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Processo n.º 336/14
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação apresentada assume o seguinte teor:
«(...)
Nos presentes autos, o recorrente interpôs recurso da decisão sobre a reclamação proferida pelo STJ, na qual arguiu várias inconstitucionalidades, o que fez ao abrigo do artigo 70º, n.º 1 al. b) e nº 2 da Lei nº. 28/82, de 15 de novembro com as alterações que lhe introduziu a Lei nº. 13-A/98, de 26 de fevereiro.
O Exmo. Sr. Conselheiro relator proferiu decisão sumária resumida nos moldes seguintes:
“… 4. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
5. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
Desde já se avança que não é isso que sucede no presente caso. Com efeito, o entendimento normativo cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada não coincide com aquele que obteve vencimento nos autos, nem foi, portanto, fundamento determinante da decisão recorrida. Tal interpretação constitui uma extrapolação da decisão do STJ, que se limitou a reafirmar que a irrecorribilidade das decisões da Relação é aferida - em exclusivo – a partir dos critérios constantes do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, critérios esses cuja constitucionalidade o recorrente não contestou.
Aliás, só assim se compreende que, instado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do entendimento normativo em que assentou o acórdão recorrido, o tribunal a quo tenha considerado suficiente um juízo sobre a constitucionalidade daqueles critérios, recordando que a modelação do direito ao recurso plasmado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP fica, em princípio, satisfeita com a previsão de um duplo grau de jurisdição.
Tanto basta para concluir pelo não preenchimento, in casu, dos pressupostos de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
6. Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso.”
***
O ora recorrente não pode concordar com tal argumentação dado que a mesma carece, “in casu” de fundamento, conforme se alcança, facilmente, da análise da motivação de recurso;
Senão vejamos, um trecho:
“A interpretação dada pela decisão da qual ora se recorre, acerca da al. f) do n.º 1 do art.º 400º do CPP, no sentido de que no caso de as relações não se pronunciarem sobre todas as questões suscitadas pelos arguido no recurso, ainda assim, caso a decisão da 1ª instância seja confirmada, tal decisão é irrecorrível, é materialmente inconstitucional, por violação, pelo menos do n.º 1 do art.º 32º da CRP.”
Do qual resulta clarividente que a desconformidade constitucional imputada pelo recorrente, não é à própria decisão jurisdicional, mas à interpretação que esta fez da norma ínsita no n.º 1 al. f) do artigo 400.º do Código de Processo Penal, interpretação essa que esbarra com uma norma constitucional “in casu” nº 1 do artº 32.
***
Torna-se assim evidente que recorrente cumpriu todos os requisitos de interposição de recurso para o TC, debruçando-se o mesmo sobre a ratio decidendi da decisão recorrida, motivo pelo qual o objeto do recurso deveria ter sido conhecido e não, proferida decisão sumária .
(…)»
3. O Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação deduzida.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
«(…)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de fevereiro de 2014, que indeferiu a reclamação apresentada pelo recorrente.
2. O requerimento de recurso tem o seguinte teor:
«(...)
B) DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO RECLAMADA
O Tribunal “a quo” considerou a decisão proferida pela Relação irrecorrível, e, da mesma consta em síntese:
Atenta apena concreta aplicada, em face do disposto na alínea f) do n. 1 do artigo 400.ºdo Código de Processo Penal a decisão é irrecorrível.
E, mesmo que tenha existido omissão de pronúncia e tenham sido arguidas nulidades estas “só podem ser arguidas e constituir objeto de recurso se a decisão for recorrível”.
Em resumo: se o acórdão é recorrível, a nulidade deve ser invocada no recurso a interpor para o S.T.J.; se o acórdão é irrecorrível, a nulidade só pode ser invocada perante o próprio tribunal que proferiu a decisão.”
C) DAS RAZÕES DA NOSSA DISCORDÂNCIA
O recorrente não pode concordar com a decisão pelos motivos que ora se expõem:
Constava da motivação do recurso interposto para a relação, entre outras, as seguintes questões condensadas nas conclusões 14ª a 16ª e 19ª.
Acontece que, analisando a decisão recorrida, a mesma ou não se pronunciou sobre tais questões quando se encontrava legalmente vinculada a fazê-lo.
Nos termos do disposto no artº 379 nº 1 al. c) a sentença é nula, nomeadamente ... “quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar”.
Ora o acórdão recorrido, não se tendo pronunciado sobre a referida matéria, padece do vício de omissão de pronúncia.
A questão suscitada e não apreciada, é essencial, e pese embora no caso sub júdice o Tribunal da Relação tenha confirmado na íntegra o acórdão do tribunal de 1ª instância, não estamos perante uma dupla conforme condenatória, pois não se mostra cumprido o duplo grau de jurisdição.
Na verdade se o recorrente invoca no recurso da 1ª instância, para a Relação múltiplas questões e a 2ª instância não se pronuncia sobre todas as questões, jamais se pode falar em dupla conforme.
O princípio da “dupla conforme” impede, ou tende a impedir, que um segundo juízo, absolutório ou condenatório, sobre o feito, seja sujeito a uma terceira apreciação pelos tribunais.
O acórdão da Relação, proferido em 2.ª instância, não respeitou a garantia do duplo grau de jurisdição.
Motivos pelos quais, a disposição legal invocada no despacho ora reclamado, o artº 400 nº 1 al. f) CPP, não é aplicável.
As garantias de defesa do arguido em processo penal têm que incluir um 2º grau de jurisdição, por a CRP, no seu art. 32.º, o consagrar.
Em face do exposto ao presente recurso não é aplicável o disposto art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP.
A interpretação dada pela decisão da qual ora se recorre, à cerca da al. f) do n.º 1 do art.º 400º do CPP, no sentido de que no caso de as relações não se pronunciarem sobre todas as questões suscitadas pelos arguido no recurso, ainda assim, caso a decisão da 1ª instância seja confirmada, tal decisão é irrecorrível, é materialmente inconstitucional, por violação, pelo menos do n.º 1 do art.º 32º da CRP.
Não admitindo o recurso a reclamação violou as normas constantes dos artigos al. i) do n.º 1 do 61º, al. b), 399, al. b) do n.º 1 do art.º 401º, 400 nº 1, f), 432 al. b), todos do CPP e ainda 32 nº 1 da CRP.
(...)»
3. Por decisão da primeira instância, foi o recorrente condenado, além doutros, pela prática, em coautoria, dos seguintes crimes:
- um crime de sequestro, previsto e punível pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos de prisão;
- um crime de sequestro, previsto e punível pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos de prisão;
- um crime de uso e furto de veículo, previsto e punível pelo artigo 208.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de sete meses de prisão;
Em cúmulo jurídico, foi o recorrente condenado na pena única de três anos e três meses de prisão. Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, em acórdão de 26 de novembro de 2013, confirmou a decisão recorrida no que respeita àquela condenação. Notificado deste aresto, veio o recorrente pedir a sua aclaração, também ela indeferida por acórdão de 19 de dezembro de 2013.
Seguiu-se o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, constante do requerimento de fls. 324, não admitido pelo tribunal recorrido com fundamento no disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º, do Código de Processo Penal (fls. 339). Deste despacho apresentou o recorrente reclamação, nos termos do artigo 405.º do CPP, em cujo requerimento se pode ler o seguinte:
«(…)
Acontece que, analisando a decisão recorrida, e pese embora o pedido de aclaração entretanto solicitado, a mesma não se pronunciou sobre tais questões, quando se encontrava legalmente vinculada a fazê-lo.
Efetivamente nos termos do disposto no art.º 379 n.º 1 al. c) a sentença é nula, nomeadamente “…quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar”.
Ora o Acórdão recorrido, não se tendo pronunciado sobre a referida matéria, padece do vício de omissão de pronúncia.
As questões suscitadas e não apreciadas, são essenciais, pois tem por finalidade última – se viessem a proceder – traduzir-se-iam numa alteração substancial da decisão.
E o Acórdão da Relação, por não ter conhecido dos referidos argumentos, incorreu no vício de omissão de pronúncia.
Em face do exposto e, pese embora no caso sub judice o Tribunal da Relação tenha confirmado na íntegra o Acórdão do Tribunal de 1.ª instância, não estamos perante uma dupla conforme condenatória, pois não se mostra cumprido o duplo grau de jurisdição.
Na verdade se o recorrente coloca no recurso da 1.ª instância determinadas questões e a 2.ª instância não se pronuncia sobre as mesmas omitindo-as, jamais se pode falar em “dupla conforme”.
O princípio da dupla conforme impede, ou tende a impedir, que um segundo juízo, absolutório ou condenatório, sobre o feito, seja sujeito a uma terceira apreciação pelos tribunais.
O Acórdão da Relação, proferido em 2.ª instância, não respeitou a garantia do duplo grau de jurisdição.
Motivos pelos quais a disposição legal invocada no despacho ora reclamado, o art.º 400 n.º 1 al. f), não é aplicável “in casu”.
A interpretação dada pela decisão ora reclamada, acerca da al. f) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP, no sentido de que no caso de as relações não se pronunciarem sobre todas as questões suscitadas pelos arguidos no recurso, ainda assim caso a decisão da 1.ª instância seja confirmada, tal decisão é irrecorrível, é materialmente inconstitucional, por violação, pelo menos do n.º 1 do art.º 32.º da CRP.
(…)»
O STJ indeferiu a reclamação, por decisão de 26 de fevereiro de 2014, louvando-se, para tanto, nos seguintes argumentos:
«(…)
1 – O arguido-reclamante foi condenado na 1.ª instância e na Relação – em dupla conformidade – na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão.
Daí ser cristalina a inadmissibilidade do recurso face ao disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
Mas, para tentar contornar (ultrapassar) esta barreira o reclamante invoca a omissão de pronúncia do acórdão da Relação, por não se ter pronunciado sobre questões colocadas no recurso interposto da decisão da primeira instância.
Sucede que as nulidades só podem ser arguidas e constituir objeto de recurso se a decisão for recorrível.
A lei não desprotege assim o ora reclamante quando o acórdão padece de alguma nulidade, sendo a decisão recorrível, uma vez que lhe possibilita a sua arguição perante o próprio tribunal que a proferiu.
Não se pode entender que a simples invocação de nulidade de um acórdão que a lei considera irrecorrível transforme esse mesmo acórdão em decisão recorrível para este Supremo Tribunal de Justiça.
Em resumo: se o acórdão é recorrível, a nulidade deve ser invocada no recurso a interpor para o S.T.J.; se o acórdão é irrecorrível a nulidade só pode ser invocada perante o próprio tribunal que proferiu a decisão.
Donde não ter o despacho reclamado violado nem as várias disposições processuais invocadas pelo reclamante nem o art.º 32.º, n.º 1 da CRP.
2 – O reclamante alega que a interpretação efetuada pelo despacho reclamado do art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, é inconstitucional por violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP.
Mas sem razão.
O direito ao recurso não é absoluto, tanto mais nos casos em que a questão já foi apreciada em duas instâncias.
E cada vez mais acentua a tendência para considerar o Supremo Tribunal de Justiça com vocação de Juízo de revista tendo como escopo primeiro o de uniformizar a jurisprudência.
Por outro lado, o art. 32.º, n.º 1, da CRP, que inscreve o direito ao recurso como uma garantia de defesa do processo criminal, que é de considerar exercido para efeitos constitucionais, com o julgamento em segundo grau de jurisdição, como ocorreu no caso dos autos.
(…)»
4. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
5. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, necessário se mostra que se achem preenchidos um conjunto de pressupostos processuais. A par do esgotamento dos recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, exige-se que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, questão essa que deverá incidir sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquela decisão.
Desde já se avança que não é isso que sucede no presente caso. Com efeito, o entendimento normativo cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada não coincide com aquele que obteve vencimento nos autos, nem foi, portanto, fundamento determinante da decisão recorrida. Tal interpretação constitui uma extrapolação da decisão do STJ, que se limitou a reafirmar que a irrecorribilidade das decisões da Relação é aferida – em exclusivo - a partir dos critérios constantes do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, critérios esses cuja constitucionalidade o recorrente não contestou.
Aliás, só assim se compreende que, instado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do entendimento normativo em que assentou o acórdão recorrido, o tribunal a quo tenha considerado suficiente um juízo sobre a constitucionalidade daqueles critérios, recordando que a modelação do direito ao recurso plasmado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP fica, em princípio, satisfeita com a previsão de um duplo grau de jurisdição.
Tanto basta para concluir pelo não preenchimento, in casu, dos pressupostos de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
6. Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(…)»
5. A reclamação apresentada pelo reclamante não coloca minimamente em crise a decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, concretamente, na circunstância de o entendimento normativo delineado pelo recorrente não ter sido ratio decidendi da decisão recorrida.
Ora, a argumentação expendida na reclamação apresentada não logra refutar a fundamentação subjacente a tal juízo. Com efeito, o entendimento normativo enunciado pelo recorrente quer na reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça, quer no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, não tem verdadeiramente respaldo na decisão recorrida. Aí, o tribunal a quo limitou-se a confirmar a irrecorribilidade da decisão prolatada pelo Tribunal da Relação de Évora com base na alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, sem dele extrair o sentido cuja constitucionalidade o reclamante contesta.
Razões pelas quais é de manter o sentido plasmado na decisão sumária objeto de reclamação.
III. Decisão
6. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 6 de maio de 2014. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.