Imprimir acórdão
Processo n.º 78/14
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. e B., melhor identificados nos autos, reclamam para a conferência ao abrigo do disposto no n.º 4, do artigo 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do despacho do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de dezembro de 2013 (fls. 125), que não admitiu o recurso de constitucionalidade por eles interposto.
2. A reclamação para a conferência tem o seguinte teor:
«(…)
2 – Ora, ressalvado o mui e devido respeito, a decisão que não admite o recurso de fiscalização concreta das normas processuais civis, respeitantes ao bloqueamento do recurso para o STJ a partir do esquema da “dupla conforme”, em si mesma, é ilegal, injusta, materialmente inconstitucional por total ausência de fundamentação de facto e de direito, já que não basta dizer-se “não admito nos termos do artigo 76.º, n.º 2” para isso cumprir o desiderato constitucional imposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP 1976.
3 – Acresce que, in casu, censurou-se ter inexistido, junto do Tribunal da Relação de Évora, e apesar do recurso interposto, um verdadeiro cumprimento do 1.º grau de recurso em matéria de facto, já que tal instância não se pronunciou.
4 – Razão pela qual devem os Colendos e Venerandos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional admitir o presente recurso (…).
(…)»
3. Em face do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20 de dezembro de 2012, que julgou improcedente o recurso interposto pelos ora reclamantes, interpuseram estes recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 25). Seguiu-se o despacho de não admissão do recurso, proferido pelo tribunal recorrido a fls. 54 dos autos, e que assentou na irrecorribilidade do acórdão da Relação que confirme, sem votos de vencido e ainda que por diferente fundamentação, a decisão proferida na 1.ª instância (cfr. artigo 721.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).
Inconformados, os reclamantes apresentaram o requerimento de fls. 56, pelo qual solicitavam “esclarecimento, reforma e reclamação contra o indeferimento de recurso de revista”. Ao abrigo do disposto no artigo 688.º do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça, por decisão singular prolatada em 4 de julho de 2013, indeferiu a reclamação apresentada. Invocou, para o efeito, os seguintes fundamentos:
«(…)
Vê-se bem da sua inserção naquele artigo 721.º que não pretende a lei abrir uma janela própria de entrada dos recursos de revista excecional. Pelo contrário, a dupla conforme, como ali surge e até pela sua própria natureza – dando mais consistência à decisão – traduz um acrescento bloqueador de recurso de revista. Aliás, a ratio legis de reservar o Supremo para casos mais importantes não se compadeceria com a abertura de tal janela, por onde passariam a poder passar casos de recurso para este Tribunal que antes nunca chegariam aqui.
A lei deve ser interpretada, então, no sentido de que se deve seguir o seguinte iter:
Primeiro, indagar se se verificam os pressupostos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 721.º, recusando-se logo a admissibilidade se não se verificarem;
Verificando-se, atentar se teve lugar dupla conforme;
Se não teve, admitir-se o recurso;
Se teve, ver se está requerida a revista excecional, surgindo, então, e só então, a competência da formação a que alude o artigo 721.º-A, n.º 3.
(…)
V – Esta construção não tem mácula de inconstitucionalidade, nomeadamente por violação dos invocados artigos 13.º, 20.º, n.ºs 1 e 4 e 202.º da CRP.
Foi garantido o acesso ao Direito logo com a decisão do Sr. Juiz da 1.ª instância e foi o recurso desta conhecido por um Tribunal Superior, quando o Tribunal Constitucional até nem admite a imposição genérica, no plano constitucional, dum grau de recurso (cfr., por todos, os Acórdãos n.ºs 489/95, 496/96 e 182/98 no BMJ, respetivamente, 451, 441, 455, 535 e 474, 85).
E manifestamente não se vê que tenha sido postergado o princípio da igualdade de armas.
VI – Por outro lado, compreende-se mal que se invoque o não conhecimento, em duplo grau de jurisdição, da matéria de facto – que, no entender da recorrente seria inconstitucional – quando, como se vê de folhas 17 ao início de folhas 21, a Relação discorreu, até longa e pormenorizadamente, sobre o mérito da pretendida alteração.
VII – Finalmente, há que ter em conta que, conforme se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.3.2012, processo n.º 35/11.8TBGMR.G1.S1, disponível no referido sítio, “Os requisitos do n.º 1 do artigo 721.º-A do Código de Processo Civil têm de ser afirmados, e devidamente motivados, pelo recorrente, sob pena de rejeição desta modalidade de recurso, como impõe o n.º 2 daquele artigo.”
Não basta, pois, a afirmação, já em sede de reclamação, que “estava em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância, se afigurava claramente necessária com vista a uma melhoria da dogmática e jurisprudência portuguesa sobre tal temática, rectius, o Direito.”
Não podendo relevar, outrossim, as, agora também invocadas, relevância social ou não uniformidade da jurisprudência.
Tudo tinha que ser carreado na fase da interposição do recurso, logo fazendo incidir a atenção na figura da revista excecional.
(…)»
Seguiu-se o requerimento de fls. 84, qualificado pelos reclamantes como de “aclaração, em conferência, de decisão singular e conhecimento efetivo de inconstitucionalidade material ou admissão de recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional”, onde se verteu o seguinte:
«(…)
2 – Nesse sentido, verifica-se que, usando do esquema da “dupla conforme”, o TRE denegou tutela jurisdicional e uma correta administração da justiça em nome do povo português, daí a invocação da violação dos artigos 1.º, 2.º, 9.º, alínea b), 20.º, n.ºs 1 e 4, e 202.º, n.ºs 1 e 2, e 209.º, da CRP de 1976. O que significa que:
3 – Contrariamente ao disposto nos citados preceitos e na lei processual civil, não foi efetivada verdadeira revista em tema de matéria de facto, pois, o uso de “dupla conforme” a tal impediu. Assim, não se afigura correto o entendimento subscrito pelo STJ e, até, pelo TC, com jurisprudência com mais de 20 anos!
4 – O que significa que, à luz dos citados preceitos, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente à interpretação dos preceitos que regem o recurso de revista e a revista excecional, se afigura materialmente inconstitucional.
(…)»
Decidiu o STJ indeferir o requerido, em acórdão com data de 24 de outubro de 2013:
«(…)
3. Com o Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24.8, o conhecimento da reclamação sobre a não admissibilidade de recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão da Relação, é distribuída a um relator deste Tribunal.
Face à lei velha, o conhecimento cabia antes ao Presidente e compreendia-se bem que, da decisão deste, não coubesse reclamação.
Mas, face à lei nova e nada sendo disposto em contrário, deve ser seguido o regime geral de reclamação para a conferência. É certo que no n.º 3 do artigo 700.º continua a ressalvar-se o disposto no artigo 688.º, mas esta disposição pode ser interpretada no sentido de impedir a reclamação para a conferência ainda na 2.ª instância (Assim, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, 3.º, 75 e Abrantes Geraldes, Recurso em Processo Civil, 164).
Há, pois, que conhecer da reclamação.
4 – Mas a sua improcedência é manifesta. Secundando-se aqui tudo o que foi afirmado na decisão em crise, sendo certo que a mesma é perfeitamente clara e nela se conheceu da arguição da inconstitucionalidade material, em termos até pormenorizados.
Por outro lado, estando a decisão do relator sujeita a reapreciação pela conferência, é também manifesto que dela não pode ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
(…)»
Vieram então os reclamantes interpor recurso para o Tribunal Constitucional, em requerimento de fls. 120, delimitando o respetivo objeto da seguinte forma:
«(…)
7 – O artigo 721.º, n.º 3 e 721.º-A, n.º 3, do CPC 1961, na interpretação dada, quer pelo TRE, quer pelo STJ, no sentido de denegar, quer a revista normal, quer a revista excecional, quando existe ostensivamente má decisão judiciária nas duas instâncias anteriores, afigura-se materialmente inconstitucional pois a estruturação dos tribunais e matriz do Estado de Direito Democrático, com a sua vertente de tutela das legítimas expectativas, é contrária quer à tese da dupla conforme, quer a quaisquer outras restrições que não estejam democrática e proporcionalmente ancoradas.
(…)»
O despacho de não admissão de recurso, proferido pelo STJ em 2 de dezembro de 2013, tem, por seu turno, o seguinte teor:
«(…)
A folhas 115 vieram os réus – ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15.11 – interpor recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão proferido em conferência, que denegou a admissão do recurso por ter tido lugar dupla conforme.
Sustentam que a denegação do recurso de revista com tal fundamento é materialmente inconstitucional, devendo face à matriz do Estado de Direito Democrático” ser admitido “nas causas mais vultuosas, como é o caso” recurso “até ao Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de denegação de justiça e postergação da estrutura piramidal dos Tribunais e sua inservitude, ex vi artigos 1.º, 2.º, 9.º, alínea b), 18.º, n.º 2 e 3, 20.º, n.ºs 1 e 4, 202.º, n.ºs 1 e 2, 209.º, da CRP 1976”.
Ficou claro na decisão singular que conheceu da reclamação e no Acórdão proferido em conferência que a acolheu, que a jurisprudência do Tribunal Constitucional não admite sequer a imposição genérica, no plano constitucional, dum grau de recurso.
Por maioria de razão, não deve ser entendido o texto constitucional como impondo recurso para este Supremo Tribunal nos casos de dupla conforme.
(…)»
4. No seu parecer, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação para a conferência que agora se aprecia.
II. Fundamentação
5. O despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto alicerçou-se nos poderes conferidos ao tribunal recorrido pelo n.º 2 do artigo 76.º, da LTC, tendo este concluído que o presente recurso seria manifestamente improcedente.
Recorde-se que, tanto na reclamação a que se reporta o artigo 688.º do CPC, como no requerimento de fls. 120, manifestaram os reclamantes a intenção de ver apreciada a questão de constitucionalidade relativa aos artigos 721.º, n.º 3 e 721.º-A, n.º 3, do CPC, quando interpretados no sentido de “denegar quer a revista normal, quer a revista excecional, quando existe ostensivamente má decisão judiciária, nas duas instâncias anteriores”, visto que “a estruturação dos tribunais e a matriz de Estado de Direito Democrático, com a sua vertente de tutela das legítimas expectativas, é contrária quer à tese da dupla conforme, quer a quaisquer outras restrições que não estejam democrática e proporcionalmente ancoradas.”
Ora, independentemente de outras circunstâncias igualmente obstativas da admissibilidade do presente recurso, certo é que – talqualmente sublinhado pelo STJ – a questão de constitucionalidade supra enunciada já foi por diversas vezes apreciada pelo Tribunal Constitucional. Com efeito, este vem concluindo, em jurisprudência constante e reiterada, que o texto constitucional não garante, genericamente, o direito a um segundo grau de jurisdição e muito menos a um terceiro (cfr., entre outros, os acórdãos n.º 287/90, 377/96 e 930/96, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), pelo que a compressão do acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça não consubstancia afronta à garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, emergente do artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
Tanto basta para reiterar a “manifesta improcedência” da pretensão dos reclamantes.
III. Decisão
6. Termos em que o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada e, por conseguinte, confirmar o despacho de não admissão do recurso.
Custas pelos reclamantes, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 3 de março de 2014.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.