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Proc. nº 450/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Mafra, E... e mulher, M..., intentaram acção de declarativa de simples apreciação, com processo sumário, contra E..., Lda., pedindo a condenação da ré: a reconhecer os autores como rendeiros da fracção autónoma 'DD' do prédio urbano sito na Praça da República, nº 2, freguesia da Ericeira, identificado nos autos, no qual exploram, nessa qualidade, um comércio de 'snack-bar'; a indemnizar os autores, pela quantia a liquidar em execução de sentença, por até à data se ter recusado a reconhecer-lhes tal qualidade.
Tendo a acção sido julgada improcedente, foi pelos autores interposto recurso de apelação. O Tribunal da Relação de Lisboa concedeu parcial provimento ao recurso, condenando a ré a reconhecer os autores como rendeiros do identificado prédio e absolvendo-a quanto ao restante pedido.
Inconformada com a decisão, dela recorreu a ré, tendo o recurso sido admitido como agravo, nos termos do artigo 678º, nº 2, do Código de Processo Civil; invocou como fundamento a violação, pelo acórdão recorrido, do caso julgado formado pelo despacho proferido nos autos que, indeferindo a reclamação por ela deduzida contra a especificação e o questionário, decidira que era aos autores e não à ré que incumbia o ónus da prova; ora, o acórdão da Relação deu razão aos autores por considerar que a ré não provou os factos alegados, o que, em sua opinião, significaria que o tribunal decidiu que a ela compete o ónus da prova.
2. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 12 de Janeiro de 1999
(fls. 128 e seguintes dos presentes autos), considerando não existir contradição entre o despacho do Juiz (que indeferira a reclamação contra a especificação e o questionário) e a decisão da Relação (que se pronunciara em sentido favorável aos autores), negou provimento ao agravo e confirmou o acórdão recorrido.
E..., Lda., arguiu a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 668º [nº 1, alíneas d), c) e b)] do Código de Processo Civil, por entender que o tribunal apreciou questões de não podia tomar conhecimento, e invocando ainda 'contradição entre os seus fundamentos' e falta de fundamentação, pelo que o acórdão não seria 'apenas nulo mas também inconstitucional'.
Tal reclamação foi indeferida, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Março de 1999 (fls. 156 e seguintes).
3. E..., Lda., pretendeu então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, 'nos termos do disposto nos artigos 277 e 280 da Constituição e do disposto no artigo 70º, nº 2, da Lei 28/82', através de requerimento em que concluiu assim:
'18º. Diz-se [...] no artigo 205 da Constituição que as decisões dos Tribunais devem ser fundamentadas.
19º. Há, assim, por parte do acórdão recorrido violação deste preceito constitucional.
20º. Ou se se quiser o Tribunal recorrido aplicou norma inconstitucional na interpretação que deu ao artigo 158 do Código de Processo Civil, nos termos da al. b) do artigo 70 da referida lei 28/82.'
O Conselheiro Relator não admitiu o recurso, por não ter sido invocada durante o processo a inconstitucionalidade do artigo 158º do Código de Processo Civil.
4. E..., Lda., reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional.
5. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando--se no sentido de que, não tendo sido suscitada no processo uma questão de inconstitucionalidade de normas, a presente reclamação deve ser indeferida.
II
6. O fundamento da rejeição do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade foi a não invocação, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma que se pretende que este Tribunal aprecie – a norma do artigo 158º do Código de Processo Civil.
Tendo o recurso que se pretendia interpor fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 – segundo indicação incluída apenas na parte final do requerimento de fls. 163 a 167 –, para que o Tribunal Constitucional dele pudesse conhecer seria necessário que:
- a recorrente tivesse suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende que o Tribunal aprecie;
- essa norma tivesse sido aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade de uma norma só se suscita durante o processo quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão. Além disso, a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada de modo claro e perceptível, isto é, em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para decidir.
7. No caso dos autos, a ora reclamante não suscitou de modo processualmente adequado qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Limitou-se a afirmar, no requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Janeiro de 1999 (requerimento de fls. 143 e seguintes), que:
'42º. [...] o dever de fundamentar as decisões é princípio constitucional como se alcança do artigo 205 da Constituição.
43º. E daí que o acórdão não seja apenas nulo mas também inconstitucional.'
A estas afirmações não pode todavia ser atribuído o sentido de invocação da inconstitucionalidade de qualquer norma de direito infraconstitucional convocada para a decisão da matéria objecto do litígio.
É certo que, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (a fls. 167), a ora reclamante veio suscitar a inconstitucionalidade do artigo 158º do Código de Processo Civil.
Mas, para além de tal invocação ser sempre extemporânea, a verdade é que com ela se pretende impugnar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por falta de fundamentação (em violação da exigência contida no referido artigo 158º do Código de Processo Civil), imputando afinal o vício de inconstitucionalidade
à própria decisão recorrida.
No âmbito da competência do Tribunal Constitucional não cabe obviamente fiscalizar o cumprimento, pelos outros tribunais, dos requisitos legais a que devem obedecer as decisões judiciais.
E, sendo o controlo de constitucionalidade atribuído ao Tribunal Constitucional um controlo normativo, apenas pode incidir sobre normas – conforme os casos, as normas aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade, ou as normas que a decisão recorrida tenha recusado aplicar com fundamento em inconstitucionalidade. As decisões judiciais, em si mesmas consideradas, não podem ser objecto de tal controlo.
8. Não estando verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, há que concluir pelo indeferimento da reclamação.
III
9. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 20 de Outubro de 1999 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa