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Processo nº 825/96 Conselheiro Messias Bento
(Conselheiro Sousa e Brito)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A empresa E...,SA requereu no Supremo Tribunal Administrativo a suspensão de eficácia do acto administrativo contido no Decreto nº 14/95, de 22 de Maio, atribuído ao CONSELHO DE MINISTROS, que determinou a reversão para o domínio público marítimo dos terrenos do estuário do Sado de que era proprietária e que tinham sido desafectados pelo Decreto nº 337/73, de 5 de Julho.
O Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção), pelo seu acórdão de 6 de Novembro de 1995, rejeitou o pedido de suspensão de eficácia assim formulado, com fundamento em que a requerente, ao formulá-lo, não indicara a contra-interessada
(no caso, a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra), nem era caso de a convidar a regularizar a petição, dado que o artigo 40º, nº 1, alínea b), da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos não é aplicável aos meios processuais acessórios previstos nos artigos 76º e seguintes da mesma Lei.
Inconformada com esta decisão, a E.... recorreu para o Pleno do mesmo Supremo Tribunal, com fundamento em oposição de julgados, invocando, para tanto, o acórdão de 18 de Abril de 1991, da mesma Secção, segundo o qual aquele artigo
40º, nº 1, é aplicável ao processo de suspensão de eficácia de actos administrativos. Na alegação então apresentada, a recorrente disse, entre o mais, que a interpretação do referido artigo 40º, nº 1, alínea b), no sentido da sua inaplicabilidade aos pedidos de suspensão de eficácia de actos administrativos,
'contraria frontalmente os princípios da tutela jurisdicional efectiva e da igualdade, garantidos, respectivamente nos artigos 20º e 268º, nºs 4 e 5, e 13º da Constituição, pois que veda às pretensões deduzidas pelos particulares, em sede da suspensão da eficácia de actos administrativos, a adequada tutela jurisdicional' e 'cria, em consequência, situações de injustificada desigualdade entre os pedidos formulados no meio processual acessório da suspensão de eficácia e no recurso contencioso de anulação'.
O Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 3 de Outubro de 1996, negou provimento ao recurso, reafirmando a tese de que o referido artigo 40º, nº
1, alínea b), não é aplicável nos pedidos de suspensão de eficácia dos actos administrativos.
2. É deste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 3 de Outubro de 1996, que vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 40º, nº 1, alínea b), da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, 'na interpretação restritiva que lhe foi dada [...], contrariadora do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20º, 268º, nºs 4 e 5, da Constituição, e criadora de situações de desigualdade em violação do artigo 13º da Constituição'. Neste Tribunal, alegou a recorrente, formulando as seguintes conclusões:
1ª Contrariamente ao afirmado no aliás douto acórdão recorrido, uma interpretação restritiva da alínea b) do nº 1 do art. 40º da LPTA não surge sequer autorizada pela celeridade do meio processual da suspensão da eficácia, pois que a celeridade de qualquer meio processual apenas deve prevalecer sobre as garantias reconhecidas aos sujeitos processuais nos casos expressamente previstos na lei, sob pena de se frustrar o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efectiva, garantido ex vi do disposto nos arts. 20º e 268º/4 e 5 da Constituição; Assim,
2ª E sem embargo da natureza urgente do processo de suspensão da eficácia, nada obsta à regularização da petição por aplicação do art. 40º/1 da LPTA, na medida em que por aplicação do art. 463º/1 do Código de Processo Civil, ao processo especial, no que não estiver regulado, aplica-se o estabelecido para o processo comum; Por outro lado,
3ª É incongruente admitir-se a regularização da petição no recurso contencioso e não admiti-la na suspensão de eficácia de actos administrativos, pois o pressuposto processual da legitimidade não tem autonomia neste último relativamente àquele primeiro; Acresce ainda que,
4ª A celeridade tem inconvenientes e só deve ir até onde a lei o imponha, sob pena de dar lugar a soluções sem o mínimo de garantias de defesa do direito das partes e de uma ponderada decisão; Finalmente,
5ª A argumentação acolhida no aliás douto acórdão recorrido redunda numa visão unilateral dos interesses envolvidos no meio processual acessório da suspensão da eficácia, que sobrepõe o interesse público aos direitos e interesses legítimos dos particulares, ao arrepio do disposto no art. 266º/1 da Constituição; Em consequência,
6ª A doutrina expendida no aliás douto acórdão recorrido contraria frontalmente os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva, garantido nos arts. 20º e 268º/4 e 5 da Constituição, pois que, com fundamento numa ilegítima interpretação restritiva do art. 40º/1/b da LPTA, traduz-se numa autêntica denegação de justiça, com violação grave do princípio da tutela judicial efectiva dos direitos e interesses legítimos dos administrados; Do mesmo modo,
7ª Cria situações de injustificada desigualdade, em violação do art. 13º da Constituição, entre os pedidos formulados no meio processual acessório da suspensão de eficácia e no recurso contencioso de anulação. Nestes termos deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, julgar-se inconstitucional a interpretação restritiva do art. 40º/1 da LPTA sufragada no aliás douto acórdão recorrido. De sua parte, a Presidência de Conselho de Ministros concluiu assim a sua alegação:
1º) O douto Acórdão recorrido limitou-se a fazer a única interpretação admissível face às normas que regulam a suspensão de eficácia dos actos administrativos;
2º) O processo de suspensão de eficácia tem uma natureza urgente, face ao princípio da plena executoriedade dos actos da Administração;
3º) A celeridade do processo não é, assim compatível com a existência de qualquer despacho de aperfeiçoamento;
4º) A não aceitação da regularização da petição num processo de suspensão de eficácia não viola os princípios constitucionais estatuídos nos artºs. 266º, nº
1, 20º e 268º, nº 4 e 5 da Constituição.
5º) A disciplina processual, com a imposição de regras quanto ao funcionamento do processo de suspensão de eficácia, não põe em causa o acesso dos particulares aos Tribunais, não implica qualquer denegação de justiça. Nestes termos deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, julgar-se não inconstitucional a interpretação feita no douto acórdão recorrido.
3. Houve mudança de relator. Cumpre, agora, decidir.
II. Fundamentos:
4. A norma sub iudicio: O artigo 40º, nº 1, alínea b), da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos
(Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho) inscreve-se no Capítulo III e é relativo ao recurso contencioso. Versando sobre a regularização da petição de recurso, dispõe como segue: Artigo 40º (Regularização da petição):
1. Sem prejuízo dos demais casos de regularização da petição de recurso, esta pode ser corrigida a convite do tribunal, até ser proferida decisão final, sempre que se verifique: a). [...] b). A falta ou o erro na indicação de identidade e residência dos interessados a quem o provimento do recurso possa directamente prejudicar.
2. [...]
De acordo, pois, com o que se prescreve na alínea b) do nº 1 do artigo 40º, acabada de transcrever, faltando ou havendo erro na indicação da identidade ou da residência das pessoas a quem o provimento do recurso possa prejudicar, o juiz deve convidar o recorrente a suprir tal deficiência. Significa isto que, indicando o recorrente erradamente a entidade recorrida ou qualquer outro contra-interessado, o juiz não deve rejeitar logo o recurso com fundamento em ilegitimidade do demandado.
Tal preceito legal, como decorre da sua inserção sistemática e dos seus próprios dizeres, rege apenas para o recurso contencioso. Por isso, contrariamente ao sustentado pela recorrente, quando o acórdão recorrido decidiu que a disciplina constante de tal normativo não se aplica ao pedido de suspensão de eficácia dos actos administrativos, não procedeu a qualquer interpretação restritiva. Ao invés, extraiu de tal preceito o sentido que dele directamente se colhe. A interpretação adoptada pelo acórdão recorrido, como nele se informa, é, de resto, a interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo sempre adoptou. A
única excepção é, segundo o acórdão recorrido, a do acórdão de 18 de Abril de
1991 (Processo nº 29.293).
A questão de constitucionalidade que, então, aqui há que decidir consiste em saber se a norma constante da alínea b) do nº 1 do citado artigo 40º assim interpretada – ou seja: interpretada no sentido de não ser aplicável ao pedido de suspensão de eficácia dos actos administrativos (regulado no artigo 76º e seguintes do mesmo diploma legal), não havendo, por isso, aí lugar a convite para regularização da petição – é inconstitucional.
É esta questão que passa a decidir-se.
5. A questão de constitucionalidade:
5. 1. Sustenta a recorrente, em síntese, que a norma sub iudico, interpretada por forma a não ser aplicável ao pedido de suspensão de eficácia, frustra 'o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efectiva, garantido ex vi do disposto nos artigos 20º e 268º, nºs 4 e 5, da Constituição'. E, para além de criar 'situações de injustificada desigualdade, em violação do artigo 13º da Constituição, entre os pedidos formulados no meio processual acessório de suspensão de eficácia e no recurso contencioso de anulação', 'traduz-se numa autêntica denegação de justiça'.
5. 2. Não tem razão a recorrente.
De facto, e começando pelo princípio da igualdade, é óbvio que não é ele violado pela circunstância de, nos recursos contenciosos de anulação, haver lugar ao convite para regularização da petição e de outro tanto não suceder nos pedidos de suspensão de eficácia dos actos administrativos. Tal princípio, com efeito, não proíbe o legislador de estabelecer regimes jurídicos diferenciados; proíbe-lhe tão-só que o faça, quando não exista fundamento material para tanto. A igualdade o que proíbe é o arbítrio legislativo, a adopção de soluções legais irrazoáveis e arbitrárias, porque carecidas de fundamento racional. Ora, o recurso contencioso de anulação é, essencialmente, distinto do pedido de suspensão de eficácia do acto administrativo: nele, impugnam-se os actos administrativos lesivos dos direitos ou interesses legalmente protegidos do recorrente; no pedido de suspensão de eficácia, solicita-se que o acto recorrido ilegal se não execute, dado ser susceptível de causar 'provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso'. Esta diferença essencial entre o recurso contencioso e o pedido de suspensão de eficácia conduz, de resto, a uma diferente tramitação processual num e noutro caso: desde logo, o pedido e suspensão é um processo urgente (cf. artigo 6º da citada Lei de Processo). Essa mesma diferença essencial confere razoabilidade à solução de, no recurso contencioso, haver lugar ao convite para a regularização da petição e de o mesmo não suceder no meio processual acessório, que é o pedido de suspensão de eficácia do acto administrativo, cujo processado não prevê, sequer, a emissão de um despacho inicial, pois, registado o requerimento, a secretaria expede logo notificações por via postal, simultaneamente à autoridade recorrida e aos demais interessados (cf. artigo 78º, nº 2, da citada Lei de Processo).
A norma sub iudicio também não viola o direito a uma tutela jurisdicional efectiva. Na verdade, o interessado continua a poder impugnar contenciosamente os actos administrativos que considere lesivos dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e, bem assim, a poder requerer que tais actos se não executem, verificados que sejam os requisitos enunciados nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 76º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos. Apenas sucede que o requerente do pedido de suspensão de eficácia tem que pôr particular cuidado na elaboração do respectivo requerimento, pois, não havendo lugar a convite para aperfeiçoamento do mesmo, a falta ou erro na indicação dos elementos exigidos no nº 2 do artigo 77º do mesmo diploma legal compromete o
êxito da pretensão. Mas isto não impossibilita o exercício do direito à tutela jurisdicional efectiva, nem torna esse exercício particularmente oneroso.
De resto, a inexistência de convite para aperfeiçoamento do requerimento do pedido de suspensão de eficácia, designadamente quando, em caso como o dos autos, exista erro na indicação dos contra-interessados, justifica-se, desde logo, por se tratar de um processo urgente, no qual, por isso, a celeridade processual faz particulares exigências: na verdade, não podendo, em princípio, a autoridade administrativa, uma vez recebido o duplicado do requerimento, executar o acto administrativo (cf. artigo 80º da Lei de Processo citada), se o processo não for célere, a Administração poderá ver a sua actuação paralisada ou, ao menos, adiada – tudo, com grave lesão do interesse público. Para além de que a celeridade processual é também um valor constitucional, pois só se faz verdadeiramente justiça, quando a mesma se administra 'em prazo razoável e mediante processo equitativo', como se consigna no nº 4 do artigo 20º da Constituição.
5.3. Em conclusão: A norma sub iudicio não é, assim, inconstitucional. Há, por isso, que negar provimento ao recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 11 de Abril de 2000 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida