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Processo n.º 935/98
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. M. S. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de Setembro de 1998 que julgou improcedente o recurso que interpusera do despacho proferido em 5 de Dezembro de 1997, no Tribunal de Círculo e da Comarca de Oeiras, que indeferiu por extemporaneidade o requerimento de abertura de instrução que deduzira em 2 de Dezembro de 1997. Indica como objecto do recurso 'a norma constante no n.º 5 do art.º 283º do C.P.Penal, por violar o constante no n.º 1 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa'. Por não ter indicado no requerimento de recurso 'a peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade' – elemento previsto no n.º 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional –, foi, no tribunal a quo, dada aplicação ao disposto no n.º 5 desse mesmo artigo. O recorrente respondeu ao convite de aperfeiçoamento através do requerimento de fls. 38 dos autos, pelo qual acrescentou que 'a questão da inconstitucionalidade objecto de recurso para o Tribunal Constitucional foi por si suscitada na motivação de recurso para esse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, quer no corpo da motivação, quer nas respectivas conclusões (vd. Conclusão 6ª)'.
2. Nas alegações que oportunamente apresentou neste Tribunal, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1ª A norma do n.º 5 do art.º 113º do CPP impõe que a notificação da acusação seja feita ao arguido e não ao defensor ou advogado;
2ª Por maioria de razão, a notificação da acusação ao arguido em Processo Penal não poderá ser efectuada editalmente, nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º
113º do CPP.
3ª De resto, admitir que a norma do n.º 5 do art.º 283º do CPP comporta o seguinte sentido e interpretação: o nosso ordenamento jurídico processual penal comporta a notificação edital ao arguido da acusação, e que tal notificação possa produzir efeitos como se o tivesse sido pessoalmente, significa que tal norma no aludido sentido e interpretação (sublin.) contende com a norma do n.º 1 do art.º 32º da C.R.P., enfermando, por conseguinte, do vício de inconstitucionalidade.'
3. O Procurador-Geral Adjunto, em exercício neste Tribunal, concluiu as suas alegações dizendo:
'1º - Não pode inferir-se do princípio constitucional das garantias de defesa, proclamado pelo artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a inviabilidade de prosseguimento, para a fase de julgamento, de um processo criminal, com base na notificação edital ao arguido do conteúdo da acusação deduzida pelo Ministério Público (realizada nos termos do acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de
1992) sempre que se tenha frustrado a respectiva notificação pessoal, por se revelar praticamente impossível o apuramento do paradeiro do arguido.
2º - Não viola o princípio do contraditório a realização de uma notificação edital, no circunstancialismo atrás descrito, isto é, quando o tribunal não tenha podido remover os obstáculos que se apresentavam quanto ao apuramento do paradeiro do notificando – e sendo certo que o próprio arguido não suscitou, perante o tribunal competente, a questão da nulidade decorrente de um uso porventura indevido daquela forma, menos garantística, de notificação.
3º - Não estando questionada a validade da notificação edital – e não impondo o princípio constitucional das garantias de defesa que o prosseguimento do processo dependa da efectiva notificação pessoal ao réu do conteúdo da acusação pública – não viola nenhum preceito ou princípio constitucional a preclusão do direito de requerer a abertura da instrução, por o mesmo não ter sido exercido no prazo legal, contado da efectivação da referida notificação por éditos.
4º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.' Por parte do 2º recorrido M. L. não foi apresentada qualquer contra-alegação no prazo legal. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. Era a seguinte a redacção da norma impugnada do Código de Processo Penal (na redacção originária deste diploma):
'Artigo 283º
(Acusação pelo Ministério Público)
(...)
5. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 277º, n.º 3.' Por sua vez, dispunha este normativo:
'Artigo 277º
(Arquivamento do inquérito)
(...)
3. O despacho de arquivamento é comunicado ao assistente, ao denunciante com faculdade de se constituir assistente e às partes civis. A comunicação ao arguido e ao assistente é feita por notificação, nos termos do artigo 113º, n.º
1.' O artigo 113º daquele Código, por sua vez, preceitua sobre 'Regras gerais sobre notificação', com o n.º 1 assim redigido:
'1. As notificações efectuam-se mediante: a) Contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado; b) Via postal, através de carta isenta de porte e expedida com aviso de recepção, de modelo oficialmente aprovado, o qual só pode ser assinado pelo destinatário, previamente identificado com anotação dos elementos constantes do bilhete de identidade ou outro documento oficial que permita a identificação; c) Editais e anúncios, nos casos em que a lei expressamente admitir essa forma de notificação.' No presente caso, a alínea do artigo 113º, n.º 1, que está em causa é a alínea c), para a qual remete, por via do artigo 277º, n.º 3, a norma relativa à notificação da acusação (o artigo 283º, n.º 5). Segundo uma certa interpretação desta norma, que está em causa no presente processo (por, alegadamente, contender 'com a norma do n.º 1 do artigo 32º da C.R.P., enfermando, por conseguinte, do vício de inconstitucionalidade'), extrai-se dela que 'o nosso ordenamento jurídico processual penal comporta a notificação edital ao arguido da acusação, e que tal notificação possa produzir efeitos como se o tivesse sido pessoalmente'. Tal interpretação da conjugação das normas dos artigos 283º, n.º 5, 277º, n.º 3 e 113º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redacção anterior a 1998, foi objecto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 1992 (publicado no Diário da República, I série, n.º 157-A, de 10 de Julho de 1992), pelo qual foi fixada a seguinte jurisprudência:
'Deduzida acusação, a mesma tem de ser notificada ao arguido, nos termos dos artigos 283º, n.º 5, 277º, n.º 3 e 113º, n.º 1, alínea c). Caso se verifique que aquele está ausente em parte incerta, a notificação a fazer-lhe será a edital prevista naquele artigo 113º, n.º 1, alínea c), prosseguindo depois o processo para a fase de julgamento.' Foi, aliás, neste acórdão de fixação de jurisprudência que se louvou expressamente a decisão recorrida do Tribunal da Relação de Lisboa, referindo, aliás, quanto à questão de constitucionalidade, que:
'para fixar esta jurisprudência obrigatória, o STJ ponderou devidamente a vertente constitucional do problema e especificamente o teor do art. 32º da CRP e necessariamente todo ele, ainda que se tenha alongado mais sobre o n.º 2 do preceito e fundando aí a decisão tomada'. Dizendo, ainda, mais à frente, a propósito do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República, que:
'só um entendimento meramente literal dessa específica norma poderia levar a tal conclusão [inconstitucionalidade]. E então, para salvaguarda dos direitos de defesa, nessa visão demasiado alargada, seria praticamente impossível prosseguir um processo em que o arguido
– voluntaria ou involuntariamente – estivesse em situação de não poder ser contactado pessoalmente pelo Tribunal, onde contra ele corresse um processo-crime. Para além de não ser então admissível a notificação edital também não poderia, manifestamente, desencadear-se aí o mecanismo da contumácia, sabido que ele, se devidamente aplicado, é fortemente limitador dos direitos do arguido. Ora, que saibamos, o Tribunal Constitucional nunca colocou em causa a constitucionalidade do instituto da contumácia.' Ora, é claro que não cumpre a este Tribunal decidir se, independentemente da questão da conformidade constitucional da interpretação em causa, ela é ou não a preferível – ou sequer, a que melhor se ajusta à redacção (designadamente, à exigência de que a lei admita 'expressamente' a notificação edital) e ao espírito das normas do diploma processual penal em que se estriba. Recorde-se, aliás, que, se a solução segundo a qual, revelando-se ineficazes os procedimentos de notificação da decisão acusatória mediante contacto pessoal ou por carta postal registada, o processo prosseguirá, foi explicitamente consagrada na reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de
25 de Agosto, eliminou-se agora a possibilidade de notificação edital (cf. a nova redacção dos artigos 283º, n.º 5 e 277º, n.º 3 daquele diploma) e previu-se mesmo (artigo 336º, n.º 3) que, tendo o arguido sido declarado contumaz, quando se apresentar ou for detido, se o processo tiver prosseguido, é notificado da acusação, podendo então requerer abertura de instrução no prazo normal.
5. Os efeitos normativos em causa no presente processo consistem na impossibilidade de o arguido requerer a realização de instrução caso tenha transcorrido o prazo para o efeito contado a partir da notificação edital. Ou, como se escreveu na decisão recorrida:
'A questão a resolver no presente recurso consiste em saber se deve admitir-se a realização da instrução, encontrando-se já os autos na fase de julgamento, se requerida pelo arguido nos 20 dias subsequentes à notificação pessoal da acusação, depois de esta lhe ter sido já antes notificada editalmente, dada a sua ausência.' O problema de constitucionalidade suscitado prende-se com o disposto no n.º 1 do artigo 32º da Constituição ('O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso'), e, segundo as alegações do recorrente, louva-se num alegado argumento de maioria de razão extraído do n.º 5 do artigo 113º do Código de Processo Penal ('As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, ao arquivamento, à decisão instrutória,
à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial.'): segundo tal argumento, se a notificação da acusação não pode ser feita ao advogado, muito menos o pode ser editalmente. Este argumento de maioria de razão, que se pretende extrair da necessária notificação do arguido, e não ao seu advogado, da acusação, afigura-se, todavia, improcedente. É que não se pode dizer que a notificação edital da acusação – em circunstâncias de impossibilidade de notificação pessoal ao arguido – constitua um minus em relação à sua notificação pessoal ao advogado, a qual é feita a pessoa diversa do arguido, em termos de se dever concluir que, sendo esta vedada, também o deverá ser a primeira. Trata-se, antes, de uma forma diferente de notificação – de um aliud, a partir do qual, só por si, não se extrai qualquer argumento a maiori ad minus.
6. No Acórdão n.º 388/99 (publicado no Diário da República, II série, de 8 de Novembro de 1999), a 2ª Secção do Tribunal Constitucional pronunciou-se já pela inconstitucionalidade, por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição, da norma do Código de Processo Penal em causa no presente processo (o artigo 283º, n.º 5), enquanto, conjugada com o n.º 3 do artigo 277º e com a alínea c) do n.º
1 do artigo 113º, na redacção anterior à resultante da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto – e de acordo com a interpretação feita na decisão recorrida, em aplicação da jurisprudência fixada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 1992 – permite, no caso de notificação edital ao arguido da acusação, que se conte a partir do momento em que se considera efectuada o prazo para requerer a abertura da instrução. Nesse aresto remete-se para o acórdão n.º 406/98 – que julgou, por maioria,
'inconstitucional por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, o artigo
287º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na versão anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 317/95, de 27 de Novembro, enquanto fixa em cinco dias, contados da notificação da acusação, o prazo para o arguido requerer a abertura de instrução' –, para se ponderar que, 'se este Tribunal julgou incompatível com o n.º 1 do artigo 32º da Constituição a norma que estabelecia um prazo de 5 dias para requerer a instrução, atenta a exiguidade desse prazo, não pode deixar agora de entender, por evidente maioria de razão, que é inconstitucional a norma que torna praticamente impossível o exercício da faculdade de requerer a instrução.' Considera-se, porém, que também este argumento de maioria de razão não procede. Na verdade, as questões da exiguidade do prazo para requerer a abertura da instrução e da aceitabilidade de uma notificação edital da acusação como dies a quo desse prazo são distintas. Por um lado, dando por assente que a notificação da acusação por editais não conduz ao seu conhecimento pelo arguido, deixa de se pôr qualquer problema de exiguidade do prazo para o requerimento (pois é claro que, nessas circunstâncias, seja qual for o prazo, nunca poderia requerer a instrução); por outro lado, e decisivamente, a verdade é que, não só as disposições processuais penais podiam (e deviam) ser interpretadas no sentido da manutenção pelo arguido do direito de requerer diligências instrutórias mesmo após o prazo para requerimento da abertura da instrução, como a insuficiência do requerimento de abertura de instrução não é fundamento para a sua rejeição. Estas últimas circunstâncias fundaram, aliás, o voto de vencido aposto pelo relator do presente processo ao Acórdão n.º 406/98. Independentemente desta posição, acresce que, de acordo com a interpretação normativa em causa, a notificação edital apenas deveria ser admitida em certas circunstâncias – mais precisamente, se se revelar impossível (por exemplo, por não se encontrar o arguido, ausente em parte incerta) a notificação pessoal – enquanto o prazo de cinco dias era um prazo geral, não influenciado por aquelas circunstâncias. E também logo esta diferença inviabiliza que se possa apoiar no presente caso um julgamento de inconstitucionalidade num argumento de maioria de razão.
7. Deve reconhecer-se, porém, que as normas do artigo 32º, n.ºs 1 ('a expressão condensada de todas as normas restantes' do artigo 32º da Constituição, no dizer de Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada,
3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 202) e 4 da Constituição da República, assegurando ao arguido todas as garantias de defesa e referindo a existência de uma instrução da competência de um juiz, impõem, não só que o processo criminal preveja, em princípio, a faculdade de o arguido provocar a comprovação judicial da acusação, como que os termos em que tal faculdade pode ser exercida não lhe retirem na prática consistência. A atribuição ao arguido, em regra, do direito de requerer a abertura de uma fase processual que 'visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação (...) em ordem a submeter ou não a causa a julgamento' (n.º 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal) deve, pois, incluir-se nas garantias de defesa em processo penal constitucionalmente impostas. A esta luz, afigura-se irrelevante, não só que a instrução tanto possa ser requerida pelo arguido como pelo assistente
(relativamente a factos pelos quais não tenha sido deduzida acusação), como que seja, em regra, na actual lei processual penal, uma fase de realização facultativa. Como bem se nota no Acórdão n.º 388/99, sendo facultativa a realização de instrução, facultativa não poderá ser, porém, a atribuição ao arguido do direito de decidir se pretende ou não requerê-la.
É certo que, como se escreveu no Acórdão n.º 31/87, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1987 (e se repetiu, designadamente, no Acórdão n.º 332/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol.,
1991, pág. 463), em relação ao direito a reagir contra a decisão de acusação,
'a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação.' E não é de excluir, ainda, que, em determinadas circunstâncias (designadamente, ligadas à proximidade dos factos ou à menor gravidade das penas a aplicar), possa aceitar-se a dispensa de uma fase processual autónoma para comprovação da acusação por um magistrado judicial (como será o caso das formas de processos sumário e sumaríssimo). Porém, isso não significa que ao legislador processual penal seja lícito, como regra, e independentemente daqueles casos especiais, eliminar o direito de o arguido provocar a realização de uma instrução por um juiz, para comprovar a acusação – e isto, quer directamente, quer indirectamente, através de uma regulamentação que retire toda a viabilidade prática ao exercício desse direito. Este Tribunal já decidiu, que se insere nas garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição 'a de não sujeitar o arguido a julgamento quando não se verifiquem indícios suficientes para consistirem numa razoável convicção de que tenha praticado o crime' – veja-se o Acórdão n º
691/98, tirado por unanimidade (a propósito do mecanismo de rejeição liminar da acusação, quando esta se mostre manifestamente infundada) e ainda não publicado; e também no Acórdão n.º 226/97 (Diário da República, II série, de 26 de Junho de
1997) se salientou que, podendo explicar-se a não obrigatoriedade da instrução por um desígnio de celeridade processual que também interessa ao arguido, e que a Constituição associa à própria presunção de inocência, é 'exigível, na perspectiva das garantias de defesa do arguido, que este possa optar pela realização de instrução'.
8. Posto isto, verifica-se que da norma do artigo 283º, n.º 5, do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada e que está em apreciação, resulta, na prática, a inviabilização do exercício do direito do arguido a requerer a abertura da instrução. Com o início do prazo a partir do momento da notificação edital da acusação retira-se, na verdade, praticamente a consistência deste direito, uma vez que só excepcionalmente tal forma de notificação levará ao conhecimento efectivo do destinatário a decisão de acusação e o seu teor. E uma tal privação ao arguido da faculdade de requerer a abertura da instrução não pode ser considerada compatível com as garantias de defesa asseguradas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição. Assinale-se, aliás, que não pode apreciar-se a constitucionalidade da norma em causa no presente processo a partir da consideração de que na sua aplicação estará em causa uma indevida realização da notificação edital (por não se ter revelado necessária ou por ter sido realizada incorrectamente, podendo em tal caso ser suscitada a eventual nulidade da notificação com esse fundamento) ou uma fuga deliberada pelo arguido a uma notificação pessoal. É que, mesmo pressupondo que o arguido não se furta deliberadamente à notificação pessoal – estando, por exemplo, simplesmente ausente no estrangeiro ou em viagem prolongada –, e que a notificação edital não é realizada indevidamente, podem acontecer situações em que o processo prossegue para julgamento. Em tal situação, mesmo sem indevida notificação edital ou indevida actuação do arguido, o arguido, ao regressar, veria precludido, sem tomar conhecimento da acusação, o seu direito de requerer a abertura da instrução, sendo manifestamente improcedente a afirmação de que não quis 'aceitar' as garantias instrutórias. O Estado não pode, porém – pelo menos, sem previamente alertar o arguido para isso, como acontece caso lhe seja fixado termo de identidade e residência com tal efeito – v., após 1998, o artigo 196º, n.º 3, do Código de Processo Penal –, pretender transferir genericamente para o arguido o risco da impossibilidade de o notificar pessoalmente – não pode, por outras palavras, pelo menos, sem aquelas circunstâncias, fazer recair em geral sobre os arguidos os ónus resultantes de uma notificação pessoal que não conseguiu fazer. Antes é justamente para obviar às dificuldades de tal tarefa que, enquanto titular e promotor da acção penal, dispõe de meios próprios e de mecanismos legais, de que deve lançar mão (assim, por exemplo, a promoção da sujeição do arguido a medidas de coacção) e, se necessário, aperfeiçoar, dentro dos limites constitucionais.
9. Contra a conclusão de inconstitucionalidade não colhem, por outro lado – como se pôs em evidência no citado Acórdão n.º 388/99 –, quer a invocação da possibilidade de o juiz de julgamento rejeitar a acusação (a qual, sem o arguido poder contraditar a versão constante da acusação, só pode ocorrer quando haja manifesta insuficiência de prova indiciária), quer os argumentos de que as
'garantias de defesa' têm de ser perspectivadas perante o processo penal no seu conjunto, e não perante cada um dos actos ou fases do processo, e de que no regime originário do Código de Processo Penal o arguido ausente não era, em regra, julgado. Quanto a estes últimos argumentos, repita-se apenas que não se podem postergar completamente garantias previstas para uma dada fase processual
– designadamente, para a não sujeição a julgamento – com base na invocação de garantias previstas para a fase processual subsequente – que é já a de julgamento. E, por outro lado, note-se que, caso o arguido regresse antes da data marcada para o julgamento, este se fará, vendo o arguido precludido o seu direito a desencadear a comprovação judicial da acusação. Também não pode considerar-se decisiva a invocação dos valores da eficácia e celeridade processual. Como se salientou no Acórdão n.º 388/99, que se vem citando
'Antes de mais, a celeridade encontra-se consagrada no artigo 32º da Constituição (cuja epígrafe é 'garantias de processo criminal'), que estabelece o dever de o arguido ser julgado 'no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa' (nº 2, in fine). Assim, não pode invocar-se a celeridade como fundamento legítimo para postergar garantias de defesa. Raciocinar nesses termos seria incorrer em petição de princípio, já que haveria que demonstrar justamente que as garantias de defesa não são aqui afectadas pela prevalência de um princípio de celeridade processual. Por outro lado, um possível julgamento de inconstitucionalidade da norma impugnada não leva necessariamente à paralização do processo até ser possível a notificação pessoal, com as eventuais consequências negativas da não realização da justiça e da prescrição do procedimento criminal. Basta, por exemplo, ainda que o processo prossiga, que se admita a possibilidade de o arguido, ao ter conhecimento da acusação, vir posteriormente requerer a abertura de instrução.' Foi, aliás, justamente uma solução deste último tipo a que ficou consagrada no Código de Processo Penal após 1998. E – conclui-se – a alteração da norma em causa (se interpretada de acordo com a jurisprudência fixada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 1992, no sentido de permitir a notificação edital da acusação e que se conte a partir do momento em que se considera efectuada o prazo para requerer a abertura da instrução) podia também estribar-se numa razão de desconformidade constitucional. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional a norma do artigo 283º, n.º 5, do Código de Processo Penal, conjugada com as dos artigos 277º, n.º 3 e 113º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma, interpretada no sentido de, no caso de notificação edital ao arguido da acusação, permitir que se conte a partir do momento em que se considera efectuada o prazo para requerer a abertura da instrução, por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição; b. Conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa