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Processo nº 345/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A E..., Ldª, sociedade comercial com sede em Lisboa, veio interpor para este Tribunal Constitucional dois recursos: a) o primeiro, 'ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, na redacção resultante da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro', do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (1ª Secção), de 30 de Abril de 1997, que negou provimento ao agravo que havia interposto, pretendendo 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 666º, nº 1 do Código de Processo Civil, com a interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido (confirmando nessa parte o douto acórdão da Relação de Lisboa)', porque essa norma, 'tal como interpretada na decisão recorrida, viola os artigos 20º e 21º da Constituição da República Portuguesa' ('A questão de constitucionalidade foi suscitada nos autos, nomeadamente nos nºs 21 a 23 e 31 a 37 das alegações de agravo interposto do acórdão da Relação (sendo reiterada nas conclusões K, L e M desse mesmo recurso) e o direito de resistência foi invocado pela ora Recorrente, logo na primeira instância, em requerimento apresentado em 29.06.95' - acrescenta ainda a recorrente). b) o segundo, também 'ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na redacção resultante da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro ', do 'despacho que, indeferindo o requerimento de aclaração, a condenou a pagar 3 unidades de conta de taxa de justiça' (é o acórdão, e não despacho, do mesmo Supremo, de 20 de Maio de 1997), pretendendo 'ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 448º do Código de Processo Civil e
16º do Código das Custas Judiciais, ao abrigo das quais foi proferido o despacho recorrido, e com a interpretação que neste lhes foi dada (quando permitem que se condene uma das partes no processo a pagar uma taxa por um serviço que não lhe foi prestado, ou quando admitem a sua aplicação a título de sanção por um comportamento, apreciado e julgado sem precedência de audição do seu autor, ou ainda quando expõem ao pagamento de taxas de montante imprevisível quem se limita a exercer o direito à informação, sobre o sentido de uma decisão que afecta os seus direitos e interesses, em ordem a exercer o seu direito de recurso, ao abrigo da lei e da Constituição)', porque essas normas, 'tal como interpretadas e aplicadas pela decisão recorrida, violam os artigos 2º, 20º, 32º e 106º (conjugado com o 18º, nºs 2 e 3), todos da Constituição da República Portuguesa' ('A questão da constitucionalidade não foi suscitada nos autos, porque a recorrente não o pôde fazer, por não estar processualmente prevista a sua intervenção no processo antes de proferido o despacho em causa e este não admitir recurso ordinário em que ainda possa suscitar a questão' – acrescenta a recorrente).
2. Nas suas alegações concluiu assim a recorrente:
2.1. Quanto ao recurso do acórdão de 30 de Abril de 1997:
'A – O direito de defesa dos cidadãos seria completamente esvaziado de sentido caso as decisões judiciais já proferidas ('para defesa de direitos e interesses legítimos') e em pleno vigor, pudessem ser ignoradas e neutralizadas através de decisões posteriores de outros tribunais, com o mesmo grau hierárquico, sem precedência de qualquer contraditório. B - Interpretar o art. 666º, nº 1 do CPC como obstando a que o juiz possa conhecer e suprir nulidades extrínsecas de uma decisão já proferida por si, quando esta decisão ponha em causa direitos reconhecidos e tutelados por outra decisão judicial anterior, constitui pois infracção ao direito constitucional de defesa (consagrado no art. 20º da CRP), para além de colidir com o princípio do Estado de Direito (enunciado no art. 2º desta mesma Lei). C - O art. 21º da Constituição, que consagra o direito de resistência contra ordens ilegítimas, não abre qualquer excepção para as ordens dos tribunais. D - Deve ter-se por ilegítima a ordem judicial que - como no caso em apreço - colide frontal e irremediavelmente com outra decisão anterior, proferida por outro tribunal do mesmo grau hierárquico, e que até foi confirmada por instâncias superiores. E - O facto de o Juiz, ao proferi-la, ignorar a existência de factos maliciosamente ocultados pela requerente do arresto, não obsta a esta conclusão, já que a ilegitimidade assume aqui natureza objectiva, que não é afastada pelo legítimo desconhecimento do Tribunal. F - Nesses casos, portanto, o disposto no art.21º da CRP é incompatível com o nº
1 do art. 666º do CPC quando interpretado e aplicado com o sentido de obstar a que o juiz que proferiu uma ordem ilegítima respeite o direito de resistência
(suspendendo a execução dessa ordem), mesmo quando se aperceba (após ter proferido a decisão) que com ela ofendeu direitos, liberdades e garantias do requerido da providência, e que o mesmo resiste a essa ordem judicial, invocando expressamente aquele preceito constitucional. Nestes termos, deve o nº 1 do art. 666º do CPC ser julgado inconstitucional, quando interpretado e aplicado pela forma indicada, por violar os arts. 2º, 20º e 21 da Constituição'.
2.2. Quanto ao recurso do acórdão de 20 de Maio de 1997:
'A - Os artigos 448º do CPC e 16º do CCJ permitem a tributação das partes em casos em que nenhum serviço lhes é prestado, nomeadamente quando os seus requerimentos são liminarmente indeferidos ou quando - como sucedeu neste caso - o tribunal se recusa a prestar o serviço que lhe foi solicitado. B - Por isso, nestas situações, a denominada taxa de justiça reveste natureza de imposto, por ausência de contrapartida directa, individual e específica, ou por ser manifestamente excessiva e desproporcionada face ao valor objectivo do reduzido serviço prestado (de resto já pago pelos preparos destinados a custear a tramitação geral do processo). C - Sendo assim, tratar-se-á de um imposto cujos elementos essenciais dependem de uma determinação casuística, que não foi desenhada na lei, pois que a sua incidência depende de conceitos vagos como 'actos supérfluos', 'desnecessários',
'ocorrências estranhas', ou 'natureza manifestamente dilatória', e a sua taxa é discricionariamente determinável pelo juiz, entre meia e dez unidades de conta. D - Tal significa, em primeiro lugar, que as normas do art. 448º, nºs 1 e 2 do CPC e do art. 16º do CCJ violam - materialmente - o princípio da legalidade fiscal, ínsito no art. 106º, nº 2 da CRP, isoladamente e conjugado com o art.
18º, nºs 2 e 3 da Lei Fundamental. E - Mas significa ainda que - porque a aprovação do Código das Custas não beneficiou de autorização legislativa do Parlamento - que o seu art. 16º é organicamente inconstitucional, por infracção da alínea i) do nº 1 do art. 168º da Constituição. F - Caso se qualifiquem como sanções as custas em que a parte é condenada nos denominados 'incidentes anómalos', haverá então que concluir-se pela inconstitucionalidade das normas que as prevêem - os arts. 448º, nºs 1 e 2 do CPC e 16º do CCJ - por violação do art. 32º da CRP, já que não é respeitado o princípio do contraditório, reconhecendo à parte condenada o direito de audiência prévia e de defesa, antes da condenação. G - Ao sujeitar os utentes da Justiça, que requeiram aclaração sobre o conteúdo e sentido das decisões judiciais, ao risco de serem discricionariamente condenados a pagar taxas de justiça de montante arbitrário, o legislador limita e condiciona de forma intolerável os direitos à informação e ao recurso, pelo que os artigos 448º do CPC e 16º do CCJ infringem o disposto nos arts. 20º e 2º da Constituição. Nestes termos, devem os arts. 448º, nº 1 e 2 do CPC e 16º do CCJ ser julgados inconstitucionais, quando interpretados e aplicados pela forma indicada, por violarem os arts. 106º, nº 2, 18º, nºs 2 e 3, 32º, 2º e 20º da Constituição. Julgando procedente os dois recursos interpostos pela Recorrente, far-se-á JUSTIÇA'.
3. Contra-alegou a recorrida Nova Linha, S.L., sociedade comercial com sede em Málaga-Espanha, concluindo apenas que:
'Deve ser negado provimento aos dois recursos interpostos, por inexistir qualquer inconstitucionalidade entre as normas apontadas, com a interpretação que lhes foi dada, e os preceitos constitucionais designados'
4. Vistos os autos, cumpre decidir. O presente caso teve origem num 'arresto repressivo' que a ora recorrida intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Loures, em 16 de Maio de 1995, contra a recorrente, pedindo que fosse 'ordenado o arresto repressivo de todos os produtos ostentando a marca 'ALBERT D'ARNAL' que sejam encontrados nos locais referidos no artº 15º da presente petição e noutros aonde os mesmos venham a ser encontrados e, bem assim, de todo o material publicitário que a mesma possua com a aludida marca'. O relatório do acórdão recorrido de 30 de Abril de 1997 retrata suficientemente a sequência processual daquela providência cautelar nestes termos:
'Nova Linha, S. L, sociedade comercial espanhola com sede na Alameda Principal -
47, 2º, Málaga, Espanha, requereu contra E..., Ldª, sociedade comercial por quotas com sede na Av. da República - 82, 4º, Lisboa, arresto repressivo por a requerida usar a marca Albert d' Arnal para assinalar os mesmos produtos
(cosméticos, perfumaria, óleos essenciais, loções para cabelo e champôs) para que aquela requereu os registos das marcas nacionais nº 298.870 e 298.871, ambas Albert d' Arnal, e de que é titular. Prestada a caução e produzida a prova foi decretado o requerido arresto. Estando em curso a respectiva diligência, requereu a arrestada que se a desse sem efeito ou, pelo menos, se a suspendesse até averiguação da situação pois que estava judicialmente autorizada a usar essa marca e esta era a terceira vez consecutiva que, no espaço de um ano, contra ela era requerido um arresto pelo seu uso. Logo de imediato, foi proferido despacho a «suspender a execução da referida providência, atento o princípio que emana do art. 665 do C.P.C., sem prejuízo dos meios processuais previstos para reagir contra a decisão que a decretou», o qual, comunicado telefonicamente, levou à suspensão daquela e à entrega dos bens constantes de 62 verbas já arrestadas a depositário. Deste despacho agravou a requerente, recurso que foi recebido para subir a final, nos autos e com efeito devolutivo. Cruzando-se sucessivamente, juntaram requerida e requerente diversos documentos, após o que foi proferido despacho a suspender «a instância até ao trânsito em julgado da decisão final proferida na acção pendente no 13º Juízo Cível de Lisboa». Mais um vez inconformada, agravou a requerente tendo a Relação de Lisboa revogado o despacho «que deverá ser substituído por outro que ordene a continuação da ordenada apreensão». Agravou a requerida, defendendo a confirmação do despacho revogado, pelo que, em suas alegações, concluiu, em suma e no essencial: [transcreve-se só o que aqui pode interessar]
- não é sensato e ofende a Justiça que um arresto decretado por engano, maliciosamente provocado pela requerente, venha a ser efectuado mesmo depois de detectado o logro em que o tribunal foi involuntariamente induzido;
- o art. 666 CPC não priva o julgador de poder atalhar a erros ou invalidades da decisão que haja proferido e deve entender-se em termos hábeis sem ignorar que, in casu, existia uma decisão judicial anterior incompatível com o despacho que ordenou o arresto;
- por isso, não podia um tribunal da mesma categoria (o de Loures) privar de um direito atribuído à requerida por outro (8º Juízo Cível de Lisboa) por decisão confirmada já pelos Tribunais Superiores;
- cabe dentro dos poderes do tribunal anular oficiosamente uma sua própria sentença em caso de certas nulidades de conhecimento oficioso, como esta que é extrínseca à própria decisão;
(...)
- a nulidade resulta, sobretudo, da colisão entre o despacho decretando o arresto e o direito de defesa da requerida, acautelado na providência cautelar decretada em 1994 pelo 8º Juízo Cível de Lisboa e salvaguardado pelo art. 20 CRP;
- em causa, além disso, está o direito de resistência a ordens ilegítimas, previsto no art. 21 CRP, que a requerida invocou expressamente perante a 1ª instância e que cumpria ao Mer. Juiz respeitar como respeitou;
- o conhecimento oficioso da violação impõe-se por força dos arts. 20 e 21 CRP devendo o tribunal suprir ex officio as nulidades extrínsecas detectadas na medida em que estavam em causa direitos constitucionais da requerida;
(...)
- não se fez correcta interpretação e aplicação do disposto nos arts. 2, 122-3,
666, 668-1 d) e 832-1 CPC e dos arts, 2,20,21, CRP' Nesse acórdão recorrido o Supremo Tribunal de Justiça tomou as seguintes posições:
'Com efeito, afirma-se que o arresto foi decretado por engano - por o juiz ter sido induzido em erro, omitindo-se-lhe elementos. Um parêntesis - mantém-se aplicável o CPC na sua versão anterior aos dec-leis
329-A/95 e 180/96 ex vi do disposto nos arts. 4 e 22 do dec-lei 180/96 e 16-1 do dec-lei 329-A/95. A agravante não recorreu do despacho que decretou o arresto nem deduziu embargos
(CPC-405) pese embora o seguinte, que ordenou a suspensão da execução da providência de arresto decretada, expressamente o ter feito «sem prejuízo dos meios processuais previstos para reagir contra a decisão que a decretou» (fls.
76). Se entendia que esse despacho fora proferido por engano e que a sua manutenção ofendia a justiça tinha ao seu alcance os 2 meios que a lei punha ao seu dispor para reagir, pelo que não tendo feito só de si se poderá queixar. Não cabe ao juiz que conheceu da matéria da causa reapreciar a sua própria decisão (CPC-666,1). Para esse efeito, os tribunais são organizados hierarquicamente - a reapreciação pertence a um tribunal superior(C PC- 676,1 e
70-72). Os embargos não comportam uma reapreciação - neles se introduzem factos ou tendentes a afastar os fundamentos do arresto ou a provar que se o deve reduzir aos justos limites, sem prejuízo de se poder alegar a carência dos requisitos legais (CPC- 406, 1 e 2). Ainda quando anula uma sua decisão - se não for admissível recurso ordinário
(CPC- 668, 3), o tribunal não a reaprecia, limita-se a julgar verificado uma das nulidades mencionadas nas als. b) a e) do nº 1 desse art. 668 - o sentido da decisão a proferir, após a declaração de nulidade, pode ser idêntico, não tem de necessariamente ser quantitativa ou qualitativamente diferente. Também quando é possível e é deferida a substituição da providência por caução, respeita o tribunal a decisão anterior de procedência da pretensão cautelar
(CPC- 401,3). Se tinha como admissível, o que vem defendendo, opor à decisão que decretou o arresto a invocada «nulidade extrínseca» não produziu reclamação alguma. Independentemente do julgamento sobre uma tal admissibilidade e, se favorável, sobre o seu mérito, alegá-la mais tarde e defender agora a sua relevância é tardio, precludira já o direito a reclamá-la'
(...)
'Pretende a agravante(ora recorrente) justificar a admissibilidade legal da medida de suspensão de modo indirecto, através invocação de direitos de que se arroga e constantes da Constituição (arts. 20 e 2 I). Não lhe foi negado, directa ou indirectamente, o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos. Não ter a parte usado dos meios que a lei coloca ao seu dispor ou usar apenas dos que teve por mais convenientes ou deles extrair só algumas das suas virtualidades é questão que só a ela, parte, compete decidir. Isso nada tem que ver nem de modo algum se pode confundir com o recusar esse direito de acesso aos tribunais. Aliás, a própria agravante não teve o cuidado de precisar onde lhe foi negado ou recusado esse direito - o que ela manifesta na respectiva conclusão e na alegação pertinente é o seu inconformismo com o decidido mas isso é tão somente problema de impugnabilidade das decisões, e essa, a que decretou o arresto, não o foi. Entende a agravante que lhe assiste o direito de resistência por a ordem ser ilegítima. Um dos pressupostos do direito de resistência é, em princípio, a ilegitimidade da ordem. Aqui, a ordem é uma decisão judicial - emana, pois, de um Órgão de Soberania
(Tribunal) e no exercício das suas funções de administração da Justiça. Ter uma decisão como desajustada ou menos conforme à lei não configura ilegitimidade e à parte - em relação à qual a decisão tenha eficácia - apenas assiste exercitar o direito de a impugnar pelos meios legais para tanto estabelecidos. O respeito devido às decisões judiciais, enquanto não forem alteradas, impõe-se o que tem reflexo para vários campos do direito que não só o civil.'
(...)
'A providência tem, segundo a própria expressão legal, natureza cautelar e o que acautela é o efeito útil da acção (CPC- 2 e 384- I), ainda quando a medida a decretar possa ser, relativamente aos seus pressupostos, repressiva, como é o presente caso (CPC- 407). Conhecendo a realidade, os sucessivos legisladores, já desde antanho, têm a sua existência por justificada pois que a demora de um processo não deve prejudicar a parte que tenha razão, devendo-se-lhe dar a tutela que teria se não houvesse que recorrer aos tribunais. Tentando conciliar os interesses em presença - rapidez e ponderação na justiça - entendeu a lei que devia haver lugar para certos procedimentos expeditos e sumários susceptíveis de produzir resultados provisórios na perspectiva de acautelar aquele efeito útil mas obtemperando aos riscos da precipitação de uma decisão e ao da sua inutilidade por tardia. O carácter urgente e sumário dos procedimentos em causa realça aquela provisoriedade das medidas a decretar. Assim, a natureza e a estrutura destes e o objectivo legalmente prosseguido afastam de todo a possibilidade de o julgador determinar uma suspensão de uma medida já decretada, possibilidade essa que, como se viu antes (no nº 3), a própria lei não quis consignar. Decretada uma providência, manter-se-á enquanto o fim prosseguido for possível, rectius, atendível (pode ainda ser possível mas não ser atendível por não haver uma actuação colaborante ou expedita do requerente - als. a) e c) do nº 1 e nº 2 do art. 382). A regra é, pois, a de se manter enquanto lhe for possível tomado este termo na acepção assinalada, cumprir a sua função'. Pedida pela recorrente a aclaração do acórdão, 'nos termos dos artigos 762º, nº
1, 752º, nº 3, 716º do CPC', foi decidido, no acórdão – também aqui recorrido – de 20 de Maio de 1997, 'indeferir o pedido de aclaração', por não 'se poder falar em obscuridade', com custas 'pela agravante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s'.
5. Começando naturalmente pelo primeiro recurso, registe-se que a recorrida faz de forma simplista o desenho da questão jurídica a apreciar, com a formulação desta pergunta: 'Decretado um arresto suspensivo (deve querer referir-se a repressivo), pode o Juiz que o decretou, em fase de execução do mesmo, suspender a instância?' (e, como também diz a recorrida, 'dois anos decorridos sobre a data em que a apreensão se iniciara, vê-se a agora Recorrente em situação de os autos terem que baixar a fim de que prossiga o arresto, respondendo pelos bens já entretanto apreendidos, aos quais já terá dado descaminho... '). Tal questão, como vem colocada pela recorrente, tem a ver só com o artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, segundo o qual 'fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa', logo que proferida a sentença ou decisão, 'quando interpretado e aplicado com o sentido de obstar a que o juiz que proferiu uma ordem ilegítima respeite o direito de resistência
(suspendendo a execução dessa ordem), mesmo quando se aperceba (após ter proferido a decisão) que com ela ofendeu direitos, liberdades e garantias do requerido da providência, e que o mesmo resiste a essa ordem judicial, invocando expressamente aquele preceito constitucional' (na linguagem da recorrente), aí residindo o vício de inconstitucionalidade. Para o Supremo Tribunal de Justiça, 'uma vez decretada (a providência cautelar) ela só caduca nos termos prescritos no art. 382 CPC', decorrendo 'daqui que a lei não estabelece causa alguma de neutralização, ainda que temporária, da eficácia da decisão que a tenha decretado o que bem se compreende se se atentar na natureza e estrutura dos procedimentos cautelares', e, portanto, 'manter-se-á enquanto o fim prosseguido for possível, rectius, atendível (pode ainda ser possível mas não ser atendível por não haver uma actuação colaborante ou expedita do requerente - al. a) e c) do nº 1 e nº 2 do art. 382)'. Suposto que daí resulta que no acórdão recorrido se seguiu um entendimento que abre a interpretação e a aplicação do questionado artigo 666º, nº 1, nos termos expostos pela recorrente, por caber nesse entendimento a ideia do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, tudo está em saber agora se procede ou não a arguição de inconstitucionalidade, com base na violação dos artigos 2º, 20º e
21º da Constituição. Não assiste, porém, nenhuma razão à recorrente. Com efeito, ao entender-se, como faz o acórdão recorrido, que a natureza e estrutura da providência cautelar em causa – aliás, já decretada – 'e o objectivo legalmente prosseguido afastam de todo a possibilidade de o julgador determinar uma suspensão de uma medida já decretada', sendo que a própria lei não quis consignar essa possibilidade (o que pode implicar a tal ideia do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, acolhida no questionado artigo 666º, nº 1), não se está a infringir o 'direito constitucional de defesa (consagrado no art. 20º da CRP)', nem se vai 'colidir com o princípio do Estado de Direito
(enunciado no art. 2º da mesma Lei'), para usar a linguagem da recorrente.
É que, contrariamente ao que sustenta a recorrente, não lhe foi vedado o acesso ao tribunal para defesa dos seus direitos ou interesses legítimos. De facto, a defesa contra o despacho judicial que decreta o arresto está sempre assegurada, seja por recurso, seja por oposição de embargos, nos termos conjugados dos artigos 381º, 405º, 406º e 407º, do Código de Processo Civil (na versão anterior
à revisão de 1997; cfr. hoje os artigos 384º, nº 3, 388º e 392º). Se a referida iniciativa teria sido a mais adequada ao caso, ou se deveria ter enveredado antes pelo embargo da providência ou por um recurso, é ponto que não importa dilucidar, mas, como se lê no acórdão recorrido, a circunstância de não ter a parte 'usado dos meios que a lei coloca ao seu dispor ou usar apenas dos que teve por mais convenientes ou deles extrair só algumas das suas virtualidades é questão que só a ela, parte, compete decidir '. E não pode ver-se aí, conjugando-se tudo isso com o poder jurisdicional do juiz, a negação do direito de acesso aos tribunais que flui do artigo 20º da Constituição. A vertente da protecção judiciária, que se extrai daquele artigo 20º e está
ínsita no Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição, não é beliscada só porque, à luz do artigo 666º, nº 1, ao juiz assiste um poder jurisdicional que se esgota com a prolação da sentença ou do despacho em causa. Sobremaneira quando, como é o presente caso, não fique vedado à parte interessada o uso de meios processuais – se bem ou mal utilizados, não interessa aqui – para defesa dos seus direitos ou interesses legítimos. Com o que não procede a apontada violação dos artigos 2º e 20º, da Constituição
(conclusões A) e B) das alegações da recorrente).
6. A recorrente avança também com a violação da norma do artigo 21º da Constituição, pretendendo dizer que esta norma 'não abre qualquer excepção para as ordens dos tribunais', devendo 'ter-se por ilegítima a ordem judicial que - como no caso em apreço - colide frontal e irremediavelmente com outra decisão anterior, proferida por outro tribunal do mesmo grau hierárquico, e que até foi confirmada por instâncias superiores' ('Nesses casos, portanto, o disposto no art.21º da CRP é incompatível com o nº 1 do art. 666º do CPC quando interpretado e aplicado com o sentido de obstar a que o juiz que proferiu uma ordem ilegítima respeite o direito de resistência (suspendendo a execução dessa ordem), mesmo quando se aperceba (após ter proferido a decisão) que com ela ofendeu direitos, liberdades e garantias do requerido da providência, e que o mesmo resiste a essa ordem judicial, invocando expressamente aquele preceito constitucional.' acrescenta a recorrente). Só que, revestindo o direito de resistência consagrado naquele artigo 21º a característica de tutela inorgânica e subsidiária dos direitos fundamentais – cifra-se 'na instituição de uma garantia não jurisdicional e não institucional desses direitos', na expressão de Assunção Esteves, A Constitucionalização do Direito de Resistência, Lisboa, 1989, pág. 94 – e com o desenho de um direito subjectivo, positivado, ele é uma fonte de figuras como a auto-tutela dos direitos, a acção directa e a legítima defesa, e também uma frente do cidadão face aos poderes públicos, em especial, nos domínios da actividade administrativa e da actividade fiscal do Estado e demais entes públicos. Mas não é um parâmetro de aferição da (in)constitucionalidade do universo de normas infraconstitucionais, não servindo, assim, para fundar um juízo de
(in)constitucionalidade desse universo, a menos que, hipoteticamente, se imagine uma norma a eliminar ou a neutralizar o direito de resistência, o que manifestamente não é o caso do artigo 666º, nº 1 ('Estamos perante um ‘direito garantia’, uma ‘competência’ (individual), estabelecida por uma norma de competência', no dizer de Assunção Esteves, ob. cit., pág. 191). Se isto é assim, arredado está sustentar a apontada colisão do questionado artigo 666º, nº 1, com o artigo 21º da Constituição, por não ser ela verificável em qualquer hipótese, e muito menos quando, como é a visão da recorrente, se quer impor ao 'juiz que proferiu uma ordem ilegítima' o respeito pelo direito de resistência ('suspendendo a execução dessa ordem' – diz a recorrente). Como avisadamente se lê no acórdão recorrido: 'Ter uma decisão como desajustada ou menos conforme à lei não configura ilegitimidade e à parte - em relação à qual a decisão tenha eficácia - apenas assiste exercitar o direito de a impugnar pelos meios legais para tanto estabelecidos'. Com o que não procedem as demais conclusões das alegações da recorrente, a propósito do juízo de inconstitucionalidade daquele artigo 666º, nº 1.
7. Passando agora ao segundo recurso, relativamente a um pedido de aclaração do anterior acórdão de 30 de Abril de 1997, e que foi indeferido com 'custas pela agravante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s', como consta do acórdão recorrido de 20 de Maio de 1997, ele é restrito a essa condenação em custas, sustentando a recorrente que ao sujeitar 'os utentes da Justiça, que requeiram aclaração sobre o conteúdo e sentido das decisões judiciais, ao risco de serem discricionariamente condenados a pagar taxas de justiça de montante arbitrário, o legislador limita e condiciona de forma intolerável os direitos à informação e ao recurso, pelo que os artigos 448º do CPC e 16º do CCJ infringem o disposto nos arts. 20º e 2º da Constituição'. Todavia, neste ponto, há um obstáculo processual, adivinhado no despacho do Relator, ao pedir à recorrente 'para esclarecer o motivo de não ter usado da faculdade de requerer a 'reforma quanto a custas' prevista no artigo 669º, b), do Código de Processo Civil aplicável ao caso' (ao que a recorrente respondeu que 'não fez uso da faculdade prevista no artigo 669º, b) do Código de Processo Civil, por não ter considerado provável que o tribunal 'a quo' aceitasse a sua argumentação, para além de recear fundadamente uma nova condenação em custas processuais, à semelhança do que sucedeu relativamente ao pedido de aclaração'), e ele tem a ver com a verificação do pressuposto da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade em causa, de modo processualmente adequado, como hoje se exige no nº 2 do artigo 72º, da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro. Ora, in casu, à face do disposto no artigo 669º, nº 1, b), do Código de Processo Civil, cabia uma impugnação da condenação em custas, através de um pedido de reforma e era esse o momento processualmente adequado para suscitar as questões de inconstitucionalidade que, pela primeira vez, a recorrente suscita aqui, no Tribunal Constitucional. Só que, dentro do prazo para fazer tal pedido, veio antes a recorrente interpor recurso de constitucionalidade, não proporcionando, assim, ao Tribunal a quo um juízo sobre tais questões, que, se fosse positivo, iria até ao encontro da sua pretensão. Sendo isto assim e justificando-se a recorrente que não fez uso do pedido em causa 'por não ter considerado provável que o tribunal ‘a quo’ aceitasse a sua argumentação', sibi imputet. O que não pode é pretender uma intervenção primária do Tribunal Constitucional numa questão jurídico-constitucional que poderia ter sido levada à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça e aí obter até êxito. Com o que não pode tomar-se conhecimento deste segundo recurso, por não se verificar o aludido pressuposto.
8. Termos em que, DECIDINDO: a. nega-se provimento ao recurso interposto do acórdão de 30 de Abril de
1997. b. não se toma conhecimento do recurso interposto do acórdão de 20 de Maio de 1997. Lisboa, 9 de Junho de 1999 Guilherme da Fonseca Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José Manuel Cardoso da Costa