa certa'. c) Nas alegações com a data de 26 de Janeiro de 1998, relativamente ao 'recurso interposto a fls. 1137 e admitido a fls. 1227 do douto despacho de fls. 1132 e
113 de 07.11.96 que indeferiu as questões prévias suscitadas em A, B e C. do requerimento de 16.09.96, relegou para momento posterior à inquirição das testemunhas a questão invocada em D. daquele requerimento e designou data para a audição das testemunhas indicadas pelo MºPº, e ainda, do douto despacho de
20.09.96 de fls. 1125 que permitiu a extensa intervenção do MºPº que se vê de fls. 1126 a fls. 1131', os recorrentes continuam a reportar-se ao comportamento do julgador nestes termos:
- 'O douto despacho de fls. 1132 que apreciou a invocada ilegitimidade do Mº Pº
é nulo dado que a Mma Juíza 'a quo' não discrimina quaisquer fundamentos de facto e de direito que justifiquem tal decisão, limitando-se a remeter para a explicação do Mº Pº de fls. 1126 e ss. - cfr. artºs 668º (al. b) nº 1), 666º (nº
3) e 158º do Cód. Proc. Civil' (Conclusão 1ª).
- 'O douto despacho de fls. 1132 v. que decidiu a questão da extinção do procedimento criminal por efeito da prescrição é nulo, dado que não enuncia qualquer fundamento de facto e de direito que justifique tal decisão, limitando-se a dar por reproduzida a posição do Mº Pº a tal respeito - cfr. artºs 668º (al. b) nº 1,) 666º (nº 3) e 158º Cód. Proc. Civil. (Conclusão 6ª).
- 'A decisão em questão é de relevância indiscutível sob o ponto de vista da defesa dos arguidos, sendo que, a absoluta falta de fundamentação de tal despacho impede os recorrentes de impugnar em concreto as razões que convenceram a Mma. Juíza 'a quo' a decidir como decidiu, violando por outro lado abertamente o princípio geral consagrado no nº 1 do artº 208º da Constituição - cfr. ainda artº 676º (nº 1) C.P.C. e Prof. Gomes Canotilho Rev. 'Direito e Justiça' Vol. X
1996 Tomo II pág. 21' (Conclusão 7ª).
- 'Justifica-se seja revogado o douto despacho de fls. 1125 que consentiu a longa e profunda intervenção do Mº Pº que se lhe seguiu, quer por que a lei não consente uma tal intervenção, quer por que a mesma ofendeu manifestamente as garantias de defesa asseguradas aos arguidos _ cfr. 2ª parte artº 328º e 1ª parte artº 327º Cód. Proc. Penal 29 e artº 32º da Constituição' (Conclusão 8ª).
- 'Violou a Mma. Juíza 'a quo' as normas jurídicas que se vem de indicar, que devem ser interpretadas e aplicadas com o sentido e alcance que constam das conclusões anteriores' (Conclusão 9ª). Também aqui não se descortina uma arguição de inconstitucionalidade normativa visando as normas 'da al. b) do nº 1 do artº 668º, do nº 3 do artº 666º e artº
158º do C. P. Civil' e 'da 2ª parte do artº 328º e 1ª parte do artº 327º do C. P. Penal de 1929', pois o que se questiona sempre é a nulidade dos despachos em causa, nesta ou naquela perspectiva (ou porque não se 'enuncia qualquer fundamento de facto e de direito que justifique tal decisão' ou porque se consente 'a longa e profunda intervenção do Mº Pº'). Ao que o Tribunal da Relação do Porto respondeu, no essencial, não discutindo nunca a (in)constitucionalidade de tais normas, nestes termos:
- 'Por isso que o Mmº juiz não pudesse nem devesse, partir para a apreciação de questões susceptíveis de pôr termo ao processo sem antes dar oportunidade ao Mº Pº, enquanto parte e titular da acção penal, de sobre elas se poder pronunciar.
- 'Não só a audição do Ministério Público não representa qualquer ofensa das garantias de defesa dos arguidos - que as exerceram com a apresentação do requerimento de fls. 1118 e a suscitação de tais questões -, como ela se tornava exigível perante o princípio do contraditório de que o § 3º do art. 140º do C. P. P./29 é uma das emanações normativas, além de que o eventual arquivamento do processo sem prévia audição do Ministério Público corresponderia à nadificação das funções constitucionalmente cometidas ao Mº Pº reportadamente ao exercício da acção penal' (quanto ao despacho de 20 de Setembro de 1996).
- 'Daí que se não reconheça ao despacho de 7/11/96 vício de inconstitucionalidade reportado à fundamentação de decisões judiciais e às garantias de defesa - haja em vista que para G. Canotilho, in. loc. cit. pelos recorrentes a fls. 1234, é na motivação das sentenças que se situa o 'núcleo duro' de exigência constitucional de fundamentação' (quanto ao despacho de 7 de Novembro de 1996). Por tudo isto, e quanto à matéria destas alíneas a), b) e c), correspondendo ao enunciado das alíneas c), d), e) e f), do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, fundado no artigo 70º, nº 2, b), da Lei nº
28/82, não pode tomar-se conhecimento do presente recurso de constitucionalidade, por falta do pressuposto específico da suscitação de questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, na medida em que não vem dirigida a censura dos recorrentes, na óptica jurídico-constitucional,
às normas por eles identificadas, mas aos actos jurisdicionais.
8. Ficam, assim, como objecto do presente recurso de constitucionalidade, as normas do artigo 664º, do Código de Processo Penal de 1929 e 'do nº 1, nº 3 e al. b) do nº 4, todos conjugados, do artº 205º da C. Penal', havendo que conhecer, neste único ponto, do mérito de tal recurso. a) Quanto àquela norma do artigo 664º, os recorrentes suscitaram, em requerimento autónomo - uma arguição de nulidade relativamente à apresentação do Parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto - a
'inconstitucionalidade da interpretação seguida quanto ao disposto no artigo
664º do Cód. Proc. Penal 1929', defendendo que 'a intervenção do Mº Pº inserta a fls. 1261 a 1269 não é admissível, suscitando-se pois expressamente a inconstitucionalidade do disposto no artº 664º CPP 29, se interpretado no sentido de consentir tal interferência, por violação dos princípios consagrados no nº 2 do artº 32º e artº 13º da Lei Fundamental'. A isso respondeu-se no acórdão recorrido, aderindo-se à jurisprudência que vem citada do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
'Não vemos como dissentir desta jurisprudência, já que a notificação aos réus para poderem responder ao parecer ou promoção do representante do Ministério Público no Tribunal 'ad quem' retira qualquer base substantiva à argumentação de que, ainda assim, as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas não fiquem salvaguardadas. Também o princípio constitucional da igualdade não fica ferido nem violado por esta interpretação, uma vez que na passagem do processo da instância 'a quo' pra a instância 'ad quem' a representação do Ministério Público é por definição cometida a diferente Magistrado, que pela via adjectiva oferecida pelo questionado art. 664º poderá em cada recurso assumir concretamente essa função de representação do Ministério Público, na dupla vertente de órgão de justiça e de parte. Com efeito, assim era afirmado no âmbito de intervenção do Ministério Público no processo penal no domínio da plena vigência do C. P. P. de 1929 (v. Cavaleiro Ferreira, 'Curso' de 1954/55, ed. 1959, I vol., pág. 91), e ainda agora mantém esses traços essenciais (cfr. Figueiredo Dias, 'Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal', in Jornadas de Direito Processual Penal do C.E.J., pág. 31). Pelo que, com esta correcção que é imposta pela natureza própria das funções que constitucional e legalmente lhe estão cometidas, e dos critérios de estrita legalidade e objectividade a que está obrigado, não se reconhece a afirmada violação do invocado princípio da igualdade. Em tal conformidade, pois que os recorrentes foram notificados do teor do aludido parecer, 'para, querendo, dizerem o que se lhes oferecer', julgamos improcedente esta arguição de nulidade, que foi apresentada a fls. 1274/1275'. Nada mais resta acrescentar, apontando-se ainda na linha dessa jurisprudência, o recente acórdão nº 533/99, tirado em Plenário, e publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1999. Se, como é o presente caso, aos recorrentes foi dada oportunidade de se pronunciarem sobre o dito Parecer, não pode vingar a tese dos recorrentes da violação das garantias de defesa dos arguidos e da 'clara violação do princípio da igualdade por assim se beneficiar sem qualquer justificação o Mº Pº e apenas por efeito da posição que detém no processo'. Sem mais, e neste aspecto, não merece provimento o recurso de constitucionalidade. b) Quanto à norma 'do nº 1, nº 3 e al. b) do nº 4, todos conjugados do artº 205º da C. Penal', é certo terem os recorrentes suscitado de forma adequada a questão da sua inconstitucionalidade nas já referidas alegações com data de 26 de Janeiro de 1998, aí concluindo que:
'2ª ..É importante apreciar se o Ministério Público tem ou não legitimidade para prosseguir com o procedimento criminal, já que inexistindo no processo qualquer certeza quanto aos factos (e respectiva extensão) que os arguidos terão praticado, o crime de abuso de confiança em questão pode limitar-se à previsão do nº 1 do artº 205º do Cód. Penal.
3ª..No circunstancialismo específico dos autos não pode ser dispensada a queixa do ofendido, já que tal equivaleria logo à partida a supor que os arguidos cometeram o crime mais grave, assim se desprezando a hipótese do cometimento de crime menos grave, sendo que, nesta configuração crê-se que o pensamento legislativo impõe a apresentação de queixa – cfr. artº 9º Cód. Civil e artº 205º
(nºs 1 e 3) Cód. Penal.
4ª..A perspectiva específica da acusação/condenação dos arguidos pelo crime de abuso de confiança na sua modalidade mais grave, ofende o princípio fundamental da presunção da inocência dos arguidos por esquecer que os factos poderão enquadrar-se na hipótese menos grave daquele crime, o que a verificar-se implicará a extinção do procedimento criminal por falta de queixa – cfr. nº 2 artº 32º Constituição.
5ª..A discriminação que se extrai do disposto no artº 205º do Cód. Penal baseada apenas num elemento económico não determinado entre o crime menos grave, que depende da queixa e consequentemente admite a desistência, e o crime mais grave que abstrai daquele procedimento e possibilidade, viola os princípios da igualdade e limitação do alcance da lei previsto nos artºs 13º e 18º da Constituição'. E, no texto dessas mesmas alegações, sustentam os recorrentes, no que aqui pode interessar, o seguinte, sobre a epígrafe 'A ... questão da impossibilidade de prosseguimento do processo por ilegitimidade do Mº Pº para prosseguir com a acção penal':
'No douto despacho de fls 1132 que indeferiu a questão em epígrafe, refere a Mma. Juíza ‘a quo’ tão-só que, na actual lei penal certos crimes mantiveram atento o valor em causa a natureza que já anteriormente possuíam, como ainda que, mesmo passando, por força de outra lei penal, a revestir natureza diversa mantém-se para efeitos da legitimidade do Mº Pº válida tal qualidade não podendo ser prejudicada. Discute-se no processo a prática pelos arguidos de um crime de abuso de confiança previsto e punido à face do Código Penal em vigor pelo seu artigo
205º, defendendo o Ministério Público que é consideravelmente elevado o valor da coisa que teria sido ilegitimamente apropriada, enquadrando assim tal crime na al. b) nº 4 da referida norma jurídica, sendo que os arguidos não aceitam que o circunstancialismo dos autos configure tal crime e pois que se tivessem eles apropriado ilegitimamente de qualquer valor que fosse.'
(...) Acresce que há ainda razões de ordem constitucional que, na opinião dos arguidos, impõem a conclusão de que sem queixa do ofendido o processo não pode ter seguimento. Com efeito, tal como o processo se apresenta, configura-se à partida a acusação dos arguidos pelo crime de abuso de confiança na sua modalidade mais grave, desenvolvendo-se todo o processado com esse objectivo específico, esquecendo-se, para além do mais, que se pode verificar aquele crime na sua modalidade mais leve (nº 1 artº 205º), o que sem a existência de queixa acarretaria a extinção do procedimento criminal sem que os arguidos chegassem sequer pois a ser condenados. Ora, ao perspectivar-se especificamente a acusação (e posterior condenação) dos arguidos pelo crime previsto na al. b) do nº 4 do artº 205º do Cód. Penal, directamente se atinge o princípio da presunção de inocência dos arguidos, consagrado no nº 2 do artº 32º da Constituição, por à partida haver a certeza de que não poderão ser condenados se os factos provados se limitarem à previsão do nº 1 daquele artigo. Por outro lado, a discriminação que o artigo 205º estabelece fazendo depender ou não o procedimento criminal da queixa, viola o princípio da igualdade previsto no artº 13º da Constituição, já que impõe (na hipótese configurada quanto aos arguidos), o prosseguimento do processo baseando-se apenas em razões económicas relativas ao valor da apropriação, bem como viola o princípio que se extrai do nº 2 do artº 18º da Constituição nos termos do qual a restrição de um direito
(i.é, o processo prosseguir sem que o ofendido demonstre vontade nesse sentido) só tem cabimento se for necessário á salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos. Consequentemente, por que a apontada diferenciação não tem uma razão de ser relevante, baseando-se apenas num factor económico e não determinado (o valor consideravelmente elevado é discutível) e traduz a limitação de um direito
(impondo o processo sem queixa) sem que se vislumbre o interesse superior que visa proteger, a al. b) do nº 4 do artº 205º do Cód. Penal é inconstitucional se interpretada no sentido de o procedimento criminal poder prosseguir sem que o ofendido formalize queixa nesse sentido'. A tal arguição retorquiu o acórdão recorrido nestes termos:
'Ou seja, os recorrentes constróem aqui uma tese que assenta no não exercício de um direito - o de queixa - que, para além de há muito se ter extinguido, não pode, no seu exercício, ser imposto pelo Tribunal ao respectivo titular, chegando até à conclusão de inconstitucionalidade da natureza pública do crime de abuso de confiança qualificado perante a conferição da natureza semi-pública do crime de abuso de confiança simples. E assim, não obstante o processo ter corrido sempre por crime de abuso de confiança qualificado face aos valores de apropriação ilegítima que são assacados aos arguidos, acabaria por ser arquivado por inexistência de queixa, que não é reclamada pela natureza pública do 'tipo' qualificado. Esta visão das coisas releva de uma perspectiva não integrada dos direitos e princípios constitucionalmente assegurados. Na verdade, sempre no nosso ordenamento jurídico-penal prevaleceu a regra da iniciativa pública para o procedimento criminal, configurando-se a atribuição da natureza semi-pública ou particular a dados crimes como verdadeira excepção
àquela regra (v. artº 1º do Dec-Lei nº 35007, de 13/10/1945, e o art. 48º do C. Proc. Penal de 1987), sendo certo que há um elenco de crimes que tradicionalmente comungam destas naturezas de excepção. Mas há sempre um outro elenco glutinante que tem a ver com razões de política criminal mais contingentes. No caso da previsão do artº 205º do CP/95, as diferenças de natureza ditadas pelo valor da apropriação não relevam apenas de estarem em causa crimes contra o património, já que estes crimes (contra a propriedade, contra o património em geral e contra direitos patrimoniais) foram sistematicamente rearrumados no CP/95 - imediatamente a seguir aos crimes contra as pessoas, o que se deveu, segundo Figª Dias (Jornadas de Dir. Crim. do C.E.J., em Julho/95, in I vol., p.
28) a um intuito de acentuação não individualista, mas personalista 'da ideia de que o que se protege e constitui bem jurídico para o direito penal não é o património em si mesmo considerado, mas como património de uma pessoa e portanto ainda com valor eminentemente pessoal'. Por isso, não é de acolher a tese recursória de que a natureza pública dos crimes de abuso de confiança qualificados é constitucionalmente intolerável perante a natureza semi-pública do crime de abuso de confiança simples, precisamente porque a maior expressão do valor da apropriação naqueles é índice de uma grande ofensividade mais acentuado do bem jurídico protegido, o qual se não reduz à mera expressão materialista que os recorrentes lhe atribuem, antes tem a forte componente personalista que acima lhe foi apontada. Daí que a abertura à natureza semi-pública, por razões de política criminal, dos crimes simples de furto, abuso de confiança e burla, tendo a ver com o objectivo de favorecer 'uma melhor convivialidade com as normas processuais e um mais amplo papel para o controlo social' - v. Cunha Rodrigues, in 'Jornadas', vol. I, p. 56 -, se compagine, mesmo no plano da arquitectura constitucional, com a necessidade de não enfraquecer a defesa social perante crimes que violam idênticos bens jurídicos mas com uma expressão ofensiva ou danosa claramente mais acentuada. Termos em que se não reconhece, na parte do despacho recorrido que indeferiu a questão prévia de ilegitimidade do Ministério Público, a ofensa dos princípios constitucionais da presunção de inocência, da igualdade e da proporcionalidade, ou de qualquer preceito da lei ordinária, face ao que tal decisão deve ser confirmada'.
É patente que aos recorrentes não assiste razão, podendo avançar-se, como diz o Ministério Público, nas suas alegações, e aderindo às razões do acórdão recorrido, que 'é manifestamente improcedente a argumentação de recorrentes, por ser evidente que não ofende o princípio da igualdade a circunstância de o legislador qualificar como públicos os crimes contra o património que impliquem ilegítima apropriação de bens de valor muito elevado'. Ao quererem os recorrentes prevalecer-se de ser 'relevante a inexistência ou a desistência de queixa por parte dos supostos ofendidos', fazendo valer o nº 3 do artigo 205º do Código Penal ('O procedimento criminal depende da queixa') para todos os tipos legais de crime de abuso de confiança, qualquer que seja o valor da coisa móvel apropriada, esquecem eles que o legislador, na liberdade de conformação da lei à realidade que lhe assiste, pode qualificar como públicos estes ou aqueles tipos legais de crimes, a partir da consideração dos bens jurídicos a proteger, aqui o património como valor ainda eminentemente pessoal
(e se a expressão de valor tem a ver com a avaliação - e sua grandeza - da coisa móvel apropriada, é porque, quanto maior ela for, mais se indicia 'um grau de ofensividade mais acentuado do bem jurídico protegido', na linguagem do acórdão recorrido).
Como o Tribunal Constitucional tem constantemente afirmado, e pode para aqui transpor-se, 'o juízo sobre a necessidades do recurso aos meios penais
[compreendendo-se nessa necessidade a qualificação de determinados crimes como públicos] cabe, em primeira linha, ao legislador, (...)', sendo que a 'limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresenta como manifestamente excessiva' (cfr. acórdão nº 274/98, publicado no Diário da República, II Série, nº 271, de 23 de Novembro de 1998, onde se lê que 'tem a doutrina penalista procurado fundar a necessidade da incriminação em categorias ou princípios como o da dignidade penal da conduta sancionada ou da carência de tutela penal, ou em ideias de sistema funcional, nomeadamente a da exigência racional de fazer penetrar as decisões de valor político-criminal no sistema do direito penal', acrescentado-se depois: 'A partir da exigência de necessidade da pena e do próprio carácter fragmentário, instrumental ou simbólico da tutela penal, sustenta-se na doutrina penalista que o direito penal só pode intervir para assegurar uma protecção, necessária e eficaz, dos bens jurídicos fundamentais, a ponto de se afirmar que do disposto no nº 2 do art. 18º da Constituição 'decorre a proibição da intervenção do direito penal ao serviço de finalidades transcendentes e moralistas' '). Com o que não se mostram violadas as normas constitucionais apontadas pelos recorrentes, nem quaisquer outras normas ou outros princípios da Lei Fundamental.
9. Termos em que, DECIDINDO, não se toma, em parte, conhecimento do recurso, negando-se-lhe provimento, noutra parte, e condenam-se os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta, por cada um. Lisboa, 5 de Abril de 2000 Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa