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Processo n.º 683/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A AUTORIDADE PARA AS CONDIÇÕES DE TRABALHO, Unidade Local de Viseu, condenou a sociedade A., LDA, pela prática de contraordenação p. e p. pelos artigos 521.º, n.º 2, e 554.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, com referência às cláusulas 18ª e 19ª, ambas do CCT celebrado entre a ANET – Associação das Empresas Têxteis e a FEPCES Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e outros, publicado no BTE, n.º 27, de 22/07/2004, na coima de €250,00, bem como no pagamento das quantias em dívida à trabalhadora e segurança social. Pelo pagamento da coima, foi condenado como responsável solidário B., na qualidade de gerente da referida sociedade e nos termos do artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho.
2. A Sociedade A., Lda., e B. impugnaram judicialmente a decisão administrativa, vindo o Tribunal do Trabalho de Viseu, em 27 de junho de 2013, a proferir sentença, na qual recusou a aplicação do artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do disposto no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, julgando procedente a impugnação judicial apresentada por B., que absolveu enquanto responsável solidário pelo pagamento da coima. No mais, confirmou a decisão administrativa impugnada.
A recusa de aplicação do disposto no artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho, foi motivada nestes termos:
«(...) A decisão administrativa condenou ainda o recorrente B., na qualidade de legal representante, como responsável solidário pelo pagamento da coima aplicada à arguida sociedade, invocando para o efeito o disposto no art.º 551.º, n.º 3 do CT.
No entanto, pese embora já anteriormente tenhamos tido outra posição, depois de melhor analisada a questão considerarmos não ser tal normativo aplicável por padecer de inconstitucionalidade material, por violação do art.º 30.º, n.º 3 da CRP no seguimento da jurisprudência do Tribunal da Relação no Acórdão de 20-12-2011.
Na verdade, dispõe o art.º 551.º do CT, na parte que ora interessa, que:
“1 – O empregador é o responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos.
2 – Quando um tipo de contraordenação ou equiparada
3 – Se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores (...)”.
Assim , em conformidade com tal normativo, em caso de infração praticada por pessoa coletiva, os respetivos administradores, gerentes ou diretores respondem solidariamente com aquela no pagamento da coima, independentemente da existência por parte deles de culpa na prática da infração.
O pressuposto essencial para aplicação da aludida responsabilidade solidária, é que estejamos perante uma contraordenação laboral e que o representante da sociedade em causa, o seja legalmente no momento da prática da infração.
É certo que como refere Diogo Vaz Marecos, in Código do Trabalho Anotado, p.1206 “De acordo com o n.º 3 e com o n.º 4 a responsabilidade pelo pagamento da coima é solidária. Trata-se apenas de regras de responsabilidade pelo pagamento, pelo que no processo contraordenacional em concreto, não são arguidos”.
No entanto, melhor analisada a jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra, no seu Ac. de 20-12-2011 no proc. 356/11.0T4AVR.C1, in www.dgsi.pt, terá que se concluir pela inconstitucionalidade material de tal normativo, por violação do disposto no art.º 30.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Na verdade, pese embora a responsabilidade solidária prevista no referido art.º 551.º, n.º 3 do CT se refira apenas ao pagamento da coima, e sendo certo que esta assume enquanto sanção principal, natureza estritamente patrimonial, não sendo convertível em pena de prisão (art.º 89.º do RGCO), a mesma não pode ser vista como um mero direito de crédito do estado.
Efetivamente, a coima constitui uma reação social à contraordenação, sendo, tal como a pena criminal, uma sanção de caráter repressivo.
Assim, atento tal caráter repressivo, o facto típico da contraordenação que não lhe dá origem tem forçosamente de ser imputável a um autor, no sentido de que o mesmo possa ser censurado pela comissão da infração (cfr. art.º 1.º do RGCO).
Na verdade, nas contraordenações laborais e também nas contraordenações em geral, como decorre do art.º 1.º do RGCO, para que haja responsabilidade por uma contraordenação é necessária a prática pelo agente de um facto ilícito, típico e culposo, não existindo neste caso qualquer responsabilidade objetiva ou responsabilidade solidária, esta responsabilidade não deriva de um facto ilícito e culposo pelos mesmos praticado, bastando que a pessoa coletiva seja considerada responsável.
Assim, e como se refere naquele Acórdão da Relação de Coimbra “a responsabilidade solidária dos administradores, gerentes ou diretores assenta, no próprio facto típico que é caracterizado como infração contraordenacional, e não como facto autónomo, inteiramente diverso desse”.
Do exposto resulta, como também se refere naquele acórdão, que “a norma em questão consagra a possibilidade da transmissão da responsabilidade contraordenacional, que é equiparável à responsabilidade penal, o que não é permitido pela Constituição (artigo 30.º, n.º 3), equivalendo à punição dos administradores, gerentes ou diretores em termos de responsabilidade objetiva, ou seja, sem necessidade da verificação da imputação subjetiva a título de culpa”.
Pelo exposto, terá que se considerar que a norma do n.º 3 do art.º 551.º do Código do Trabalho de 2009 padece de inconstitucionalidade material por violar o disposto no n.º 3 do art.º 30.º da Constituição da República Portuguesa, devendo por isso ser recusada a sua aplicação.»
3. O MINISTÉRIO PÚBLICO, invocando as disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea d), 75.ºA, n.º 1, 76.º, n.º 1 e 78.º, n.º 2, todas da LTC, interpôs recurso, obrigatório, da sentença proferida, para o Tribunal Constitucional, peticionando a apreciação da constitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo do artigo 551.º do Código do Trabalho, cuja aplicação fora recusada, por violação do disposto no artigo 30.º, n.º 3 da Constituição, por “prever a transmissão da responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva ou equiparada, aos respetivos administradores, gerentes ou diretores, com base em critérios puramente objetivos”.
O recurso foi admitido.
4. Neste Tribunal, os autos prosseguiram para alegações, que apenas foram apresentadas pelo recorrente, extraindo as seguintes conclusões:
«1. Diferentemente do que ocorre com o artigo 7.º-A do RGIFNA e artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, não se vislumbra no n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho de 2009, que a responsabilidade solidária pelo pagamento das coimas, decorra de uma qualquer conduta própria e autónoma relativamente àquela que levou à aplicação da sanção à pessoa coletiva;
2. Na graduação da coima aplicada à pessoa coletiva, foram tidos em atenção, exclusivamente, os critérios que a ela diziam respeito e nenhuma circunstância que dissesse respeito ao administrador.
3. Assim, a norma constante do n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho, que determina a responsabilidade solidária do representante legal (administrador, gerente ou diretor) da pessoa coletiva pelo pagamento da coima a esta aplicada, é inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. O presente recurso tem como objeto norma constante do n.º 3, do artigo 551.º, do Código do Trabalho, em que se estabelece a responsabilidade solidária dos administradores, gerentes ou diretores de pessoa coletiva ou equiparada, pelo pagamento da coima em que esta seja condenada.
Na decisão recorrida, a aplicação dessa norma foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade material, por violar o disposto no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, entendendo-se que a proibição de transmissão da pena contida nesse preceito é extensível à responsabilidade contraordenacional, vedando nos mesmos termos a transmissão ao gerente da coima imposta nos presentes autos à sociedade, através da estatuição da responsabilidade solidária pelo respetivo pagamento.
O recorrente, em alegações, não acompanha esse entendimento, pois considera que “o princípio da intransmissibilidade das penas (“da responsabilidade penal”) consagrada no artigo 30.º, n.º 3 da Constituição, não é aplicável, sem mais, diretamente em matéria contraordenacional”. Todavia, pugna pela formulação de juízo de inconstitucionalidade por outros parâmetros, invocando violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a partir da consideração que a graduação da coima não teve em atenção “nenhuma circunstância que dissesse respeito ao administrador” e que, segundo o artigo 554.º, n.º 1, do Código do Trabalho, “o critério essencial para encontrar a coima aplicável, tem a ver com o volume de negócios da empresa”.
6. A conformidade constitucional da norma em equação nos presentes autos foi recentemente apreciada por este Tribunal, em Acórdãos proferidos pela 1ª e 2ª secção, concluindo em ambos os casos pela formulação de juízo de não inconstitucionalidade.
6.1. Assim, o Acórdão n.º 180/2014, da 3ª secção, perante conclusões do recorrente com a mesma formulação dos presentes autos, começou por afastar a transposição para o quadro normativo em apreço do entendimento assumido pelo Tribunal em decisões proferidas no âmbito da apreciação da responsabilidade subsidiária consagrada no artigo 7.º-A do RGINFA ou nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, como da responsabilidade solidária pelo pagamento da pena de multa contida no n.º 7 do mesmo artigo 8.º do RGIT.
