Imprimir acórdão
Processo n.º 1181/2013
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., Lda., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso com a seguinte fundamentação:
(…) O presente recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional: LTC).
Como se sabe, é requisito específico do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, além da suscitação, de forma clara e percetível, da inconstitucionalidade da norma durante o processo e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso caibam, que a norma (ou dimensão normativa) impugnada tenha efetivamente sido aplicada pelo tribunal a quo, na decisão recorrida, como verdadeira ratio decidendi. Portanto, quando o sentido normativo impugnado perante este Tribunal não corresponder àquele com que as normas foram aplicadas na decisão recorrida, não existe interesse processual que justifique o conhecimento da questão pelo Tribunal Constitucional.
Ora, como resulta dos presentes autos, a norma cuja inconstitucionalidade se impugna é a constante do n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 47/2007, 28 de agosto, da qual decorre que: “As pessoas coletivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a proteção jurídica”.
Porém, esta norma não foi objeto de aplicação nos autos. Na verdade, a ação executiva foi julgada extinta porque a ora recorrente não juntou o comprovativo do pagamento da taxa de justiça, nem o comprovativo da concessão de apoio judiciário. E, em rigor, o que se pretende controverter não é o direito à concessão, ou não, deste benefício [que, aliás, nem foi solicitado para a presente ação executiva], mas apenas a questão de saber se a proteção judiciária que fora concedida à exequente em 2007, ao abrigo da anterior legislação, poderia produzir efeitos nos presentes autos.
Aliás, a norma impugnada (a constante do n.º 3.º do art.º 7.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho) nunca poderia ter sido efetivamente aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida (a tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça a 11.07.2013), uma vez que esta última se limita a indeferir a reclamação de não admissão do recurso.
Com efeito, da decisão recorrida resulta o seguinte:
“por inobservância do princípio geral da alçada, não excetuado, «in casu», por qualquer situação demonstrada, não se encontrando preenchida a verificação do requisito do valor, não deve, consequentemente, independentemente da análise e comprovação dos requisitos de admissibilidade da revista excecional, sempre a avaliar pelo Coletivo da Formação já aludida, ser recebido o recurso de revista interposto pela exequente, mantendo-se assim, o despacho reclamado”.
Torna-se assim evidente que a norma cuja inconstitucionalidade se pretender impugnar (a constante do n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 34/2004), não foi, manifestamente, aplicada pela decisão recorrida.
Assim sendo, e porque, como se viu, a via de recurso para o Tribunal Constitucional só se encontra aberta quanto a decisões dos tribunais que tenham aplicado norma cuja inconstitucionalidade tenha sido arguido durante o processo, há que concluir-se pela inadmissibilidade do recurso.
(…) O recurso de constitucionalidade foi também interposto ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos do qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional.
E, como resulta de jurisprudência consolidada neste tribunal, para que o recurso possa ser admitido ao abrigo desta alínea, tem de confirmar-se uma dupla relação de identidade. Revela o Acórdão n.º 568/08, (disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
“- Em primeiro lugar, exige-se que a norma que o recorrente quer ver apreciada tenha sido efetivamente aplicada pela decisão recorrida, como sua ratio decidendi;
- Em segundo lugar – e aqui reside o pressuposto específico desta abertura de recurso para o Tribunal Constitucional – tem de haver identidade entre a norma efetivamente aplicada na decisão recorrida e a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Não basta que possa ser sustentado que as mesmas razões que levam a julgar inconstitucional determinada norma justificariam que juízo de igual sentido fosse formulado a propósito da norma aplicada na decisão recorrida (…)”.
Ora, como já se deixou dito, a norma que a recorrente pretende que seja apreciada – n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 34/2004, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 47/2007 – não foi, efetivamente, aplicada pela decisão de que se recorre, como ratio decidendi. Portanto, também não se pode conhecer do objeto do recurso, por falta de fundamento da admissibilidade do mesmo, nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC).
2. Notificada dessa decisão, A., Lda. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, onde concluiu nos seguintes termos:
1ª) A aqui Recorrente intentou o recurso, que agora foi indeferida a sua admissão, em face de, no seu modesto entendimento, por estar em causa o acesso ao direito, tratar-se de interesse de particular relevância social – motivo pelo qual não é admissível a decisão agora proferida.
2ª) E isto porque tem existido no nosso ordenamento jurídico muitas divergências de entendimento quanto a esta matéria e até sobre a própria constitucionalidade da norma constante do art.º 7.º n.º 3 da Lei 34/2004, na redação que lhe foi dada pela Lei 47/2007.
3ª) Como consta nas alegações de recurso agora retido pelo tribunal “a quo” a aqui Recorrente viu-se preterida do seu direito de acesso ao direito, em face da alteração legislativa.
4ª) À aqui Recorrente foi concedido apoio judiciário em 2007, o qual não havia sido utilizado por esta em qualquer ação judicial, mas a Mma. juiz do tribunal de 1.ª instância não aceitou tal apoio judiciário.
5ª) Atualmente, e em face da alteração legislativa ocorrida, não é ao Tribunal que compete a atribuição ou não do Apoio judiciário.
6ª) O que levou a aqui Recorrente a apresentar recurso, nos termos do disposto no art.º 721.º-A n.º 1 al. b) do CPC, para que tal situação pudesse ser analisada pelos Excelentíssimos Conselheiros e que seja admitido à aqui Recorrente utilizar tal Apoio Judiciário, uma vez que o mesmo está perfeitamente válido e novamente validado, agora, pela Segurança Social quando atribui ao Apoio Judiciário concedido a modalidade de atribuição e pagamento de agente de execução – sem que no entanto o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa tenha analisado, corretamente o recurso apresentado pela aqui Recorrente.
7ª) Entende a aqui Recorrente que tem legitimidade para utilizar o Apoio judiciário que lhe foi deferido em 2007, até porque a Lei 47/2007 de 28/08, que limitou o acesso ao apoio judiciário às pessoas coletivas, não se pronunciou sobre os já concedidos, daí que se entende que mantenham os mesmos a sua validade e utilidade.
8ª) Entende a aqui Recorrente que a presente questão é de todo o interesse e relevância social, visto estar a ser posto em causa um direito constitucionalmente consagrado – Acesso à Justiça, por uma interpretação de que o Apoio Judiciário terá perdido a sua “validade”.
9ª) O Apoio Judiciário é um direito constitucionalmente consagrado.
10ª) Não há dúvida de que a garantia de acesso ao direito e aos tribunais é um direito compatível com a natureza das pessoas coletivas, aliás, é bem certo que as entidades jurídicas que se dedicam a uma determinada atividade económica em busca de lucro suportam um elevado risco de se verem demandadas, ou de ter que demandar, aquelas com quem celebram os negócios que representam verdadeiramente o cerne da vida empresarial.
11ª) No caso vertente a aqui Recorrente está inativa, há já alguns anos, por falta de pagamentos de vários dos seus clientes, situação devidamente comunicada à Segurança Social aquando do pedido de apoio judiciário formulado e que ainda assim se mantém atualmente, o que não pode inviabilizar esse seu direito de se ver ressarcidos de tais valores, não podendo ser impedida de utilizar o Apoio Judiciário que validamente lhe foi concedido.
12ª) A aqui Recorrente apesar de ser pessoa coletiva com fins lucrativos, está inativa e não tem capacidade financeira para custear o presente processo, sendo que sem o recurso ao Apoio Judiciário e face à sua situação financeira e aos custos judiciais fica-lhe vedado o acesso à Justiça, sendo dessa forma violado o art.º 20.º da CRP.
13ª) Não se conformando com a justificação de indeferimento da admissão do recurso, vem a Recorrente, nos termos previstos no art.º 688.º, n.º 1 do C.P.C., apresentar a sua Reclamação para o Digníssimo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de ser proferido despacho que admita o prosseguimento do recurso então apresentado e agora retido.
14ª) Por outro lado, e na esteira do referido na douta decisão sumária proferida, a aqui Recorrente esgotou todas as possibilidades de recursos ordinários, não sendo da sua responsabilidade que o douto Supremo Tribunal de Justiça, não se tenha pronunciado, como devia, sobre a invocação formulada pela Recorrente.
15ª) Não pode pois ser imputada à aqui Recorrente a decisão proferida pelo STJ, pois o mesmo não se pronunciou quanto ao alegado pela Recorrente, porque se escudou por detrás do princípio geral da alçada.
16ª) Contudo, tem de ser levada em consideração toda a alegação feita pela aqui Recorrente, a qual só o poderá ser por V.Exas., em última instância, que analisando o presente recurso, todas as suas circunstâncias e anomalias, dando-lhe provimento será feita a tão esperada Justiça.
3. A recorrida não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Nos presentes autos procurou a recorrente, agora reclamante, interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto nas alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional: doravante, LTC).
Como resulta do relato anteriormente feito, decidiu-se sumariamente não conhecer, em qualquer dos casos, do objeto do recurso. No caso do recurso interposto ao abrigo da alínea b), por não ter sido efetivamente aplicada pela decisão recorrida a norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que o Tribunal apreciasse. No caso do recurso interposto ao abrigo da alínea g), por não haver identidade entre essa mesma norma e qualquer outra que o Tribunal já tivesse, num outro caso concreto, julgado inconstitucional.
Desta decisão reclama a recorrente ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC.
Contudo, decorre dos termos da reclamação, acima transcrita, que nela se não contestam propriamente as razões que levaram a Decisão Sumária a entender que, por não estarem in casu reunidos os respetivos pressupostos, se não podia conhecer do objeto do recurso que se pretendia interpor para o Tribunal Constitucional. Na realidade, a requerente vem agora apenas manifestar em geral a sua discordância face ao decidido, limitando-se, tão só, a reiterar os argumentos que já apresentara na reclamação que interpôs do despacho de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Tanto basta para que se lhe não dê razão.
III – Decisão
5. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de maio de 2014. – Maria Lúcia Amaral – José da Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro.