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Proc. nº 300/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, na 1ª Secção, do Tribunal Constitucional
1. - J. P. intentou no Tribunal de Trabalho de Lisboa (1º Juízo), contra CTT – Correios e Telecomunicações de Portugal, S.A, acção com processo comum emergente de contrato individual de trabalho, impugnando o despedimento, no seu entender sem justa causa, ocorrido em 18 de Dezembro de
1992, e pedindo a condenação da demandada a reconhecer o mesmo como ilícito e, consequentemente, a reintegrá-lo no posto de trabalho e na categoria de que era possuidor à data do despedimento e a pagar-lhe as retribuições vencidas e vincendas desde essa data até à sentença, acrescidas dos aumentos salariais de que a categoria vier a beneficiar.
No essencial, alegou ter sido admitido ao serviço da ré em 30 de Junho de 1976, para exercer funções de carteiro, sob orientação e direcção desta, progredindo na carreira até à categoria de técnico de exploração, categoria que detinha até ao despedimento subsequente ao respectivo processo disciplinar.
Contestou a ré, defendendo-se por excepção e impugnação e deduzindo pedido reconvencional.
Na matéria de excepção - única que nos importa considerar - a entidade patronal invocou a incompetência absoluta do Tribunal de Trabalho, em razão da matéria, para conhecer da questão.
Como, na oportunidade, a magistrada da 1ª instância tivesse julgado improcedente a excepção em referência - despacho de 15 de Julho de 1995, a fls. 143 e ss. dos autos -, a ré agravou para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Prosseguiram os autos seus termos até ser proferida sentença, após audiência de julgamento, a qual, debruçando-se sobre a matéria em causa, julgou no sentido de se manter a competência do tribunal quanto ao pedido
(fls. 184 e v.).
Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação da decisão, na parte em que declarou competente para julgar a acção o Tribunal de Trabalho.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 5 de Junho de 1996 (fls. 238 e ss.), negou provimento ao agravo, confirmando o despacho recorrido de 15 de Julho do ano anterior, mas anulou o julgamento, bem como a sentença, por carência de matéria de facto.
Os CTT – Correios de Portugal, SA, mantendo-se inconformados no tocante à competência material dos tribunais de trabalho, recorreram, de agravo, para o Supremo Tribunal de Justiça - recurso que viria a ser recebido para subir imediatamente e nos próprios autos.
Este Alto Tribunal, por acórdão de 16 de Abril de 1997, concederia provimento ao agravo, por considerar incompetente, em razão da matéria, a jurisdição comum - no caso, a jurisdição laboral (cfr. fls. 327 e ss.).
Desta vez reagiu o autor, interpondo recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Pretende que seja apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 9º, nº 2, do Decreto-Lei nº 87/92, de 14 de Maio, 'na parte em que no Douto Acórdão [do Supremo] se considerou nesse preceito fixada a competência dos Tribunais Administrativos para conhecer dos conflitos emergentes entre os CTT e os seus trabalhadores'.
Em sua tese, a interpretação dada a essa norma pelo acórdão viola:
a) o princípio da reserva constitucional em matéria de organização e competência dos tribunais, consubstanciado e previsto no artigo
168º, nº 1, alínea q), da Constituição da República (CR);
b) os princípios da liberdade da iniciativa privada e do grau de intervenção mínima e excepcional do Estado no sector privado, por força do disposto no artigo 87º, nºs. 1 e 2 da CR;
c) o princípio da hierarquia das fontes de direito,
ínsito nos artigos 115º, nº 2, e 122º, nº 1, da CR, 'tendo em conta o disposto no artigo 4º, nº 1, alínea f), do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, diploma publicado ao abrigo da lei de autorização legislativa nº 29/83, de 8 de Setembro, e, ainda, considerando o disposto no artigo 64º, alínea b), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro)'.
Ainda no Supremo, a recorrida apresentou, prematuramente, 'contra-alegações' em que, para além de pugnar pela inexistência de inconstitucionalidades, suscitou, como questão prévia, a 'ilegalidade' da interposição do recurso, por não estarem verificados os pressupostos respectivos.
Já no Tribunal Constitucional apresentou o recorrente – e só ele – as suas alegações.
Nelas formulou as seguintes conclusões:
'1ª - A matéria sobre a competência dos tribunais é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização legislativa, por força do disposto no artº 168º, nº 1, alínea q) da Constituição da República Portuguesa;
2ª - No artigo 9º nº 2 do Dec.Lei 87/92, de 14 de Maio, segundo a interpretação do Acórdão de 16-4-97 do S.T.J., manteve-se a competência dos tribunais administrativos para derimir os conflitos entre os trabalhadores e os CTT, em matéria disciplinar;
3ª - O Dec-Lei nº 87/92, de 14 de Maio, não foi precedido de autorização legislativa, pelo que o artº 9º nº 2 invadiu matéria da competência da Assembleia da República, e, por isso, na interpretação do Acórdão impugnado, está ferido do vício de inconstitucionalidade orgânica e material;
4ª - Actualmente e por força do disposto no 2º do preâmbulo do Dec.Lei 87/92, de
14 de Maio, e art.1º nº 2, do mesmo diploma, os CTT são uma pessoa colectiva de direito privado, e, por isso, é-lhe inaplicável o disposto no artº 46º nº 2 do Dec.Lei nº 260/76, de 8 de Abril;
5ª - Como pessoa colectiva de direito privado as decisões da Administração dos CTT não são, em bom rigor, actos administrativos, tal qual são definidos no artº
120º do Código de Procedimento Administrativo;
6ª - O despedimento do A., promovido pela Ré foi, assim, um acto de direito privado por se tratar do desenvolvimento de uma relação jurídica normal de trabalho subordinado, não submetida ao regime de direito público, não tendo os CTT qualquer posição de supremacia em relação aos seus trabalhadores, e, por isso, não podem decidir autoritariamente a relação jurídica de trabalho;
7ª - O artº 9º nº 2 do Dec.Lei 87/92, de 14 de Maio, ao manter em vigor o regime do recurso hierárquico para o Ministro da Tutela (cfr. artº 26º nº 4 do Dec. Lei
49.568, de 10-11-69), na interpretação do Acórdão recorrido, violou o PRINCÍPIO DA LIBERDADE DA INICIATIVA PRIVADA e do GRAU DE INTERVENÇÃO MÍNIMO E EXCEPCIONAL DO ESTADO NO SECTOR PRIVADO, tal qual está previsto no artº 87º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e, por isso, o preceito em causa está ferido do vício da inconstitucionalidade material;
8ª - As questões de direito privado não são da competência dos tribunais administrativos, como resulta do disposto no artº 4º nº 1, alínea f) do Dec.Lei
129/84, de 27 de Abril;
9ª - A competência dos tribunais administrativos vem regulada nos artigos 26º e
51º do Dec.Lei 129/84, de 27 de Abril;
10ª - O Dec.Lei 129/84, de 27 de Abril, foi publicado ao abrigo da autorização legislativa conferida pela Lei 29/83, de 8 de Setembro;
11ª - Em nenhum dos preceitos indicados do Dec.Lei 129/84, de 27 de Abril, cabe a competência para conhecer dos recursos de actos de empresas privadas;
12ª - Ao estabelecer no artº 9º nº 2 do Dec.Lei 87/92, de 14 de Maio, diploma não precedido de autorização legislativa, a competência da jurisdição administrativa para conhecer dos actos da Administração dos CTT, violou-se o Princípio Constitucional da Hierarquia das Fontes de Direito previsto no artº
115º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e, por isso, o preceito em causa, na interpretação do Acórdão impugnado, está ferido do vício da inconstitucionalidade material;
13ª - Nestes termos e nos mais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade do artº 9º nº 2 do Dec.Lei 87/92, de 14 de Maio, na interpretação dada pelo Acórdão do S.T.J., e, consequentemente, ordenar a baixa do processo ao SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, a fim de ser reformada, em conformidade, a decisão que julgou competente os tribunais administrativos para derimir o conflito, o mesmo é dizer, com a manutenção do juízo sobre a competência fixada pelas instâncias.'
Mais tarde foi o recorrente ouvido sobre a questão prévia equacionada pela recorrida, fundada na não exaustão dos recursos que no caso cabiam, uma vez que ainda há recurso para o Tribunal de Conflitos que, em
última instância, definirá o tribunal competente para apreciar o caso.
Entende o recorrente improceder tal questão, uma vez que inexiste conflito: a questão concreta não foi submetida a duas jurisdições diferentes, pelo que se não vislumbra que conflito poderá suscitar a intervenção daquele Tribunal.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1. 1. - A questão prévia da admissibilidade do recurso.
Defende a recorrida que, no caso subjacente, não se verifica o pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 relativo ao prévio esgotamento ou exaustão dos recursos ordinários, tendo presente que, nos termos do nº 2 desse artigo 70º, esses recursos 'apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam'.
É que, observa, resta ainda, no caso, recurso para o Tribunal de Conflitos, que sobre a matéria proferirá a última palavra (note-se, a este propósito, que, perante o acórdão da Relação, a recorrida agravou para o Tribunal de Conflitos, convocando o artigo 72º, alínea d), do Código de Processo Civil, na redacção então em vigor, recurso esse rejeitado por despacho do Desembargador relator – cfr. fls. 305-v. – por ainda se não verificar o
'conflito configurado' pela interessada).
1.2. - A questão improcede, manifestamente.
Na verdade, os recursos para o Tribunal Constitucional de decisões judiciais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo só têm lugar quando se trate de decisões que já constituam decisão definitiva na ordem judicial de que provêm, por já não admitirem recurso ordinário, em virtude de a lei não o admitir ou de terem sido esgotados os que a lei admite.
Como se observou no acórdão nº 21/87 deste Tribunal
(publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Março de 1987), 'a lógica desta solução consiste em só admitir a intervenção do TC quando a questão tenha sido examinada e decidida por todas as instâncias possíveis na ordem judicial respectiva, por forma a não facilitar o levantamento gratuito de questões de inconstitucionalidade e de modo a poupar a intervenção desnecessária do TC'. Este entendimento veio a informar a jurisprudência sobre a matéria que posteriormente e com frequência se estabeleceu, não se vislumbrando razão válida para não o seguir no caso sub judice.
Por sua vez, e numa segunda ordem de considerações, o recurso para o Tribunal de Conflitos não é um recurso ordinário.
O conceito de recurso ordinário, para efeitos da primeira parte do nº 2 do artigo 70º da Lei nº 28/82, tem sido objecto de reiterada e impressiva jurisprudência constitucional, encontrando-se o seu conteúdo suficientemente condensado (outra é a questão relativa à exigência de prévio esgotamento dos recurso ordinários, sobre cujas divergências jurisprudenciais e sua repercussão no texto da lei deu recentemente notícia o acórdão nº 457/99, ainda inédito).
A ratio do preceito que o exige como pressuposto processual subentende definitividade relativamente à área da ordem jurisdicional em que se integra o órgão decisório. Como se escreveu no acórdão nº 210/97, por publicar, e recentemente se reiterou noutro acórdão que se mantém inédito, o nº
502/98, ' a ratio legis é a de a jurisdição constitucional só ser chamada a reapreciar, por essa via [a do recurso de constitucionalidade] as decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido pregressamente levantada, quando tais decisões constituam a última palavra dentro da ordem judiciária em que se integram os tribunais que a proferiram'.
Ou seja, e de acordo com o último dos acórdãos citados, só podem ser objecto de reapreciação constitucional as decisões que sejam já insusceptíveis de reapreciação na ordem jurisdicional de que provêm.
Desatende-se, por conseguinte, a questão prévia da admissibilidade do recurso.
1.3. - O ora recorrente teve ganho de causa, no que à questão de competência toca, no acórdão da Relação, de 5 de Junho de 1996, que confirmou o despacho de 15 de Julho do ano anterior, da 1ª instância.
Mas, se é verdade que suscitou perante a Relação a questão da constitucionalidade, já não o fez perante o Supremo, ao não contra-alegar no recurso dos CTT, SA.
Os factos ocorreram anteriormente às alterações introduzidas na Lei do Tribunal Constitucional pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, sendo certo que, hoje, face à nova redacção dada ao nº 2 do artigo
72º desse diploma, a questão devia ter sido suscitada adequadamente perante aquele último tribunal, que proferiu a decisão recorrida.
À época, a jurisprudência dividia-se entre o entendimento que viria a ter consagração legal e outro, menos restritivo, que se contentava com a suscitação da questão, não exigindo a suscitação directa perante o tribunal recorrido a quem nele se apresentava como vencedor (cfr., como exemplo do confronto entre as duas teses, os acórdãos nºs. 36/91 e 469/91, publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Outubro de 1991 e 24 de Abril de 1992, respectivamente).
Dada essa controvérsia jurisprudencial, hoje destituída de razão de ser, e considerando que o recurso foi interposto anteriormente à opção feita pelo legislador, não se deixará de se tomar conhecimento do recurso.
2. - A questão de constitucionalidade.
2.1. - Delimitação do objecto do recurso.
2.2.1.- O Decreto-Lei nº 87/92, de 14 de Maio, veio transformar a empresa pública Correios e Telecomunicações de Portugal (CTT) em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, que passou a denominar-se CTT-Correios e Telecomunicações de Portugal, S.A., abreviadamente designada CTT, S.A. (nº 1 do artigo 1º do diploma).
Consoante se lê da respectiva nota preambular, a medida legislativa ficou a dever-se à preocupação governamental em reduzir a dimensão do sector empresarial do Estado, reforçando-se, do mesmo passo, a preparação do sector das comunicações para a concorrência interna e externa, na sequência de (então) recentes iniciativas legislativas, nacionais e comunitárias.
A conversão da empresa pública em pessoa colectiva de direito privado, com o estatuto de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, foi entendida, na ocasião, como a melhor forma de organização e gestão que permita aos CTT 'continuar a preparar, progressivamente e com a prudência que todo o processo requer, a separação, em duas empresas distintas, dos serviços que presta nas áreas fundamentais dos correios e das telecomunicações'.
Posteriormente, aliás, o estatuto jurídico da empresa sofreria outras alterações, como o atesta o facto de, pouco depois, o Decreto-Lei nº 277/92, de 15 de Dezembro, ter criado, por cisão dos CTT, SA., a Telecom Portugal, S.A., e, mais tarde, pelo Decreto-Lei nº 122/94, de 14 de Maio, a Portugal Telecom, S.A..
Os serviços de correio e telecomunicações constituíam, desde o Decreto de 24 de Maio de 1911, uma administração-geral, dotada de autonomia administrativa e financeira, sob a autoridade directa do ministro competente – a Administração-Geral dos Correios, Telégrafos e Telefones – quando o Decreto-Lei nº 49 638, de 10 de Novembro de 1969, reconhecendo 'a relevante importância que os serviços de correios e telecomunicações assumem no processo de desenvolvimento económico e social' do País, lhe alterou a natureza jurídica, constituindo uma 'empresa pública do Estado' denominada 'Correios e Telecomunicações de Portugal' (cfr. o seu artigo 1º), a reger-se pelo Estatuto publicado como Anexo I a esse diploma.
Na economia do acórdão e no desígnio de delimitar o objecto do recurso, interessa reter que, dada a modificação operada e a sua natural repercussão no estatuto jurídico do respectivo pessoal, o legislador do Decreto-Lei nº 87/92 dispôs, a este respeito, no nº 1 do artigo 9º, que todos os trabalhadores e pensionistas dos CTT, empresa pública, mantinham os direitos e obrigações de que eram titulares, obrigando-se os CTT, S.A., a assegurar a manutenção do fundo de pensões do pessoal daquela empresa pública.
E prescreveu, no nº 2 do artigo 9º:
'Os regimes jurídicos definidos na legislação aplicável ao pessoal da empresa pública Correios e Telecomunicações de Portugal vigentes nesta data continuarão a produzir efeitos relativamente aos trabalhadores referidos no número anterior.'
2.1.2.- Ora, contrariamente ao entendimento professado na 1ª instância e na Relação, que reconheceram ao foro laboral competência para apreciar uma questão como a dos autos, de matriz disciplinar, submetida a uma sucessão no tempo de regimes jurídicos distintos, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou outra orientação, atribuindo competência para conhecer da questão à jurisdição administrativa.
Ao decidir desse modo, uma vez colocado perante o problema de determinar o foro competente para conhecer das questões relativas aos trabalhadores da empresa ora recorrida, oriundos da antiga empresa pública, o Supremo Tribunal de Justiça optou pela corrente jurisprudencial de maior expressão – mormente, no quadro da legislação então em vigor, a partir do acórdão do Tribunal de Conflitos, de 21 de Fevereiro de 1985, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 344, págs. 264 e segs. – que reconhece a competência do foro laboral para o conhecimento dos conflitos não disciplinares surgidos entre essa entidade patronal e os seus trabalhadores, mantendo a competência dos tribunais administrativos para o julgamento, na área disciplinar, dos recursos relativos aos trabalhadores da empresa à data do início da vigência do Decreto-Lei nº 87/92 (cita-se, a título de exemplo, o acórdão de 10 de Fevereiro de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – ano I, tomo I, (1993), págs. 251 e segs., aí se referindo outros arestos).
É elucidativa a ponderação feita no acórdão neste específico ponto.
Após se sublinhar a motivação da iniciativa legislativa, conclui-se pela incompatibilidade das funções desempenhadas pelos trabalhadores da empresa com uma 'pura e simples sujeição às leis laborais comuns, as que disciplinam o relacionamento laboral privado', tendo em conta, designadamente, os 'altos interesses públicos' que continuam a cargo da recorrida.
Escreveu-se mais, neste aresto:
'[...] os trabalhadores que serviam na empresa pública Correios e Telecomunicações de Portugal (CTT) tinham um estatuto disciplinar próprio que, no essencial, lhes dava muito maior segurança e protecção no emprego que as leis laborais do domínio privado. Não se compreenderia que o Estado, sem mais nem porquê, por simples acto legislativo [...] lhes retirasse esse estatuto mais favorecedor.
É que não oferece dúvidas que o Estatuto Disciplinar dos funcionários públicos dá muito maior segurança aos trabalhadores que as leis laborais privadas.'
E mais adiante, reafirmando a perspectiva da maior segurança que o Estatuto Disciplinar concede aos trabalhadores da função pública, observou-se, ainda, com interesse para a questão em análise:
'A admitir-se o contrário, os trabalhadores viam reduzidos os direitos que tinham perante a sua entidade patronal – esta agora com nova caracterização – e sem que para o efeito tivessem dado o seu consentimento. Pelo contrário, ao que consta dos autos, parece que tal alteração dos direitos dos trabalhadores, vistos no seu conjunto, resultava de puro acto legislativo, sendo que o direito a um certo tipo de procedimento disciplinar é um ponto de maior importância na relação jurídica do trabalho. Foi precisamente esta aproximação com a função pública que o legislador quis salvaguardar ao redigir o artigo 9º do Decreto-Lei nº 87/92, de 14 de Maio, daí que o Estatuto Disciplinar que os trabalhadores da anterior empresa fosse obrigatoriamente assumido pela sucessora.'
A tese professada pelo Supremo Tribunal de Justiça não
é, na verdade, a única.
Assim, quase simultaneamente ao aresto recorrido, de 16 de Abril de 1997 (encontra-se publicado nos Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, nº 431, págs. 1351 e segs.), o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 30 de mesmo mês (publicado no Boletim citado, nº
466, págs. 322 e segs.), pela primeira vez (segundo consta da respectiva anotação), considerou aplicável ao pessoal oriundo dos CTT o regime observável, em matéria disciplinar, do contrato individual de trabalho (orientação posteriormente reafirmada, como o demonstram, v.g., os acórdãos de 30 de Outubro de 1997, 6 de Maio de 1998 e 11 de Novembro de 1998, proferidos nos processos nºs. 38 121, 36 355 e 41 346).
2.1.3.- Como é óbvio, não tem o Tribunal Constitucional competência para se pronunciar sobre a decisão recorrida, em si mesma considerada.
O certo é que, no entanto, foi questionada pelo recorrente a interpretação dada ao nº 2 do citado artigo 9º, no sentido de que nela se fixou a competência dos tribunais administrativos para conhecer dos conflitos emergentes entre a entidade patronal recorrida e os seus trabalhadores.
Admitindo – o que não deixa de ser problemático – que o tribunal recorrido aplicou a norma sob sindicância com essa interpretação, está em causa um controlo normativo e não propriamente uma censura à decisão em si, ao critério seguido por esse tribunal face à dualidade de regimes e à dimensão jurisprudencial quanto à observância de um deles, com natural exclusão do outro.
3.1. - Defende o recorrente que a interpretação normativa perfilhada pelo tribunal recorrido implica violação do princípio da reserva constitucional em matéria de organização e competência dos tribunais, dado se tratar de norma sobre matéria da reserva de competência da Assembleia da República sem para o efeito o legislador se ter munido de credencial parlamentar.
Configurar-se-ia, assim, violação do disposto na alínea q) do nº 1 do artigo 168º da CR (correspondendo, no texto oriundo da IV Revisão Constitucional, a alínea p) do nº 1 do artigo 165º), nos termos da qual é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre 'organização e competência dos tribunais'.
Nesta perspectiva, uma vez que o diploma em que se insere não foi precedido de autorização legislativa, a norma do nº 2 do artigo
9º terá invadido matéria da competência da Assembleia da República.
3.2. - Não se aceita semelhante entendimento.
É que, na verdade, e como, aliás, decorre da tese professada pelo acórdão recorrido que as passagens transcritas documentam suficientemente, não obstante a alteração verificada na natureza jurídica da pessoa colectiva em causa, manteve-se a competência dos tribunais administrativos para o julgamento dos recursos de âmbito disciplinar no tocante aos trabalhadores da mesma vindos da sua anterior estrutura como empresa pública.
Ora, como se observou pertinentemente no acórdão deste Tribunal nº 268/97 (publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Maio de
1997), o Governo tem de munir-se de autorização legislativa para editar normas que alterem a distribuição de competência entre tribunais pertencentes a ordens jurídicas diferentes, uma vez que só desse modo pode legislar sobre matérias da competência legislativa parlamentar delegável.
Não é este, manifestamente, o caso dos autos.
De facto, é evidente não ser a norma em causa inovadora, no sentido de intervir na definição da competência dos tribunais, alterando-a, de modo a que daí resulte, na verdade, alteração das competências legalmente definidas.
Na verdade, a necessidade de autorização legislativa apenas é exigível se ocorre modificação das regras de competência judiciária material, com natural reflexo na distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais.
Assim sucederia se a norma em causa dispusesse sobre a competência dos tribunais, ao subtrair, por exemplo, competência a certa espécie de tribunais, atribuindo-a a outra. Seria óbvio que se legislara sobre competência dos tribunais, uma vez que a uns se retirara a possibilidade de conhecer da matéria em causa e a outros se concedera essa competência – o que significa modificar a competência de tais órgãos, como explicitamente se salientou no acórdão nº 72/90, deste Tribunal, publicado no Diário da República, I Série, de 2 de Abril de 1990.
Como igualmente se ponderou noutro aresto, '[...] para editar normas que visem modificar as regras de competência judiciária material
(ou seja: para modificar as regras atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais) que o mesmo é dizer pelos diferentes tribunais dispostos horizontalmente (no mesmo plano), sem que, por conseguinte, haja entre eles relação de supraordenação e subordinação, o Governo tem de estar munido de autorização legislativa.
É que, seja qual for o alcance a atribuir à reserva legislativa, no ponto em que ela tem por objecto a definição da «competência dos tribunais», há-de incluir-se, aí, sem dúvida, a definição da competência dos tribunais (maxime, dos tribunais judiciais) ratione materiae (cf., neste sentido, entre outros os Acórdãos deste Tribunal nºs. 36/87, 356/89 e 72/90, publicados no Diário da República, 1ª série, de, respectivamente, 4 de Março de
1987, 23 de Maio de 1989 e 2 de Abril de 1990).' (cfr. acórdão nº 271/92, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1992).
Observe-se que os diplomas legislativos posteriores ao Decreto-Lei nº 87/92, que alteraram a natureza jurídica da empresa recorrida – os já citados Decretos-Lei nº 277/92 e 122/94 – contém preceitos idênticos à norma sindicanda. É o caso do nº 2 do artigo 3º do primeiro desses textos legais
('os regimes jurídicos definidos na legislação aplicável ao pessoal dos CTT,S.A., oriundo dos CTT, E.P., continuarão a produzir efeitos relativamente aos trabalhadores, pensionistas e beneficiários abrangidos por esses regimes e transferidos para a Telecom Portugal, S.A:') e do nº 3 do artigo 5º do diploma de 1994 ('os regimes jurídicos definidos na legislação aplicável por virtude do disposto no nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 277/92, de 15 de Dezembro, continuarão a produzir efeitos relativamente aos trabalhadores, pensionistas e beneficiários abrangidos por esses regimes').
As normas em questão integram-se, assim, em complexos normativos de feição garantística, destinados a acautelar os interesses de carácter económico e social de um determinado grupo de trabalhadores, os oriundos da antiga empresa pública, ainda em efectividade de serviço ou já com o estatuto de pensionistas. Esses regimes articulam-se com o Regulamento Disciplinar dos trabalhadores daquela empresa pública, constante, como Anexo I, da Portaria nº 348/87, de 28 de Abril, e o Regulamento do Conselho Disciplinar, integrando o Anexo II, os quais, por sua vez, estão em conexão com o Estatuto Disciplinar da empresa cujo artigo 26º, nº 4, dispõe no sentido da jurisdição administrativa como competente para os conflitos de natureza disciplinar (como, de resto, o mesmo se dispôs na cláusula 20ªdo Acordo de Empresa entre CTT, Correios de Portugal, S.A., e o SNCT – Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações e outros, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, nº 21, 1ª Série, de 8 de Junho de 1996, do seguinte teor: '1 – Os trabalhadores estão sujeitos ao poder disciplinar da empresa, nos termos do respectivo regulamento disciplinar e do regulamento do conselho disciplinar, aprovados pela Portaria nº 348/87, de 28 de Abril. 2 – Aos trabalhadores admitidos após 19 de Maio de 1992 aplica-se o regime disciplinar da lei comum do trabalhador, até à definição de novo regulamento disciplinar').
Ora, mesmo adoptando-se, para quem assim o defenda, um sentido da norma ora questionada que passe por uma interpretação restritiva da noção de 'regimes jurídicos' nela constante, limitando-os aos 'regimes jurídicos que se ocupam de aposentações, pensões de sobrevivência, segurança social e esquemas complementares (como fundos de pensões), estatutos remuneratórios, regime de antiguidade, duração de trabalho e outras regalias de carácter económico e social', deles se subtraindo o regime disciplinar, como se defende
(por maioria) no parecer da Procuradoria-Geral da República nº 8/98, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Março de 1999, mesmo nestes casos, e independentemente de se poder afirmar que, modernamente, e essencialmente por razões de ordem pragmática, a tendência será a de sujeitar o pessoal das empresas públicas e até de institutos públicos a um regime laboral de natureza privada, o certo é que sempre se poderá continuar a afirmar que a norma do nº 2 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 87/92, não se recorta como norma de competência, antes se assumindo como norma de manutenção de um status quo ante, nada dispondo, muito menos inovatoriamente, sobre competência dos tribunais, que o mesmo é dizer, não ofendendo, como tal, o disposto constitucionalmente em matéria de reserva legislativa nessa área.
O mesmo se diga na perspectiva da revogação da Portaria nº 348/87, que tinha como 'sustentáculo legal' o Decreto-Lei nº 49 368.
Pode, assim, concluir-se que não se está em face de uma norma de competência. E deve sublinhar-se que a dualidade de regimes, que não se deixa de reconhecer, não tem nem significa um sinal de intervenção pública na matéria, limitando-se a garantir aos trabalhadores oriundos da empresa pública o regime de que beneficiavam, em ordem a evitar-lhes alteração das posições jurídicas por eles usufruídas, com eventual projecção negativa no plano dos direitos e garantias respectivos.
4. - Considera ainda o recorrente que a interpretação dada viola o princípio da liberdade da iniciativa privada e do grau de intervenção mínima e excepcional do Estado no sector privado, acolhido nos nºs. 1 e 2 do artigo 87º da CR, na medida em que se remetem os eventuais conflitos de matriz disciplinar entre os trabalhadores oriundos da antiga empresa pública e a entidade patronal, com a sua actual natureza jurídica de direito privado, para a jurisdição administrativa.
Não são, no entanto, os mesmos, nem se interseccionam, os planos em que se integram aquela norma constitucional e a de direito infra-constitucional ora em discussão.
A norma constitucional respeita à organização económica do Estado, é expressão da sua Constituição económica, decorrendo a liberdade de conformação do legislador ordinário, neste domínio de intervenção do Estado, de uma modelação constitucional que subentende um determinado indirizzo político-legislativo seja na intervenção directa, em que o Estado se assume como agente económico, seja, indirectamente, na disciplina, orientação e controlo da vida económica (cfr., v.g., a este propósito, J.M. Coutinho de Abreu, 'Limites Constitucionais à Iniciativa Económica Privada' in – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor A. Ferrer Correia, III, Coimbra, 1991, pág. 417; António L. Sousa Franco e Guilherme d’Oliveira Martins, A Constituição Económica Portuguesa – Ensaio Interpretativo, Coimbra, 1993, págs. 210 e segs.; Paulo Otero, Vinculação e Liberdade de Conformação Jurídica do Sector Empresarial do Estado, Coimbra,
1998, págs. 199 e segs.).
Por seu turno, a norma em sindicância – repete-se - não
é uma norma de competência, sequer. Integrada em diploma que transformou uma empresa pública em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, integra o regime transitório formal que o legislador entendeu dever estabelecer relativamente aos trabalhadores que, oriundos da primeira transitaram para a segunda, acolhendo uma solução compaginável com uma situação estabilizadora que pode ser entendida como precipitação da tutela da confiança (se se reconhecer maior valor garantístico ao regime disciplinar de direito público, o que, de qualquer modo, não interessa abordar neste lugar).
Sempre – e de qualquer modo – não se está perante uma iniciativa legislativa 'fraudatória' do texto constitucional, cuja cassação se imponha, para utilizar a terminologia de acórdãos deste Tribunal que defrontaram a problemática constitucional da intervenção do Estado na iniciativa privada
(cfr., v.g., os acórdãos nºs. 186/88 e 444/93, publicados no Diário da República, II Série, de 5 de Setembro de 1988 e 19 de Outubro de 1993, respectivamente).
5. - Finalmente, ainda se dirá não se surpreender, com este regime, violação do princípio da igualdade, vertente de constitucionalidade que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, abordou, para a afastar.
Tendo presente que os trabalhadores da recorrida tinham,
à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 87/92, celebrado contrato ou com a antiga Administração-Geral ou com a anterior empresa pública, nem por isso o Supremo detectou desigualdade constitucionalmente relevante no confronto desses trabalhadores e seu regime com a disciplina a que ficaram sujeitos todos os que ingressaram na recorrida já sendo esta uma sociedade anónima.
E, para o efeito, considerou o disposto no clausulado do acordo da empresa já aludido e descrito como demonstração da dualidade de regimes sem implicar lesão daquele princípio constitucional da igualdade.
Entende-se que essa diferenciação de regime não afecta esse valor constitucional.
Como é pacífico o princípio da igualdade exige que se dê tratamento igual ao que é essencialmente igual e se trata diferentemente o que for essencialmente dessemelhante.
A observância deste princípio, consagrado no artigo 13º da CR, não significa proibição de distinções de tratamento mas interdita as que estabeleçam diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento legal bastante.
Nada impede, na verdade, que o legislador estabeleça uma dada diversidade de regimes jurídicos para os trabalhadores de uma mesma entidade patronal desde que essa diversidade tenha sido ditada por razões objectivas, adequadas e não desproporcionadas (cfr., por todos, acórdão nº
564/98, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Março de 1999).
No concreto caso, não se afigura desrazoável, inadequada e desproporcionada a coexistência dos dois regimes, uma vez que eles não foram impostos arbitrariamente, encontrando-se constitucionalmente legitimada a sua diversidade, consoante se tentou demonstrar.
6. - Na lógica do exposto não é naturalmente, sustentável invocar, como o recorrente faz, o 'princípio constitucional da hierarquia das fontes de Direito previsto no artigo 115º, nº 2, da Constituição' (hoje nº 2 do artigo 112º).
III
Pelos fundamentos expostos decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 22 de Fevereiro de 2000 Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa