Imprimir acórdão
Proc. nº 317/99
1ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. Em acção emergente de acidente de trabalho que correu os seus termos no Tribunal de Trabalho de Vila Nova de Famalicão e de que resultou a morte do sinistrado C..., foram os RR. A... e mulher condenados, para além do mais, a pagar uma pensão anual vitalícia aos AA. J... e mulher, pais do sinistrado, bem como uma pensão temporária a uma filha menor dos AA., irmã do mesmo sinistrado.
Notificados para prestarem caução, no montante de Esc. 8.560.335$00, em conformidade com o disposto no artigo 70º do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto, vieram os RR. requerer que aquela prestação fosse efectuada através de fiança pessoal, indicando logo os fiadores. Quer o Ministério Público, quer os AA. se opuseram à pretensão dos réus.
O requerimento foi indeferido pelo juiz, por o nº 2 do referido artigo 70º do Decreto nº 360/71 não prever a fiança pessoal como um dos modos de prestar caução, quando estejam em causa pensões por acidentes de trabalho.
2. Inconformados, os RR. recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, onde lhes foi negado provimento ao agravo.
Voltaram, então, os RR. a interpor recurso, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando que deveriam ser admitidos, no caso, os meios de prestação de caução consignados no artigo 623º, nºs 1 e 2, do Código Civil, sob pena de não estar «respeitado o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei» e, consequentemente, o preceito do artigo 70º ser «manifestamente inconstitucional».
Todavia, o STJ, por acórdão de 14 de Abril de 1999, negou igualmente provimento ao recurso.
3. É desse acórdão que vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 70º, nº 2, do Decreto nº 360/71, quando interpretada no sentido de excluir a possibilidade de prestação de caução através de fiança pessoal.
Nas suas alegações, os recorrentes, tendo em vista que o artigo
632º, nºs 1 e 2 do Código Civil prevê que a caução possa ser prestada por fiança pessoal, entendem que «estão a ser descriminados e tratados com notória desigualdade em relação a quaisquer outros obrigados civis, que tenham, ou pretendam, de prestar caução fora do âmbito do direito do trabalho», pelo que
«está a lei a tratar o mesmo problema – prestação de caução – com dois pesos e duas medidas, quando a intenção do legislador é muito mais abrangente e coincidente no seu objectivo teleológico, ou seja, quer num caso, quer no outro, a intenção de assegurar à vítima ou aos lesados o recebimento daquilo a que têm direito ou o cumprimento da obrigação a que outrem para com eles está comprometido».
E prosseguem:
Acresce ainda que tal interpretação fere a unidade do sistema jurídico português, segundo as regras de hermenêutica contidas no art. 9º do C. Civil.,
E consequentemente fere os Princípios da Soberania e da Legalidade, quando considerando que aquela tem de ser exercida segundo as formas previstas na Constituição,
E a validade desta da sua conformidade com a Constituição.
Por outro lado o normativo em causa ao não permitir que os recorrentes prestem caução por fiança pessoal quando outros obrigados civis o podem fazer livremente, está a ferir o Princípio da Universalidade, já que todos os cidadãos gozam dos direitos consignados na Constituição.
E o Princípio da Igualdade, já que todos os cidadãos são iguais perante a lei, quando é certo que a assistência e justa reparação às vítimas de acidentes de trabalho, como é o caso, só poderá ser garantida com a prestação por fiança pessoal, única garantia que os recorrentes podem facultar no apoio aos direitos dos trabalhadores, constitucionalmente consagrados.
Concluem, pois, os recorrentes pela inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 70º, nº 2, do Decreto nº 360/71, na interpretação impugnada.
4. Nas suas contra-alegações, os recorridos assinalam que o legislador laboral, «entre as modalidades de prestação de caução previstas na lei contratual civil (onde a liberdade das partes impera)», «optou por seleccionar as que lhe parecem invulgarmente seguras para assegurar o pagamento», tendo em conta a necessidade de garantir «condignamente os direitos dos lesados em sede de acidentes de trabalho», ou seja, em «situações de interesse público».
E sublinham ainda:
Dizer que com isto se discrimina em relação aos obrigados civis, tratando-as com notória desigualdade, leva, em última e inadvertida análise, a considerar que toda a regulamentação especial em sede de Direito do Trabalho viola o princípio da Igualdade porque a ela apenas estão sujeitas as entidades patronais e não todos os demais obrigados.
Finalmente, os recorridos concluem que a norma questionada tem
«suficiente justificação racional, face às finalidades que prossegue, e como tal, não pode ser considerada inconstitucional».
Cumpre, agora, decidir.
II – FUNDAMENTOS
5. O artigo 70º do Decreto nº 360/71 estabelece que «as entidades patronais são obrigadas a caucionar o pagamento das pensões de acidentes de trabalho e doenças profissionais, em que tenham sido condenadas, ou a que se tenham obrigado por acordo homologado, quando não haja ou seja insuficiente o seguro». E o nº 2 do mesmo preceito acrescentava originariamente:
A caução pode ser feita por depósito de numerário, títulos da dívida pública, ou por afectação ou hipoteca de imóveis.
Este nº 2 do artigo 70º passou a ter nova redacção, que lhe foi dada pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 283/92, de 19 de Dezembro.
É, hoje, assim, do seguinte teor a norma cuja constitucionalidade cabe apreciar:
A caução pode ser feita por depósito de numerário, títulos de dívida pública, afectação ou hipoteca de imóveis, garantia bancária ou seguro de caução.
6. A questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes centra-se na eventual violação do princípio da igualdade (a ela, no fundo, se reconduzem outras invocadas inconstitucionalidades), por a norma questionada, não admitir a fiança pessoal, ao invés do que se dispõe no artigo 623º, nº 2, do Código Civil, que a admite quando a caução não possa ser prestada por outro meio e desde que o fiador renuncie ao benefício da excussão.
Ora, a mera existência de regimes diversos relativamente aos meios de prestação da caução – no domínio civil e no domínio laboral – não basta para que se possa concluir pela existência de uma discriminação constitucionalmente proibida; é ainda necessário demonstrar que esses regimes diversos incidem sobre realidades da mesma natureza, nada havendo que justifique racionalmente um tratamento diferenciado.
Como este Tribunal tem afirmado constantemente, a fiscalização da constitucionalidade não pode pôr em causa a liberdade de conformação do legislador, o qual «goza de uma considerável margem de discricionariedade - não de arbitrariedade -, proveniente do mandato democrático que lhe foi conferido»
(cfr. Acórdão nº 468/96, Diário da República, II Série, de 13 de Maio de 1996). Por isso, a aplicação do princípio da igualdade pelo Tribunal tem sido prudentemente rodeada de muitos cuidados, para não conduzir à invasão da esfera de escolhas políticas, reservada ao legislador.
Assim, o Tribunal tem constantemente circunscrito a sua intervenção nesta matéria ao controlo de um limite externo do poder de conformação do legislador, traduzido na proibição do arbítrio, acentuando que a liberdade de conformação legislativa não pode ser atingida, cabendo ao legislador definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida a tratar igual ou desigualmente, dentro dos limites constitucionais (cfr. Acórdão nº 157/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., pág. 703). E se, em geral, se tem identificado a proibição do arbítrio com a ausência de fundamento material bastante para o tratamento diferenciado (cfr. Acórdão nº 39/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pág. 233), a verdade é que, enquanto nalguns casos o Tribunal parece exigir que as diferenciações sejam positivamente fundamentadas, segundo um critério de merecimento admitido, explícita ou implicitamente, pela Constituição (como no já citado Acórdão nº
468/96), já noutros casos se entendeu, porém, que a proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade, não podendo o juiz controlar se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa, sob pena de se pôr em causa a liberdade de conformação do legislador e a discricionariedade legislativa (cfr. Acórdão nº
186/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º vol., pág. 383; e Acórdão nº
349/91, ibidem, 19º vol., pág. 507).
Seja como for, no caso vertente, mesmo seguindo o percurso mais exigente relativamente ao legislador, haverá sempre que concluir pela não ocorrência de violação do princípio da igualdade, consignado no artigo 13º da Constituição.
7. Na verdade, a existência de um «domínio excepcional da responsabilidade civil» (Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho – Reflexões e notas práticas, Rei dos Livros, Lisboa, 1984, pág. 191), no que aos acidentes de trabalho diz respeito, aparece como plenamente justificada, tendo em consideração a dimensão social de que se reveste a regulação jurídica das matérias laborais, à luz da necessidade de estabelecer regimes que assegurem uma adequada protecção dos trabalhadores, designadamente perante as respectivas entidades patronais.
Essa especial e particular protecção jurídica dos trabalhadores foi-se efectuando exactamente através da progressiva autonomização dos institutos e regimes próprios do Direito Laboral relativamente aos paralelos institutos e regimes do tradicional Direito Civil, com particular expressão no regime dos contratos – onde se vieram a consagrar, no âmbito do Direito do Trabalho, significativos entorses à liberdade contratual, para além do princípio do favor laboratoris.
Ora, se não se afigura possível contestar, em geral, face à Constituição, a adopção de políticas legislativas orientadas em ordem à protecção dos direitos dos trabalhadores, também não se lobriga como seja possível, com base no princípio da igualdade, questionar a norma em apreço, por estabelecer, relativamente a créditos emergentes de acidentes de trabalho da responsabilidade da respectiva entidade patronal, um regime de caucionamento mais cauteloso que o previsto na lei civil.
8. Desde logo, a distinção estabelecida pelo legislador encontra credencial bastante no disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 59º da Lei Fundamental, onde se reconhece, entre os direitos dos trabalhadores, o direito
«a assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho».
Com efeito, esta particular referência do texto constitucional legitima seguramente o legislador a adoptar as soluções legislativas que julgue mais apropriadas para garantir o efectivo e justo ressarcimento dos trabalhadores que tenham sido vítimas de acidentes de trabalho. E, entre essas medidas, não repugna admitir que se encontre o estabelecimento de um mais rigoroso regime do caucionamento das responsabilidades do que o vigente na legislação atinente às obrigações civis.
Nesta conformidade, não se vê que a norma impugnada padeça do vício de inconstitucionalidade que lhe foi assacado.
III - DECISÃO
9. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15
(quinze) unidades de conta. Lisboa, 21 de Março de 2000 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa