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Processo n.º 1349/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 105/2014:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos B. e C. ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (de ora em diante, LTC), foi interposto recurso, de acórdão proferido, em conferência, pela 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 29 de outubro de 2013 (fls. 476 a 490), para que se aprecie a constitucionalidade das seguintes interpretações normativas extraídas, respetivamente, dos artigos 508º-A, n.º 1, 508º-B, n.º 1, por um lado, e, por outro lado, dos artigos 201º e 668º, n.º 1, alíneas b), c) e d), e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (CPC):
«a) possibilidade de conhecer do mérito em despacho saneador por simples consignação nesse mesmo despacho, desprezando a tramitação exigida pelos dispositivos processuais dos art.ºs 508.º-A, n.º 1, e 508.º-B, n.º 1, ambas as alíneas, como resulta do efeito da decisão de 1.ª instância sem expressão textual fundante (fls. 339, § último do Relatório);
b) arguição de nulidades expressas e emergentes em sentença sujeitas à regra do art.º 201.º do Código de Processo Civil e não às expressas no seu art.º 668.º, mormente no n.º 1, alíneas b), c) e d), e no n.º 3 (acórdão TRL, pág. 9, § 4.º e 6.º).» (fls. 501)
De acordo com o recorrente, tais interpretações seriam violadoras dos artigos 3º, n.º 2, 9º, alínea b), 13º, 20º, n.ºs 1, 4 e 5, 26.º, n.º 1, 202.º, n.º 2, e 203.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 10 de dezembro de 2013 (fls. 506), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que algum, ou alguns, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. É por demais evidente que a interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida não corresponde a nenhuma daquelas que o recorrente fixou como objeto do presente recurso. Conforme resulta inequívoca da mesma:
«1) As nulidades imputadas pelo recorrente ao acórdão recorrido não se verificam; salvo o devido respeito, a sua arguição mostra-se de todo deslocada.
Efetivamente, conforme já foi claramente explicado ao autor, quer pela magistrada da 1ª instância ao pronunciar-se sobre a nulidade arguida (artº 668º, nº 4, CPC), quer pela Relação ao julgar a apelação, não houve despacho algum a dispensar a audiência preliminar.
(…)
No caso dos autos, a nulidade cometida foi outra. Na verdade, tendo julgado, como julgou, a ação no despacho saneador, e sem precedência de audiência preliminar, a julgadora estava obrigada a ditar em tempo oportuno um despacho justificando a dispensa desta, nos termos do artº 508º-B, CPC. Omitindo-o cometeu uma nulidade enquadrável no artº 201º, nº 1, CPC, por estar em causa a prática de um ato passível de influir no exame ou na decisão da causa. Simplesmente, a nulidade ficou sanada a partir do momento em que o autor não a arguiu no prazo legal de dez dias, prazo este que expirou, como é evidente, ainda antes do da expedição do recurso de apelação para o tribunal da 2ª instância (artº 205º, nºs 1 e 3, CPC). Tanto basta para se poder concluir com segurança que caem pela base, por falta de fundamento, as nulidades arguidas pelo recorrente, o mesmo sucedendo, logicamente com as inconstitucionalidade suscitadas.» (fls. 486 e 487)
E, com efeito, assim é. Torna-se por demais evidente que a decisão recorrida aceitou que o despacho saneador proferido no tribunal de primeira instância padecia de nulidade. Porém, mais considerou que o recorrente não invocou, de modo tempestivo, essa mesma nulidade. Como tal, podem extrair-se as seguintes conclusões, para efeitos dos presentes autos de recurso de constitucionalidade: i) não há interesse processual no conhecimento da primeira questão de inconstitucionalidade normativa (relativa à preterição das formalidades previstas nos artigos 508º-A e 508º-B do CPC), visto que a própria decisão recorrida já o reconheceu, tendo porém adotado um fundamento alternativo que conduziu à negação de provimento da pretensão do ora recorrente; ii) a decisão recorrida não aplica a segunda interpretação normativa, nem sequer fazendo referência à questão da eventual aplicabilidade do artigo 668º, n.º 1, alíneas a), b) e d), do CPC (como, aliás, admite o recorrente que apenas reporta essa questão à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa – vide fls. 501). Assim sendo, por não ter sido efetivamente aplicadas, conforme exigido pelo artigo 79º-C da LTC, conclui-se pela impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso.
Além destes motivos, mesmo que se admitisse que a decisão recorrida havia aplicado qualquer uma daquelas interpretações normativas – o que não se admite e por mero esgotamento de fundamentação se pondera –, sempre se diria que nem sequer ocorreu uma suscitação processualmente adequada da inconstitucionalidade de qualquer delas. É, aliás, a própria decisão recorrida a salientá-lo:
«Quanto a estas, aliás, o STJ estaria sempre impedido de sobre elas se pronunciar, uma vez que, em termos rigorosos, e como se deduz, quer do corpo das alegações, quer das conclusões, o autor taxa de inconstitucional a concreta decisão impugnada e não a interpretação de normas jurídicas nela aplicadas.» (fls. 487)
E, com efeito, devidamente compulsadas as alegações de recurso deduzidas perante o Supremo Tribunal de Justiça, comprova-se que o recorrente não suscitou, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, antes tendo-se centrado na (alegada) incorreção do próprio ato jurisdicional que corporizou a decisão. Para além disso, a mera referência a uma alegada inconstitucionalidade “da interpretação assim dada ás normas do Código de Processo Civil (…)” – constante do § 5.º das suas conclusões de recurso (fls. 458) – não constitui suscitação processualmente adequada de questão de inconstitucionalidade normativa, visto que o recorrente não logrou identificar qual ou quais as específicas interpretações (alegadamente) adotadas pelos tribunais recorridos seriam desconformes à Lei Fundamental. Evidentemente, o n.º 2 do artigo 72º da LTC não se basta com a mera alegação da inconstitucionalidade de uma certa (mas indeterminada) interpretação normativa, sem que essa invocação seja acompanhada da especificação do concreto juízo interpretativo levado a cabo.
Todas estas razões que obstam ao conhecimento do objeto do recurso, sentido no qual se conclui.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente veio deduzir a seguinte reclamação, nos seguintes termos, que ora se sintetizam:
«(…)
7.º
Daí a irrazoabilidade, data venia, da tese plasmada sumariamente nesta subida instância extraordinária de que a questão controvertida - da ilegal omissão de audiência preparatória na vertente da nulidade emergente dos dispositivos dos art.ºs 668.º, n.º 1, alíneas a), b) e d), do CPC - não teve tutela no STJ, considerando ser esta a decisão recorrida ante Tribunal Constitucional, quando, de facto, ela teve apreciação e decisão fixando a obrigatoriedade desse ato instrutório ou dispensa fundamentada em despacho bastante, como já se havia deixado dito supra.
8.°
Por isso mesmo o reclamante ao fixar o objeto do recurso constitucional afirmou como violador dos direitos fundamentais o entendimento das normas - conjugadas e/ou alternativas - dos '( ... )art.ºs 201.º e 668.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), e n.º 3, 508.º-A, n.º 1, e 508.º-B, n.º 1, em ambas as alíneas, e n.º 2, todas do Código de Processo Civil, na redação anterior à que emerge da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.'.
9.°
Elencando no § 3.º desse requerimento as duas teses essenciais que consubstanciavam tal interpretação, naquilo que lograva alcançar, - vista até a rejeição de aclaração que o TRL expressou anteriormente - sendo a primeira delas meramente colateral, porque resolvida em sede de STJ, para enquadrar os termos de apreciação de inconstitucionalidade da norma adotada pelas instâncias percorridas sobre o momento e forma processual a adotar para a suscitação da nulidade que se patenteava.
10.°
Para afirmar ainda a regularidade e persistência na sua suscitação ao longo do processado indicando com precisão no § 4.º desse mesmo requerimento: 'Estes entendimentos normativos, assim aplicados sucessivamente pela 1.ª instância quanto à primeira, pela Veneranda Relação de Lisboa no que concerne à segunda, esta confirmada agora pelo Supremo Tribunal de Justiça, violam ( ... )'.
11.°
Ou seja, para se apreciar devidamente a questão do modo, momento e norma tutelar de arguição da nulidade processual emergente de 'dispensa” não declarada previamente nem fundamentada de realização de audiência preparatória não se poderia escamotear o objeto, amplitude e efeitos reais dessa omissão, deixando assim expresso primeiro a questão colateral originária do recurso ante este Tribunal, a nulidade, para bem se entender a questão essencial ainda sobreviva após o douto acórdão do ST J, a da adequação formal da arguição dessa nulidade, tudo numa unidade percetiva e conceptual indissociável para a finalidade recursiva sub judice.
12.°
Sem que se possa dizer - salvo o devido e merecido respeito, que muito é - que é errado dizer que o tribunal de 1.° instância dispensou a audiência preliminar, antes não exarou despacho dessa considerada 'dispensa', pois que - vista até a falta de aclaração pelo Venerando TRL que afastasse quaisquer dúvidas - O reclamante, pragmaticamente e com sentido de utilidade prática de redução da questão controvertida ao seu real e efetivo alcance prático processual, utilizou a expressão 'dispensa' no sentido duplo de afastamento da realização de audiência preliminar e de omissão do despacho obrigatório que a podia afastar, sendo notório e insofismável que estas duas vertentes e refulgindo a nulidade invocada da segunda delas que coloca fora da lei a primária.
13.°
É que, como se veio a assentar em sede de ST J a audiência preliminar pode ser dispensada, porém através de despacho próprio que, preliminarmente, indique os fundamentos dessa dispensa, de forma percetível para facultar entendimento perfeito que conduza à sua sindicância ou conformação processual.
14.°
Inexistindo 'dispensa' do dever de decidir expressa e previamente a questão de 'dispensar' aquela diligência vestibular da instrução para julgamento, fica coartada ao litigante judicial a possibilidade de recurso que a Lei Fundamental pretende garantir, e garante.
15.°
Importando saber, assim e por isso, qual o modo adequado de reagir processualmente:
a) na interpretação das instâncias a arguição na mesma sede de nulidade em tempo e modo previstos no art.º 201.º, n.º 1, do Código de Processo Civil vigente à época;
b) na humilde tese do reclamante em recurso da sentença direta e imediatamente prolatada conforme o preceito do art.º 668.º, n.º 1, alíneas a), b) e d), e, em especial, do seu n.º 3, que impõe que só em caso de a decisão não comportar recurso ordinário a sua suscitação poderá ocorrer ante o tribunal que a cometeu.
16.º
Sendo a ação em apreço suscetível de admitir recurso ordinário e estando a nulidade de omissão de atos e diligências essenciais - quer a 'dispensa” de audiência preliminar, quer a omissão do dever de a 'dispensar' em despacho intercalar - afigura-se ser a tese perfilhada pelo ora reclamante a passível adoção à luz dos direitos constitucionais, violando-se as normas indicadas, entre outras e ferindo fatalmente os mais básicos padrões de justiça, salvo o mesmo respeito.
17.º
Prejudicando-se a boa apreciação dessa questão fundamental sem se verificar em simultâneo o modo, tempo e regras processuais que originam a nulidade arguida, para se decidir sobre a adequação formal que compete fazer tramitar, repete-se.
18.º
Em súmula, se dirá que:
?a dispensa de audiência preliminar em processo civil deve ser exarada e fundamentada, de facto e de direito, em despacho prévio, sujeito a recurso nos termos da lei;
?quer essa dispensa quer a autodispensa de despacho prévio constituem nulidades processuais a arguir logo que conhecidas;
?tomando conhecimento da sua existência através da sentença final - que nada diz sobre essa dupla obrigação - a parte litigante com legitimidade para agir só pode suscitar a nulidade fora do recurso se este não for admissível;
?a boa apreciação da questão de adequação formal da arguição de nulidade emergente da falta de dispensa prévia ampara-se à matéria legislativa da obrigatoriedade de realização da diligência omitida ou da sua dispensa em ato expresso previamente, num todo indissociável.
?Patenteia-se nos presentes autos ofensa e violação dos direitos fundamentais de submissão à legalidade, de igualdade, de recurso e de administração de justiça segundo processo equitativo e célere que é mister da mais básicos conceitos de justiça desagravar e sanar.»
3. Notificados para o efeito, os recorridos deixaram esgotar o prazo sem que tenham vindo aos autos apresentar qualquer resposta.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. O reclamante não logra aduzir qualquer argumento adicional passível de abalar a justeza da decisão reclamada. Com efeito, recorde-se e reitera-se que nela se decidiu que:
«(…) Torna-se por demais evidente que a decisão recorrida aceitou que o despacho saneador proferido no tribunal de primeira instância padecia de nulidade. Porém, mais considerou que o recorrente não invocou, de modo tempestivo, essa mesma nulidade. Como tal, podem extrair-se as seguintes conclusões, para efeitos dos presentes autos de recurso de constitucionalidade: i) não há interesse processual no conhecimento da primeira questão de inconstitucionalidade normativa (relativa à preterição das formalidades previstas nos artigos 508º-A e 508º-B do CPC), visto que a própria decisão recorrida já o reconheceu, tendo porém adotado um fundamento alternativo que conduziu à negação de provimento da pretensão do ora recorrente; ii) a decisão recorrida não aplica a segunda interpretação normativa, nem sequer fazendo referência à questão da eventual aplicabilidade do artigo 668º, n.º 1, alíneas a), b) e d), do CPC (como, aliás, admite o recorrente que apenas reporta essa questão à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa – vide fls. 501). Assim sendo, por não ter sido efetivamente aplicadas, conforme exigido pelo artigo 79º-C da LTC, conclui-se pela impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso.»
Nada do que invoca o reclamante se dirige – e muito menos resulta bem sucedido – a contrariar o sentido decisório resultante da fundamentação já ali expressa. Nenhum dos argumentos adotados pela decisão reclamada foi rebatido, pelo que se impõe a sua integral confirmação.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.