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Proc. nº 22/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
O CF... instaurou, no Tribunal Judicial da comarca dessa cidade, acção executiva contra Companhia de Seguros I... e C..., Lda.. Na sequência do requerido, foi proferida decisão, no 3º Juízo Cível do Funchal, que rejeitou liminarmente a execução com fundamento na inexistência de título executivo, assente em diploma que recusou aplicar o Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M, de 22 de Março, por o considerar inconstitucional. A magistrada do Ministério Público competente, em face do assim decidido, interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Recebido o recurso, tão só alegou a entidade recorrente que conclui assim:
'1º- Por força do estabelecido, nomeadamente, na Lei de Bases da Saúde, constitui matéria de interesse específico regional a referente à organização e funcionamento dos serviços de saúde, nela se compreendendo o estabelecimento da disciplina procedimental adequada para a cobrança das obrigações decorrentes da prestação de cuidados de saúde, por esta se mostrar funcionalmente conexionada com a eficácia e funcionamento de três serviços regionalizados.
2º- As competências regulamentares dos Governos regionais estão circunscritas à estrita execução dos diplomas legislativos regionais, não podendo sob pena de inconstitucionalidade orgânica, um decreto regulamentar regional decidir, em termos inovatórios, sobre a extensão à Região de disciplina instituída no ordenamento nacional, mediante decreto-lei, comportando a criação de um título executivo administrativo.'
O Ministério Público propugna, assim, que se confirme o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida, se bem que por fundamento em parte diverso do invocado. Cumpre decidir.
II
1. - O Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, veio regular a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde (cfr. o artigo 1º), e, no desenvolvimento desse objectivo, constatando-se os 'insatisfatórios resultados' obtidos pelo diploma à data vigente - o Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril - mercê da sujeição dessas dívidas a um regime de prescrição presuntiva de prazos muito curtos e da morosidade da tramitação de uma acção declarativa que poderia tornar inútil uma sentença de condenação face à pretendida efectiva cobrança dos créditos, criou-se um título executivo, com a atribuição de fé pública às declarações de débito provenientes das instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, assim se dispensando o prévio reconhecimento ou declaração do crédito, relegando para os embargos de executado a dirimição do conflito que porventura exista acerca da obrigação exequenda (cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 760/95 e
761/95, publicados no Diário da República, II Série, de 2 de Dezembro de 1996).
2.1. - O Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M, de 22 de Março, editado pelo Governo Regional da Região Autónoma da Madeira, pretendeu aplicar o sistema do Decreto-Lei nº 194/92 à cobrança de dívidas às instituições e serviços integrados no respectivo Serviço Regional de Saúde. Lê-se, a este respeito, na curta nota preambular:
'Através do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, o Governo da República aprovou o regime de cobrança de dívidas às instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, regime que pretende garantir uma maior eficácia e rapidez na cobrança daquelas. Considerando que as razões justificativas da adopção do novo regime se verificam igualmente na Região Autónoma da Madeira, no âmbito do Serviço Regional de Saúde, há que estender o regime aprovado por aquele diploma à ordem jurídica regional'.
Deste modo, invocando o disposto no Decreto-Lei nº 391/80, de 3 de Setembro, nos artigos 17º e 21º do Decreto Legislativo Regional nº 21/91/M, de 7 de Agosto, no artigo 49º da Lei nº 13/91, de 5 de Junho, e no artigo 229º, nº 1, da Constituição, aquele Governo regional decretou o seguinte, como Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M:
'Artigo 1º - É aplicado à cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira o disposto no Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro. Artigo 2º - O presente diploma entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.'
2.2. - Ora, no caso sub judice, o CF... cuidou do atendimento, assistência e tratamento do condutor de um veículo automóvel sinistrado, propriedade da segunda executada que transferira a responsabilidade civil para com terceiros, por acidente de viação, por contrato de seguro celebrado com a primeira executada. Munido de certidão emitida pelos respectivos serviços viu, no entanto, frustrado o seu intento face ao entendimento professado pelo magistrado recorrido que não deu seguimento à execução, recusando a aplicação daquele diploma legal regulamentar regional (mais concretamente, o seu artigo 1º). A decisão recorrida fundamentou-se, para o efeito, na inconstitucionalidade advinda da inexistência de interesse específico regional para uma norma como a desse artigo 1º que, adoptando na Região o regime estabelecido no Decreto-Lei nº
194/92, confere força executiva às certidões emitidas pelo Serviço Nacional de Saúde. Ponderou-se, nomeadamente, a este propósito, em síntese:
a) o legislador regional deve considerar, atentas as normas constitucionais que prevêem as competências legislativas estaduais e regionais, se a matéria em causa é ou não reserva dos órgãos de soberania (pois, se o for, não pode haver lei regional), está ou não elencada no estatuto da Região, para onde remete o proémio do nº 1 do artigo 227º da CR (de forma a se poder buscar uma ajuda na definição do interesse específico, já dada pelo novo artigo 228º), se tal matéria está ou não tratada pelo diploma regional em função de um objecto específico ou peculiar da região justificativo de tratamento especial e se o diploma regional colide ou não, objectivamente, com os princípios fundamentais das leis gerais da República (definidos hoje no artigo 112º, nº 5, da CR, e, anteriormente, no artigo 115º, nº 4) previamente existentes e que disponham sobre o mesmo âmbito material; b) a criação de títulos executivos não integra reserva de lei estadual mas impõe a verificação de um limite positivo ao poder legislativo regional, que é o interesse específico da matéria legislada para a Região Autónoma que, no entanto, não se verifica no caso: inexistem quaisquer características ou problemas especiais, por parte da Região Autónoma da Madeira, que lhe permita ou permitisse inovar legislativamente nesta matéria; c) assim sendo, porque estão em causa competências do Estado contra competências da Região Autónoma, esta, ao legislar nos termos em que o fez, invadiu a esfera da competência legislativa do Estado, o que constitui inconstitucionalidade formal e orgânica que, por violar uma norma constitucional de fundo, se convola em inconstitucionalidade material; d) sendo certo que, de qualquer modo, muito menos competência legislativa tem o Governo Regional, apenas dotado de poderes executivos e regulamentares, estes dirigidos aos diplomas legislativos regionais. Vejamos se deve acompanhar-se este juízo de inconstitucionalidade.
3.1. - Como se deixou registado, a iniciativa normativa do Governo Regional da Madeira invoca a autoridade habilitante de vários diplomas, para além da genérica convocação do nº 1 do artigo 229º da CR (a que corresponde hoje o nº 1 do artigo 227º), sobre a competência das Regiões Autónomas no plano legislativo regulamentar [ter-se-á pretendido aludir à alínea d) do preceito, nos termos do qual compete às regiões autónomas 'regulamentar a legislação regional']. Assim, cita-se o disposto no Decreto-Lei nº 391/80, de 3 de Setembro, cujo artigo 10º confere competência ao Governo Regional 'para a orientação política referente aos sectores da saúde e segurança social na área da região', enquanto o artigo 2º lhe confere os poderes de direcção e tutela que o Ministro dos Assuntos Sociais exercia sobre os serviços periféricos e instituições dessa Região. Mencionam-se, igualmente, os artigos 17º e 21º do Decreto Legislativo Regional nº 21/91/M, de 7 de Agosto, diploma que estabelece o Estatuto do Sistema de Saúde da Região Autónoma da Madeira, e, nos preceitos invocados, cuida do financiamento do Serviço Regional de Saúde, assegurado pelo Orçamento da Região e pelas receitas celebradas nos serviços e estabelecimentos, 'nos termos da lei'
(artigo 17º, nº 1). Refere-se, por último, o disposto no artigo 49º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, cuja alínea d) atribui ao Governo regional competência para
'elaborar decretos regulamentares regionais, as portarias e os regulamentos em geral, necessários à execução dos decretos legislativos e ao bom funcionamento da administração da Região'.
3.2. - Pode dizer-se que as medidas normativas convocadas e, nomeadamente, a sindicada, entroncam, todas elas, na Lei nº 48/90, de 24 de Agosto - a Lei de Bases da Saúde - que, ao prescrever o âmbito nacional da política de saúde, não deixou de consignar que nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira essa política é definida e executada pelos órgãos de governo próprio, os quais 'devem publicar legislação própria em matéria de organização, funcionamento e regionalização dos serviços de saúde' (Base VIII). O Serviço Regional de Saúde, por conseguinte, como elemento do Sistema Regional de Saúde, prossegue fins que pressupõem uma organização e funcionamento próprios, no âmbito da regionalização autorizada pela Lei de Bases da Saúde. De resto, e em harmonia com o texto constitucional então em vigor, estatuía-se na alínea c) do nº 1 do artigo 229º da CR competir às Regiões Autónomas desenvolver, em função do interesse específico das regiões, as leis de bases em matérias não reservadas às competências da Assembleia da República, designadamente as relativas às bases do serviço nacional de saúde [cfr. remissão para a alínea f) do nº 1 do artigo 168º da CR e a alínea c) do nº 1 do artigo
29º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Lei nº 13/91, de 5 de Junho]. Ora, como, observa, nas suas alegações, o Ministério Público, a matéria do diploma em causa, atinente à forma e eficácia da cobrança de débitos aos serviços nacional ou regionais de saúde, embora esteja ligada estruturalmente à
área do processo civil, pois articula-se com a criação de um título executivo administrativo, está, 'de um ponto de vista funcional, ligado à organização do serviço regional de saúde, já que o respectivo funcionamento está naturalmente conexionado com a cobrança efectiva e em tempo útil dos cuidados de saúde prestados'. Admitindo, assim, que a qualificação prevalecente da matéria em causa não tem de ser, para este efeito, a que diz respeito ao processo civil, dir-se-á que a solução legislativa adoptada não implica, de qualquer modo, com a conceituação de interesse específico que a competência legislativa regional tem, constitucionalmente, de acautelar: a mencionada solução não só se integra em matéria cometida ao poder normativo regional como, ainda, subentende uma peculiariedade de tratamento já então reconhecida na Região Autónoma da Madeira, a justificar uma disciplina própria. Com efeito, a própria Lei de Bases da Saúde admite que, em matéria de organização, funcionamento e regionalização dos serviços de saúde, as Regiões Autónomas tenham iniciativa regulamentar, sem dúvida que de harmonia com as respectivas características especiais. E, a esta luz, parece indubitável que dispor quanto à forma e à eficácia da cobrança de débitos aos serviços regionais de saúde enquadra-se nos parâmetros do financiamento desses mesmos serviços, na medida em que se trata de matéria que, ao conferir força executiva a documentos emitidos por esses serviços, está naturalmente relacionada, como já se salientou, com a cobrança efectiva e em tempo útil dos cuidados de saúde prestados. Em última análise, repercute-se na política nacional de saúde, na respectiva precipitação regional e insere-se na filosofia gestionária que inspirou o Decreto-Lei nº 194/92.
4. - O problema não reside na solução encontrada que, aliás, se limita a adoptar a disciplina jurídica inovatoriamente introduzida pelo diploma de 1992, como lei geral da República, de modo a aplicar-se o regime criado por esse texto legal para a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde à cobrança das dívidas contraídas perante as instituições e serviços públicos pertencentes ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira. A questão coloca-se na medida em que o meio utilizado para o efeito - intervenção do Governo Regional por via do decreto regulamentar - não se compadece com o que a Constituição, então, preceituava, nas disposições conjugadas dos artigos 234º, nº 1, e 229º, nº 1, alínea c), mercê das quais o Governo Regional apenas detém competência para regulamentar a legislação regional. Assim, podia o Governo Regional utilizar o decreto regulamentar relativamente à aplicação do Estatuto do Sistema de Saúde da Região aprovado pelo Decreto Legislativo Regional nº 21/91/M, já citado, de acordo com o seu artigo 21º, nº
1, 'tendo em conta as adaptações impostas pelo condicionalismo próprio da Região Autónoma da Madeira'. Na medida em que, no entanto, não se limita a executar um diploma legislativo regional mas a ordenar a aplicação na Região do preceituado inovatoriamente, em decreto-lei, quanto à forma de cobrança de determinadas dívidas - a estender à Região o preceituado nesse decreto-lei - a iniciativa governamental regional excedeu a competência regulamentar própria e invadiu a da Assembleia Legislativa Regional, com violação do disposto nos preceitos constitucionais citados. Na verdade, e como observa o magistrado recorrente, circunscrita que se encontra a competência regulamentar dos Governos Regionais à estrita execução dos diplomas legislativos regionais, não pode um decreto regulamentar regional, sob pena de inconstitucionalidade orgânica, decidir, em termos inovatórios, sobre a extensão à Região de disciplina instituída no ordenamento nacional mediante decreto-lei, comportando a criação de um título executivo administrativo. No mesmo sentido pronunciou-se este Tribunal, recentemente, no acórdão nº
305/99, ainda inédito. III Em face do exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 234º, nº 1, e
229º, nº 1, alínea c), da Constituição da República, na versão decorrente da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, a norma constante do artigo 1º do Decreto Regulamentar Regional nº 6/93/M, de 22 de Março; b) em consequência, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 26 de Maio de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa