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Processo n.º 231/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Em 22 de Setembro de 1994, J... apresentou na Câmara Municipal de Lisboa,
'nos termos e para os efeitos dos artigos 125º e segs. do Código de Processo Tributário', a impugnação de uma 'compensação' no valor de 9.165.960$00, fixada por aquela Câmara pela aprovação de um projecto de obras num imóvel de que era proprietário. Tal 'compensação por aumento de área' foi liquidada com base no n.º 4 do Despacho n.º 166/P/84, publicado no Diário Municipal n.º 14524, de 30 de Novembro de 1984. Remetidos os autos ao Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, veio este, por sentença de 11 de Março de 1997 do seu 5º Juízo, a julgar procedente tal impugnação, declarando nula 'a liquidação da compensação por aumento de
área/mais valia', invocando, designadamente, e no que ora importa, a
'inconstitucionalidade material e orgânica' do referido Despacho n.º 166/P/84.
2. Recorreu a Representante da Fazenda Pública para o Supremo Tribunal Administrativo, concluindo desta forma:
'- Em 3/04/89 o recorrido requereu na CML a aprovação de um projecto de obras para um imóvel sua propriedade;
- O recorrido obteve a aprovação do projecto;
- O recorrido tomou conhecimento de que, pelo aumento e área, era devida a importância de 9.165.960$00 a título de compensação, propondo-se a efectuar o seu pagamento em prestações pela CML; [sic];
- O recorrido pagou a primeira prestação;
- A correspectividade entre a obtenção do aumento da área e a importância que a CML considerou adequada assume uma natureza obrigacional;
- O direito à exigência da compensação em causa emerge de uma relação contratual;
- A circunstância de as regras de cálculo da compensação constarem de despacho mais não é do que a expressão de um critério;
- A compensação por aumento de área consubstancia a contrapartida da conveniência auferida pelo ora recorrido pelo aproveitamento da área;
- Não ocorre imposição à margem da lei de qualquer prestação tributária;
- A douta sentença recorrida violou os artigos 405º e 406º do CC.' Apesar de o Magistrado do Ministério Público no Supremo Tribunal Administrativo se ter, como no Tribunal Tributário de 1ª Instância, pronunciado em sentido favorável ao particular, veio a 2ª Secção daquele Supremo Tribunal a decidir, por Acórdão de 28 de Janeiro de 1998, que não fora cumprido o regime do n.º 2 do artigo 22º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro 'que condiciona o exercício do direito ao procedimento judicial à reclamação/impugnação da liquidação ‘perante os órgãos executivos’ autárquicos, só posteriormente à decisão sobre tal procedimento gracioso se abrindo a via judicial, a tomar em prazo designado no art.º 123º do CPT.', pelo que concedeu provimento ao recurso, ainda que por diferente fundamentação, revogando a decisão recorrida e julgando improcedente a impugnação.
3. Inconformado, veio J... interpor recurso para o Tribunal Constitucional e também arguir a nulidade do mesmo Acórdão por as questões prévias que serviram de fundamento à decisão do Supremo Tribunal Administrativo (a da não verificação de uma condição de admissibilidade do recurso e, em segunda linha, a da sua tempestividade) terem sido 'objecto de conhecimento e decisão expressa no Tribunal Tributário de 1ª Instância, por sentença nessa parte transitada em julgado', invocando também que a interpretação do artigo 22º da Lei n.º 1/87
(Lei das Finanças Locais) feita pelo tribunal ad quem não se conformava com o disposto nos artigos 20º e 268º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa,
'violando, designadamente, o direito à tutela jurisdicional efectiva que aqueles preceitos consagram', para além de não corresponder à realidade dos factos. Recusando tomar conhecimento destas questões, por não darem origem a nulidade de que ainda pudesse conhecer, o Acórdão da 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de Fevereiro de 1999 considerou não se registar também o invocado excesso de pronúncia, porquanto a 2ª parte do n.º 2 do artigo 660º do Código de Processo Civil só limita o Tribunal ao conhecimento das questões que as partes tenham suscitado quando não se trate de questões de conhecimento oficioso, como o eram as da tempestividade do recurso e da verificação do requisito de procedimento administrativo prévio. Em 6 de Março seguinte foi admitido o recurso de constitucionalidade.
4. No Tribunal Constitucional, o recorrente, em alegações oportunamente apresentadas, concluiu do seguinte modo:
'1ª Em alegado conhecimento oficioso em 2ª instância, do artigo 22º,2 da Lei n.º
1/87, o Venerando STA extraiu o sentido de que o recurso contencioso fiscal impunha aos interessados a prévia dedução, autónoma, de impugnação graciosa.
2ª Com esta interpretação, o douto Acórdão violou direitos fundamentais do recorrente, análogos a direitos, liberdades e garantias, com consagração expressa nos artigos 20º e 268º/4 da C.R.P. Tanto mais que
3ª Com as revisões constitucionais de 1989 e 1997, os preceitos constitucionais do artigo 20º e 268º/4, claramente passaram a consagrar que quaisquer actos administrativos, incluindo os de natureza tributária, são passíveis de recurso ou impugnação, sempre que lesem os direitos subjectivos ou os interesses legítimos dos administrados – tutela jurisdicional efectiva.
4ª E não é lícito o estabelecimento de quaisquer limites ou restrições que não se justifiquem pela tutela de outro interesse constitucionalmente protegido.
5ª O douto Tribunal deveria ter interpretado a norma do artigo 22º/2 da Lei n.º
1/87, em conformidade com a Constituição, não obstando ao conhecimento do mérito da causa, de acordo com o princípio pro actione. Mas,
6ª Mesmo que o preceito legal em crise tivesse sido interpretado de uma forma plausível e constitucionalmente adequada, o que se admite sem conceder, sempre se diria que o ora recorrente cumpriu a utilidade que o preceito pretende salvaguardar – reclamação prévia à CML. Porque,
7ª O recorrente entregou a petição de recurso na CML para que esta a remetesse ao tribunal competente, não sem que previamente agravasse ou desagravasse a decisão consubstanciada no acto administrativo lesivo de liquidação de imposto criado à margem da legalidade tributária.' Por parte da recorrida não foi apresentada qualquer alegação dentro do prazo legal. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5. Importa, preliminarmente, delimitar o objecto do presente recurso de constitucionalidade, uma vez que nas suas alegações o recorrente invoca argumentos que se situam no plano da constitucionalidade e outros que, relevando da aplicação do direito ordinário, não são pertinentes em sede de controlo da constitucionalidade, e também porque na primeira decisão proferida nos autos se suscitou uma questão de constitucionalidade diferente da que é ora trazida à apreciação deste Tribunal – enquanto aí se decidiu pela inconstitucionalidade material e orgânica do Despacho n.º 166/P/84, do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o que unicamente pode agora ser apreciado é a conformidade constitucional do n.º 2 do artigo 22º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro (Lei da Finanças Locais, entretanto substituída pela Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto), tal como foi interpretado na decisão recorrida, ou seja, no sentido 'de que o recurso contencioso fiscal impunha aos interessados a prévia dedução, autónoma, de impugnação graciosa.' E muito embora aquela norma do artigo 22º, n.º 2, da Lei n.º 1/87, na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 470/88, de 19 de Dezembro ('As reclamações e impugnações dos interessados contra a liquidação e cobrança de taxas, mais-valias e demais rendimentos gerados em relação fiscal são deduzidos perante os órgãos executivos das autarquias locais, com recurso para o tribunal tributário de 1ª instância territorialmente competente') contenha, pelo menos, um outro segmento, o que há-de ser apreciado por este Tribunal é, tão só, se o sentido ou dimensão em que a norma foi aplicada é, ou não, compatível com a nossa Lei Fundamental.
6. Isto assente, há-de ainda apurar-se, preliminarmente, se o Tribunal pode conhecer de tal questão, já que ela só foi suscitada no requerimento de arguição de nulidade do Acórdão de 28 de Janeiro de 1998 do Supremo Tribunal Administrativo, e entre os requisitos específicos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, como foi o caso, se inclui a obrigação de a suscitar durante o processo, isto é, de suscitá-la em termos, e em tempo, de o tribunal recorrido se poder pronunciar sobre ela, o que pressupõe que tal ocorra, em princípio, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir – ver, entre outros, os Acórdãos n.ºs 439/91, 355/93 e
1144/96, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 24 de Fevereiro de 19892, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 25º (1993), págs.
829 e segs., e Diário da República, II Série, de 11 de Fevereiro de 1997. Uma vez que o requerimento de arguição de nulidades não é já, em princípio, momento idóneo para suscitar a questão de constitucionalidade – assim, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 164/92, 181/92 e 169/93, sumariados, os dois primeiros, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 417, a págs. 777 e 783 e segs. e publicado no n.º 424, a págs. 212 e segs., o último – só se poderá conhecer do recurso se o poder jurisdicional do tribunal a quo para conhecer de tal questão se não tiver esgotado com a decisão de 28 de Janeiro de 1988, ou se o recorrente não teve oportunidade processual para levantar a questão da constitucionalidade antes do momento em que o fez, como se decidiu, entre outros, nos Acórdãos n.ºs 61/92, 263/92, 291/92, e 1124/96, publicados, no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992 (o primeiro) e de 6 de Janeiro de 1997 (o último) e sumariados no Boletim do Ministério da Justiça, n.º
419, págs. 757 e 758 e segs. (o segundo e o terceiro). Ora, como se escreveu na última decisão citada, 'quando a interpretação dos preceitos acolhidos na decisão recorrida for insólita ou inesperada, a ponto de não ser razoável que o interessado a previsse', 'cessam os ónus que recaem sobre as partes de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas susceptíveis de serem aplicadas no processo e, bem assim, de adoptarem a estratégia processual adequada para prevenirem essa possibilidade.' Sucede que a norma do n.º 2 do artigo 22º da anterior Lei da Finanças Locais, já transcrita, só pelo Supremo Tribunal Administrativo foi invocada – e que o foi para excluir a recorribilidade ou impugnabilidade de acto em relação ao qual o Tribunal Tributário de 1ª Instância havia considerado 'inexistirem (…) excepções, nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa'. Pelo que, atenta esta decisão, prima facie se poderia admitir fundamento para dispensar o recorrente do referido ónus de impugnação, tanto mais que este alega que '(m)esmo que o preceito legal em causa tivesse sido interpretado de forma plausível e constitucionalmente adequada (…) o ora recorrente cumpriu a utilidade que o preceito pretende salvaguardar.'
É certo que, sobre se esta última alegação procede, ou não, não cabe a este Tribunal decidir (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 44/85, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, 1985, pág. 408: 'para o Tribunal Constitucional a norma de direito infra-constitucional que vem questionada no recurso é um dado; cabe-lhe apenas verificar se essa norma é ou não inconstitucional. Saber se essa norma era ou não aplicável ao caso, se foi ou não bem aplicada – isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional'). Mas certo é, igualmente, que, no caso do lugar paralelo mais próximo – o de impostos cobrados pelas autarquias, também directamente contemplados na previsão da mesma norma impugnada perante este Tribunal –, o Decreto-Lei n.º 163/79, de
13 de Maio (mantido em vigor por força do n.º 2 do artigo 34º do Decreto-Lei n.º
98/84, de 29 de Março, e do n.º 2 do artigo 29º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro) impõe que as reclamações ordinárias e extraordinárias sejam deduzidas perante a câmara municipal (n.º 1) e que as impugnações sejam 'dirigidas aos tribunais das contribuições e impostos e apresentadas perante o chefe da secretaria da câmara municipal' (n.º 2). Face a este paralelo, bem como à anterior decisão da 1ª instância, deve admitir-se que a convocação do n.º 2 do artigo 22º da anterior Lei das Finanças Locais pelo Supremo Tribunal Administrativo, no sentido e para os efeitos verificados no processo, se apresenta como inesperada para o recorrente. Uma vez que o prévio esgotamento de recursos e a aplicação da norma na decisão recorrida não se afiguravam duvidosas, conclui-se que estão, assim, preenchidos todos os requisitos específicos de admissibilidade do recurso, tendo como objecto a apreciação da constitucionalidade – e não do mérito ou correcção em si mesma da norma ou da sua aplicação no caso concreto, e independentemente da questão de constitucionalidade – do n.º 2 do artigo 22º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro (anterior Lei da Finanças Locais, entretanto substituída pela Lei n.º
42/98, de 6 de Agosto), interpretada no sentido 'de que o recurso contencioso fiscal impunha aos interessados a prévia dedução, autónoma, de impugnação graciosa'.
7. Deixou-se indicado supra (n.º 5) o sentido em que a norma impugnada foi aplicada, dele resultando que o que está em causa é saber se é constitucionalmente legítima a imposição de impugnação graciosa antes de se poder recorrer à impugnação contenciosa. Se o for, a decisão recorrida não poderá merecer agora qualquer censura, ainda que permita a subsistência de acto administrativo eventualmente sustentado em normas inconstitucionais, conforme se decidiu, no caso, no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, relativamente a outras normas, cuja apreciação não se situa no âmbito do presente processo. Se não for constitucionalmente legítima tal imposição, a decisão do Supremo Tribunal Administrativo terá de ser reformada, implicando o subsequente julgamento de mérito e, em caso de aplicação ou desaplicação das normas constantes do referido Despacho n.º 166/P/84, abrindo a possibilidade de novo recurso de constitucionalidade tendo a apreciação de tais normas por objecto. Vejamos então.
8. Ainda que – com o sentido impugnado ou noutro – a conformidade constitucional da norma do n.º 2 do artigo 22º da Lei das Finanças Locais não tenha, ainda, sido objecto de indagação por parte deste Tribunal, a questão da subordinação da impugnação contenciosa de actos administrativos à necessária interposição prévia de recurso hierárquico foi já discutida diversas vezes, quer antes, quer depois da última revisão constitucional, a propósito, designadamente, da norma do n.º 1 do artigo 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos – vejam-se os Acórdãos n.º 9/95, 603/95, 115/96, 499/96, e 425/99, publicados, os três primeiros, no Diário da República, II Série, de 22 e 14 de Março de 1995 e de 6 de Maio de 1996, o quarto em Jurisprudência Administrativa, n.º 0, Dezembro de
1996 (com anot. favorável de Vieira de Andrade), e o último ainda inédito. Neste último aresto escreveu-se que a posição do Tribunal anteriormente firmada não carecia de alteração em resultado da revisão constitucional de 1997 e da nova redacção introduzida ao n.º 4 do artigo 268º:
'não se vê que da consagração desta garantia de protecção jurisdicional, dirigida à protecção dos particulares através dos tribunais, e deste direito de impugnação dos actos administrativos lesivos, haja que decorrer a impossibilidade do condicionamento, pelo legislador, de tal recurso contencioso a um recurso hierárquico dos actos administrativos proferidos por órgãos subalternos da Administração – ou, o que é o mesmo, que dela decorra uma obrigatória impugnabilidade jurisdicional imediata desses actos, independentemente da sua reapreciação por órgãos superiores.'
É verdade que, de acordo com o Código de Procedimento e de Processo Tributário
(vigente desde 1 de Janeiro de 2000, nos termos do artigo 4º do Decreto-Lei n.º
433/99, de 26 de Outubro, que o aprovou), os recursos hierárquicos das decisões dos órgãos da administração tributária – incluindo, por força do artigo 7º desse Código, os órgãos das autarquias locais – terão natureza meramente facultativa, salvo disposição em contrário das leis tributárias. Mas com isto não se prova que tal alteração se deva ao cumprimento de um imperativo constitucional e não a mera opção do legislador ordinário pela que lhe parece a melhor solução. Como se escreveu no Acórdão já citado:
'A tutela jurisdicional efectiva dos actos administrativos não resulta, nem inviabilizada, nem, sequer, restringida pela previsão de tal via hierárquica necessária como meio de, em primeira linha, tentar obter a satisfação do interesse do administrado pela revisão do acto administrativo praticado pelo
órgão subalterno da Administração, previamente ao, sempre assegurado, recurso jurisdicional. Trata-se, apenas, de um condicionamento legítimo do direito de recurso contencioso, ficando sempre ressalvada a garantia da tutela judicial em todos os casos concretos.' Na linha da jurisprudência em que o citado Acórdão se insere – a qual, a propósito da norma do n.º 1 do artigo 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, respeita igualmente à questão da subordinação da impugnação contenciosa de actos administrativos à necessária interposição prévia de recurso hierárquico, como no presente caso –, há, pois, que negar provimento ao recurso, não julgando inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 22º da Lei n.º 1/87, de
6 de Janeiro (anterior Lei da Finanças Locais, entretanto substituída pela Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto), interpretado no sentido 'de que o recurso contencioso fiscal impunha aos interessados a prévia dedução, autónoma, de impugnação graciosa.'
III Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC. Lisboa, 23 de Fevereiro de 1999 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido, pois concederia provimento ao recurso, por entender estar ferida de inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 20º, nº 1 e
268º, nº 4 da Constituição, a norma do artigo 22º, nº 2, da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças Locais, entretanto substituída pela Lei nº 42/98, de 6 de Agosto, não se encontrando nesta uma disposição que tenha paralelo na anterior Lei, mandando-se apenas aplicar 'as normas do Código de Processo Tributário, com as necessárias adaptações'), tal como foi interpretada na decisão recorrida, ou seja no sentido 'de que o recurso contencioso fiscal impunha aos interessados a prévia dedução, autónoma, de impugnação graciosa'. Concordando com a delimitação do objecto do presente recurso de constitucionalidade, feita no acórdão, quando nele se diz, face ao sentido em que a norma impugnada foi aplicada, 'que o que está em causa é saber se é constitucionalmente legítima a imposição de impugnação graciosa antes de se poder recorrer à impugnação contenciosa', discordo, todavia, frontalmente, da resposta que é dada quanto ao julgamento de não inconstitucionalidade da norma questionada. E a minha discordância assenta na ideia de atropelo - uma vez mais neste Tribunal, o guardião do respeito que é devido à Constituição - do direito dos administrados à 'tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos', consagrado no nº 4 do artigo 268º, com o texto revisto em 1997, em conjugação com o artigo 20º, nº 1, que proclama o princípio geral da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais.
2. O acórdão arrima-se na 'posição do Tribunal anteriormente firmada', a propósito, designadamente da norma do artigo 25º, nº 1 do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho (LPTA), transcrevendo o acórdão nº 425/99, mas dessa posição tenho sistematicamente divergido, em situações, como é similar a destes autos, em que se esteja perante actos administrativos qualificados como actos verticalmente não definitivos (ou seja, actos que também dependem de uma
'impugnação graciosa antes de se poder recorrer à impugnação contenciosa', para usar a linguagem do acórdão). E essa divergência pode ler-se, por exemplo, na declaração de voto que juntei ao acórdão nº 603/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 63, de 14 de Março de 1996, que aqui dou por integralmente reproduzida e serve para a presente hipótese.
3. Mas há mais, podendo ainda sustentar-se, como sugere José Casalta Nabais, a propósito da mesma norma do artigo 22º, nº 2, da Lei nº 1/87, que 'a interpretação segundo a qual as impugnações judiciais de tais actos estão dependentes de reclamação necessária' briga com 'o princípio da igualdade na sua expressão de princípio de não discriminação que obsta a que os destinatários dos actos tributários das autarquias locais sejam desfavoravelmente discriminados face aos destinatários dos actos tributários da Administração estadual' e com 'o princípio da autonomia local que impede que os órgãos das autarquias locais sejam concebidos como órgãos subalternos e, por conseguinte, carecidos de competência para a prática de actos tributários verticalmente definitivos' (para o mesmo Autor é 'mais do que duvidosa a constitucionalidade da exigência de impugnação administrativa generalizada a todos os actos tributários dos órgãos das autarquias locais, já que a mesma, pelo seu carácter tão amplo, se revela um condicionamento desproporcionado do direito de acesso aos tribunais na expressão de recurso contencioso contra os actos de autoridade' - Cadernos de Justiça Administrativa, nº 17, Setembro-Outubro 1999, pág. 39 e seguintes). E o confronto com o princípio da autonomia local - uma importante conquista do
25 de Abril de 1974, que a Constituição consagra no titulo com a expressão bem impressiva de 'Poder-Local' - está retratado no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (2ª Secção), de 8 de Junho de 1998, anotado concordantemente por aquele Autor, nestes termos:
'As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, cuja legitimidade advém do sufrágio popular, directo e universal - vd. arts. 235º e 239º da CRP. Essa legitimidade política radicada no sufrágio popular tem importantíssimos reflexos nos seus poderes e competências determinando, por exemplo, que as Câmaras Municipais e os seus Presidentes tenham competência própria e exclusiva em muitos domínios, e que, consequentemente, as decisões tomadas nesses domínios não sejam susceptíveis de recurso hierárquico. É, entre muitos outros, o caso da competência dos Presidentes em modificar ou revogar os actos praticados pelos funcionários municipais - vd. art. 53º, nº 2, alínea b), do DL nº 100/84, de
29/3. A natureza político-administrativa das autarquias e dos seus órgãos determina, assim, que muitas das suas decisões só por via judicial possam ser invalidadas. As decisões tomadas pelos órgãos autárquicos são, assim, actos administrativos dotados de força própria, distinta daquela que sustenta os actos da Administração Fiscal, em razão da sua diferente legitimidade, a qual se vem a reflectir no caminho que conduz à sua invalidação' (Cadernos cit. págs. 33 e
34).
4. Dois apontamentos finais para dizer o seguinte:
- o anteprojecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (in
'Reforma do Contencioso Administrativo', Ministério da Justiça, Janeiro de 2000) contém uma disposição paralela à do artigo 25º, nº 1, da LPTA, mas agora conformemente à Constituição, dizendo-se que são 'recorríveis contenciosamente os actos administrativos, entendendo-se como tal os actos expressos ou presumidos que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos' (artigo 18º), o que concretiza em pleno o direito dos administrados à 'tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos'.
- acompanho o entendimento de Vasco Pereira da Silva quando escreve que 'de acordo com as opções constitucionais, passam a ser recorríveis, desde que (e sempre que) sejam lesivos de direitos dos particulares, tanto os actos praticados no termo de um procedimento como os actos preliminares ou intermédios desse mesmo procedimento; tanto os actos praticados pelo superior hierárquico como os dos subalternos; tanto os actos de conteúdo regulador de uma situação jurídica como os de natureza prestadora ou conformadora, que o mesmo é dizer, tanto os actos da Administração Agressiva como os da Prestadora ou da Infra-estrutural' e daí a manifesta inconstitucionalidade das normas 'que afastam a recorribilidade de actos administrativos lesivos que não tenham sido previamente impugnados pela via administrativa (art. 34º da LPTA)' (Cadernos de Justiça Administrativa, nº 1, Janeiro/Fevereiro de 1997, pág. 4). E, em nota, acrescenta:
'Acerca da inconstitucionalidade das normas que estabelecem a exigência de recurso hierárquico necessário poderiam ser ainda invocados muitos outros argumentos adicionais, designadamente, a violação: a) do princípio constitucional da separação entre a Administração e a Justiça
(v. os arts. 114º, 205º e segs., 266º e segs. da CRP), por fazer precludir o direito de acesso ao tribunal em caso de não utilização de um meio administrativo (que não poderá ser outra coisa se não facultativo); b) do princípio constitucional da desconcentração administrativa (art. 267º, nº
2, da CRP), que implica a imediata recorribilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos, sem prejuízo da lógica do modelo hierárquico de organização administrativa, pois o superior continua a dispor de competência revogatória
(art. 142º do CPA); c) do princípio da efectividade da tutela (art. 268º, nºs 4 e 5, da CRP), em razão da preclusão da possibilidade de recurso contencioso, no caso de não interposição prévia de recurso contencioso, no prazo de um mês, o qual, por ser manifestamente curto, poderia equivaler na prática, à inutilização prática da possibilidade de exercício do direito'.
Guilherme da Fonseca