Na espécie, reiterou-se a jurisprudência que acentua a distinta natureza que afasta a reação sancionatória penal da sanção contraordenacional, mormente no plano do juízo de culpa. E, a partir dessa fundamental diferenciação axiológica de regimes, entendeu-se que, entre os princípios que regem a “constituição criminal”, não haveria concluir necessariamente pela vigência no domínio contraordenacional da intransmissibilidade [da pena] contida no artigo 30.º, n.º 3 da Constituição.
Diz-se no Acórdão n.º 180/2014:
«Quanto a este ponto, importa antes de mais ter em consideração que as diferenças existentes entre o ilícito de natureza criminal e o ilícito de mera ordenação social impede que se possa efetuar uma estrita transposição das normas e princípios constitucionais em matéria penal para o domínio do direito contraordenacional.
Como começou por se afirmar no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/79, de 24 de julho, que introduziu o ilícito de mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa, «hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contraordenação “é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal” [...]. Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal. Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridade administrativa, com o sentido dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às pessoas coletivas e adotar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade».
Admite-se por isso uma variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal e uma autonomia relativa do direito das contraordenações em matérias como as do âmbito de vigência da lei, da responsabilização das pessoas coletivas, da culpa, do erro, da autoria e do concurso (FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra, 2001, pág. 150). No que se refere à culpa, embora o artigo 1º do RGCO caracterize a contraordenação como «o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima», não pode falar-se numa culpa em sentido jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor, que serve como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pág. 151; O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal, pág. 331).
Por outro lado, como a doutrina e a jurisprudência constitucional têm sublinhado, não é o n.º 10 do artigo 32º da Constituição, acrescentado pela revisão constitucional de 1989 - que garante os direitos de audiência e defesa em processos de contraordenação e demais processos sancionatórios -, que permite estender ao ilícito contraordenacional a generalidade do regime substantivo em matéria penal. Essa disposição releva apenas no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004).
Tem-se entendido, de todo o modo, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os constantes do artigo 29º da Constituição, apesar de se restringirem pelo seu teor textual ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções), devem no essencial valer, por analogia, para todos os domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social. Assim se compreendendo que o RGCO consagre o princípio da legalidade (artigo 2º), o princípio da não retroatividade (artigo 3º, n.º 1) e o princípio da aplicação retroativa da lei mais favorável ao arguido (artigo 3º, n.º 2) (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 227/92, 574/95 e 160/2004, na linha do entendimento também sufragado por GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 498).
No entanto, mesmo nesta perspetiva, nada permite concluir, dada a diferença de regimes que regem os dois géneros de ilícitos, que a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal, tenha de implicar, por analogia ou identidade de razão, a intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas de ordenação administrativa que não possuem a mesma ressonância ética (cfr., neste sentido, os citados acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004).»
Afastado o parâmetro constitucional do n.º 3 do artigo 30.º da Constituição, o Tribunal considerou igualmente que a norma questionada não merecia censura face aos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, relevando particularmente a natureza eminentemente civilística – de garantia patrimonial - da responsabilidade nela estabelecida.
Sobre esse plano, afirma-se no Acórdão n.º 180/2014:
«4. Poderia dizer-se, ainda, que a responsabilidade solidária aqui prevista não depende de qualquer comportamento culposo por parte do administrador ou gerente e decorre apenas da imputação do facto à pessoa coletiva – o que pode implicar uma violação do princípio da culpa, como também se invoca na decisão recorrida – e, por outro lado, pode pôr em causa o princípio da proporcionalidade das sanções, na medida em que a coima é aplicada em função da situação económica e de outras circunstâncias apenas atinentes ao autor da infração, que não se transmitem necessariamente ao responsável solidário.
Como já se fez notar, no ilícito de mera ordenação social, as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais, para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social, não podendo invocar-se, por isso, para essa categoria de infrações, um conceito de culpa equivalente ao exigível para a imposição de uma sanção criminal (cfr. o citado acórdão n.º 574/95).
Por outro lado, o que está em causa, na previsão do n.º 3 do artigo 551º do Código do Trabalho, é a solidariedade quanto ao pagamento da coima e não a solidariedade quanto à infração, o que revela que se pretende apenas instituir uma garantia de satisfação da sanção pecuniária contra os riscos inerentes ao próprio funcionamento das pessoas coletivas (JOÃO SOARES RIBEIRO, Análise do Novo Regime Geral das Contraordenações Laborais, Questões Laborais, Ano VII, 2000, pág. 20).
Poderá dizer-se que a razão de ser do regime legal decorre da necessidade de acautelar o pagamento das coimas aplicáveis às pessoas coletivas, prevenindo a possibilidade de estas virem a ser colocadas numa situação de insuficiência patrimonial que inviabilize por motu próprio a satisfação do crédito.
O recurso a um princípio civilístico de solidariedade passiva, para esse efeito – que nunca poderia justificar a transferência de uma responsabilidade penal -, não deixa de ser uma medida compreensível no plano de política legislativa e numa perspetiva utilitarista de eficácia da prevenção contraordenacional. Funciona aqui uma garantia patrimonial que é exigível ao administrador ou gerente em função da sua qualidade de representante legal da pessoa coletiva e em atenção à sua ligação física e funcional à atividade empresarial que é suscetível de envolver a prática de infrações contraordenacionais (neste sentido, JOÃO SOARES RIBEIRO, Contraordenações Laborais. Regime Jurídico Anotado, 3ª edição Coimbra, págs. 335-336).
De facto, a autonomia do ilícito de mera ordenação social em relação ao direito penal reflete-se também na natureza da coima, que é uma sanção exclusivamente patrimonial e que se diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal, e que se não liga à personalidade do agente, o que também explica que não sejam, no caso, invocáveis, como parâmetros de constitucionalidade, os princípios da culpa e da proporcionalidade da sanção.
Por idêntica ordem de considerações, não tem cabimento a invocação da violação do princípio da igualdade.
Não se trata aqui de definir a moldura da coima aplicável a um administrador ou gerente com base em elementos de aferição que apenas respeitem à pessoa coletiva e que são necessariamente diferenciados. O que está em causa é uma responsabilidade solidária que confere ao sujeito individual a condição de garante do pagamento da coima, a qual não deixa de ser fixada, no âmbito do processo contraordenacional, em função da moldura ajustável à personalidade coletiva do devedor primário. Não ocorre, por isso, uma parificação, quanto ao objeto, de situações de responsabilidade que, do ponto de vista da natureza do sujeito responsável, sejam desiguais, e pudesse suscitar uma desconformidade com o princípio da igualdade.»
6.2. O Acórdão n.º 201/2014, da 1ª secção, por seu turno, afasta a resolução da questão de constitucionalidade da qualificação que se dê à natureza da responsabilidade estatuída no n.º 3, do artigo 551.º, do Código de Trabalho, não sem considerar que nela se denotam elementos que depõem no sentido oposto ao da comunicação da responsabilidade contraordenacional que recai sobre a pessoa coletiva ou equiparada. Como, paralelamente, não rejeita que o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal assuma valência no domínio contraordenacional, em termos similares ao que acontece com a projeção nesse âmbito de princípios constitucionais com relevo em matéria penal, ou seja, “não ‘com o mesmo rigor’ ou ‘com o mesmo grau de exigência’ com que valem para o domínio criminal, mas apenas na sua ‘ideia essencial’ ”. E, desenvolvendo juízo de ponderação, conclui-se que a responsabilização solidária dos gerentes, administradores ou diretores de pessoa coletiva, ou equiparada, pelo pagamento de coima laboral, encontra justificação como medida necessária para conferir adequada efetividade ao direito dos trabalhadores reconhecido no artigo 59.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
Assim, refere o Acórdão n.º 201/2014:
«(...) prima facie, também no domínio contraordenacional valerá o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade, devendo tal princípio ser tido em conta na ponderação efetuada, desde logo, pelo legislador na configuração do ilícito contraordenacional.
Por sua vez, deve o Tribunal Constitucional, ao apreciar a conformidade constitucional de uma norma em matéria contraordenacional, verificar se, na ponderação efetuada em sede legislativa, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade foi devidamente integrado.
No que respeita ao critério de densidade de controlo, retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional já referida, que, no domínio contraordenacional, é de reconhecer um maior poder de conformação do legislador, o que vale por dizer que deve o Tribunal limitar-se a um controlo de evidência.
Ora, a norma sub judicio, ao comprimir, é certo, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade, fá-lo em observância de deveres estaduais de proteção ou de prestação de normas, impendentes sobre o legislador ordinário, destinados a proteger bens jusfundamentais face a potenciais agressões provindas de terceiros, que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c) da Constituição.
Com efeito, através da responsabilização dos respetivos administradores, dirigentes ou diretores pelo pagamento de coima aplicada à pessoa coletiva responsável pela contraordenação laboral, o legislador terá pretendido tornar mais eficaz a efetivação do sistema sancionatório num domínio em que a Constituição lhe comete expressamente deveres de proteção, ainda que sacrificando o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade.
Qualquer juízo sobre a razoabilidade da ponderação, efetuada pelo legislador ordinário, passa por pesar a intensidade do sacrifício imposto pela norma sub judicio ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade e a vantagem que através dela se obtém para efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c).
No que respeita ao primeiro aspeto, verifica-se que a norma sub judicio não sacrifica totalmente o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade. Com efeito, os sujeitos ficam apenas responsáveis pelo pagamento da coima, não lhes sendo transmitida a autoria do ilícito contraordenacional em si mesma considerada (v. supra, ponto 6).
A isso acresce que a transmissão da responsabilidade não opera entre indivíduos mas sim entre uma pessoa coletiva, entidade responsável pela contraordenação laboral, e titulares de órgãos executivos dessa mesma pessoa coletiva. Dada a conexão objetivamente existente entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da norma sub judicio, ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a compressão do princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer do seu núcleo.
Por sua vez, no que se refere à vantagem que através dela se obtém para efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), é admissível o entendimento segundo o qual o envolvimento, através da assunção coerciva da responsabilidade pelo pagamento da coima, dos administradores, gerentes ou diretores da pessoa coletiva responsável pela contraordenação-laboral, garante, diretamente, uma maior eficácia na cobrança efetiva da coima, e, através disso, indiretamente, uma mais elevada probabilidade de que a infração não chegará sequer a ser cometida, assim se protegendo melhor bens jusfundamentais.
Assim, porque não é possível, segundo um critério de evidência, asseverar que é desnecessário para efeitos de cumprimento dos referidos deveres de proteção o mecanismo de corresponsabilização pelo pagamento estabelecido no n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho (2009), o Tribunal Constitucional não pode senão deferir perante o juízo formulado pelo legislador sobre a adequação e necessidade do regime legal.»
Na mesma linha argumentativa, o Tribunal igualmente a apontada violação do princípio da culpa:
«O que acaba de ser dito relativamente ao princípio da proibição de transmissão da responsabilidade vale, por maioria de razão e face ao que atrás ficou dito (supra pontos 10 e 11) no que respeita ao princípio da culpa.
É certo que, nos termos da norma sub judicio, o terceiro fica solidariamente responsável pelo pagamento de uma coima, para a determinação da qual, seja a nível de moldura abstrata seja a nível de medida concreta (designadamente atendendo a fatores tais como a situação económica do agente ou o benefício económico que este retirou da prática da contraordenação), não foi ponderado qualquer elemento atinente à sua pessoa, assumindo o mesmo a totalidade do montante sancionatório que resultara da valoração da conduta de um outro sujeito, devedor originário.
Simplesmente, a assunção coerciva, porque fundada na lei, da responsabilidade pelo pagamento de uma sanção estritamente pecuniária, a que se não encontra associado qualquer efeito jurídico estigmatizante, não comprime o princípio da culpa em termos constitucionalmente desconformes, sobretudo atendendo às razões legislativas que servem de justificação para essa compressão, assentes em deveres estaduais de proteção de bens jusfundamentais.
Assim, face às obrigações impendentes sobre o legislador de observância dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal também no domínio das contraordenações, por um lado, e aquelas que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), por outro, a norma sub judicio realiza um equilíbrio constitucionalmente admissível.»
7. A jurisprudência que resulta dos Acórdãos n.ºs 180/2014 e 201/2014 mostra-se inteiramente aplicável no caso em apreço, cujos contornos não oferecem qualquer elemento adicional, nem oferece argumentos que neles não tenham sido confrontados, designadamente nos segmentos supra transcritos, em termos que nos merecem concordância.
Na verdade, importa reiterar que a coima, diversamente do que acontece com a pena criminal, não representa censura dirigida à personalidade do agente e à sua atitude interna revelada na conduta: “antes serve como mera admonição, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas” (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral, Coimbra Ed., 2.º edição, p. 165). Nessa medida, as suas finalidades “são em larga medidas estranhas a sentidos positivos de prevenção, nomeadamente de prevenção especial de socialização” (ob. cit., p. 166). Daí que não se possa comunicar a intensidade que rege o princípio da pessoalidade das penas criminais a outros domínios sancionatórios, do mesmo jeito que não se pode encontrar na normação do n.º 3, do artigo 551.º, do Código do Trabalho, colisão com as exigências do princípio da culpa, tal como configurada no domínio contraordenacional (laboral), reconhecidamente despida de qualquer censura dirigida à pessoa, ético-socialmente fundada.
Note-se, ainda, que outras consequências decorrem do afastamento da natureza pessoalíssima da sanção pecuniária contraordenacional e do não reconhecimento do mesmo grau de exigência que reveste a intransmissibilidade das sanções penais. Diferentemente do que acontece com a pena criminal, mormente com a pena de multa, não valem para a coima (laboral) as razões que levam a negar (e a punir como crime de favorecimento pessoal, nos termos do artigo 367.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal) a possibilidade de satisfação da multa penal por terceiro, ou para vedar a celebração de contrato de seguro que tenha como objeto a sanção (cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pp. 118 e 119), ou, in casu, a responsabilidade solidária pelo seu pagamento.
Cabe, assim, concluir pela formular juízo de não inconstitucionalidade e negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
8. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 551º, n.º 3, do Código do Trabalho, na medida em que determina a responsabilidade solidária dos administradores, gerentes ou diretores pelo pagamento da coima devida por contraordenação laboral cometida por pessoa coletiva ou equiparada;
b) Conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e determinar a sua reforma em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade agora formulado.
Sem custas.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano (vencido pelas razões constantes da declaração de voto apresentada pelo Conselheiro Pedro Machete) – Pedro Machete (vencido conforme declaração em anexo) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO
Na linha do Acórdão n.º 201/2014, considero que as normas da chamada «Constituição penal», entre elas a proibição de transmissão da responsabilidade consignada no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, se traduzem na concretização de princípios fundamentais que no domínio contraordenacional não valem com o mesmo rigor com que valem no domínio penal, sendo por isso necessário, relativamente a soluções legais que comprimam tais princípios, verificar se a intensidade do sacrifício que impõem se encontra num justo equilíbrio com as vantagens para a proteção dos bens fundamentais visada pelas mesmas soluções.
A responsabilidade contraordenacional é definida essencialmente pela cominação de uma coima (artigo 1.º do Regime Geral das Contraordenações constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro), pelo que a estatuição da responsabilidade solidária de alguém pelo pagamento da coima aplicada a um terceiro implica a transmissão de parte essencial de tal responsabilidade.
Sendo as contraordenações previstas no Código do Trabalho da responsabilidade do empregador e sancionadas em função do volume de negócios da empresa e do grau de culpa do infrator (artigos 551.º, n.º 1, e 554.º, n.º 1, daquele diploma), verifica-se que a corresponsabilização, em termos de solidariedade passiva, dos administradores, gerentes e diretores pelo pagamento da coima aplicada nos casos em que o infrator seja uma pessoa coletiva ou equiparada em que aqueles exerçam funções, tal como prevista no artigo 551.º, n.º 3, do citado Código, coloca os responsáveis solidários numa situação mais precária do que se fossem pessoalmente responsáveis pela contraordenação. Tal responsabilidade solidária afigura-se, por isso, excessiva e desrazoável (unzumutbar), na perspetiva das consequências na esfera pessoal dos corresponsáveis. Acresce que a mesma responsabilidade não se mostra indispensável nem à realização dos deveres de proteção extraídos do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, nem, tão pouco, à garantia da cobrança efetiva da coima aplicada à pessoa coletiva – basta citar, a título de exemplo, soluções alternativas que passassem pela imposição aos próprios administradores, gerentes e diretores de pessoas coletivas ou equiparadas de deveres legais de garantia do cumprimento de regras tuteladoras dos direitos dos trabalhadores por conta da empresa ou de deveres de garantia (patrimonial) em caso de não pagamento pela empresa das coimas que lhe tivessem aplicadas (responsabilidade subsidiária). Deste modo, o sacrifício imposto aos administradores, gerentes e diretores de pessoas coletivas ou equiparadas pela transmissão de parte essencial da responsabilidade contraordenacional destas últimas por via da solidariedade passiva quanto ao pagamento das coimas aplicadas não se mostra justificado pelas vantagens obtidas relativamente aos fins de proteção visados pelo artigo 551.º, n.º 3, do Código do Trabalho.
E, consequentemente, a responsabilidade solidária consignada nesse preceito legal viola o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade sancionatória pública.
Pedro Machete