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Processo n.º 108/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Na presente ação administrativa especial intentada pela ora recorrente A. contra O MUNICÍPIO DE LISBOA e GEBALIS EEM, Gestão dos Bairros Municipais de Lisboa, foi proferida decisão pelo relator do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em 27 de novembro de 2012, a julgar a ação improcedente.
Inconformada, a autora interpôs recurso, o qual, tendo sido admitido pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, foi posteriormente rejeitado por despacho do relator no Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 26 de julho de 2013.
Novamente irresignada, a autora apresentou reclamação desta decisão, a qual foi indeferida por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21 de novembro de 2013.
2. A autora interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante LTC) “para que seja declarada a inconstitucionalidade da norma do art.º 27°, n.º 2 do CPTA, a qual se baseou no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STA n.º 3/2012, de 05/06/2012, bem como das normas do art.º 149º e do art.º 193° do Cód. Proc. Civil, nas suas atuais redações, quando interpretadas no sentido que foi dado na decisão recorrida, normas essas que violam os princípios da legalidade, da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, consagrados nos princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático, previsto no art, ° 2.º da CRP, e do acesso ao direito e aos tribunais, previsto no art.º 20º da CRP, mas também os n.ºs 1 e 5 do art.º 32º da CRP, inconstitucionalidade essa que foi por si suscitada nos autos a fls. 222 e ss. e na reclamação para a conferência que deu entrada em 09 de setembro de 2009.”
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
3. Neste Tribunal, foi proferida a Decisão Sumária n.º 140/2014, nos termos da qual foi decidido não conhecer do recurso. No essencial, essa decisão assentou nos seguintes fundamentos:
«3. No caso presente, como decorre do requerimento de interposição de recurso, a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional dos artigos 27.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 149.º e 193º do Código de Processo Civil, limitando-se, porém, a remeter para o “sentido que foi dado na decisão recorrida”, sem respeitar o ónus que sobre si recai de clara, precisa e expressa identificação do sentido normativo extraído das referidas disposições legais que reputa inconstitucionais, como impõe o artigo 75º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
Não é, porém, equacionável facultar à recorrente a possibilidade de suprir a referida deficiência, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do referido artigo 75.º-A da LTC, atenta a não verificação de, pelo menos, um pressuposto de admissibilidade do recurso, que não pode ser suprido e que sempre determinaria a impossibilidade de conhecimento do mérito do recurso.
Vejamos.
4. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do “recurso de amparo” contra atos concretos de aplicação do Direito.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, como ocorre no presente caso, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de modo reiterado e uniforme, que são pressupostos específicos deste tipo de recurso, de verificação cumulativa, (i) a suscitação pelo recorrente da questão de inconstitucionalidade “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), (ii) a efetiva aplicação, expressa ou implícita, da norma ou interpretação normativa, em termos de a mesma constituir ratio decidendi ou fundamento jurídico determinante da decisão proferida no caso concreto, e (iii) o esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam.
Quanto ao ónus de invocação da questão de inconstitucionalidade durante o processo de modo procedimentalmente adequado, exige-se que o recorrente suscite a questão “de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir”, o que reclama que o recorrente identifique, de modo direto, claro e percetível, a norma ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma que tem por violador da Lei Fundamental (Acórdão n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt); constituindo orientação pacífica deste Tribunal que, neste último caso e utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94, disponível no mesmo sítio da internet, “esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-se ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a Constituição.”
Esta exigência apresenta-se como um mero corolário da natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso - para reapreciar uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter anteriormente apreciado e decidido, e não dirimir “questões novas”.
5. No caso em apreço, a recorrente não suscitou perante o tribunal recorrido, de forma processualmente adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade reportada a interpretação extraída do artigo 27.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, conjugado com os artigos 149.º e 193º do Código de Processo Civil.
Pode ler-se na reclamação apresentada, no segmento em que se faz menção à infração de normas e princípios constitucionais:
«21. O entendimento seguido no despacho a que aqui se responde e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência no qual o mesmo se baseou, no sentido de que a sentença proferida pelo tribunal a quo não cabia recurso mas sim reclamação para a conferência por no termo “despacho” contido no n.º 2 do art.º 27º do CPTA estarem incluídas as sentenças, viola nomeadamente o art.º 2º da CRP que consagra o princípio do Estado de Direito, o qual por sua vez se concretiza através de outros princípios como os da segurança jurídica, da legalidade e da proteção da confiança dos cidadãos - art.º 20º da CRP.
22. Os citados princípios da segurança jurídica, da legalidade e da proteção da confiança dos cidadãos assumem-se como princípios classificadores do estado de Direito democrático e implicam um mínimo de certeza e segurança no direito das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está inerente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade jurídica e na atuação do Estado.
(…)
31. Se por decisão posterior do tribunal, o mesmo vem entender que é outro o meio processual e se a lei prevê para a prática do mesmo um prazo diferente, a admissão da convolação não pode estar dependente de um prazo que a parte não respeitou por na altura, por não ser o aplicável ao meio de defesa que estava a usar.
32. Outro entendimento do art.º 153º do CPC, viola os acima invocados princípios da legalidade, da segurança jurídica e da proteção dos cidadãos, por sua vez consagrados nos princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático - art.º 2º da CRP – e do acesso ao direito e aos tribunais – art.º 20º da CRP – mas também o princípio do contraditório consagrado nos n.ºs 1 e 5 do art.º 32º da CRP.»
A transcrição que antecede denota que a recorrente não formulou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não tendo enunciado de forma clara e precisa qualquer critério ou padrão normativo – enquanto como regra abstrata, potencialmente aplicável a uma generalidade de situações – suscetível de vir a ser utilizado na decisão a proferir, problematizando a sua constitucionalidade, em termos de vincular o tribunal ao seu conhecimento, como, efetivamente, não aconteceu.
Assim, inverificado o pressuposto insuprível de prévia suscitação processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, o que determina a ilegitimidade da recorrente, há que concluir pela impossibilidade de conhecer do objeto do recurso (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), determinando a prolação de decisão sumária (artigo 78º-A, nº 1, da mesma Lei).»
4. Notificada, a recorrente veio apresentar reclamação para a Conferência, dizendo (transcrição parcial):
«(…)começando pelo requisito do art.º 72º, n.º 2 da LTC, o Tribunal Constitucional tem vindo a entender que a questão da inconstitucionalidade é adequadamente formulada quando o recorrente o faça perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, '... de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, norma ou princípio constitucional infringidos' - Ac. n.º 269/94, citado na decisão de que ora se reclama, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
5 - Tem também o Tribunal Constitucional entendido que para que se considere observado o requisito do art.º 72º, n.º 2 da LTC, tem ainda o recorrente de indicar um sentido que '... seja possível referir ao teor verbal o texto do preceito em causa Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas qual o sentido com o que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição' - Ac. n.º 367/94, citado na decisão de que ora se reclama, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
6 - Ora, no caso concreto, no seu requerimento apresentado em 21/06/2013, de resposta ao despacho proferido pelo Sr. Juiz Desembargador Relator do Tribunal Central Administrativo Sul, que veio recusar o recurso, a recorrente indicou - pontos 2 e 20 - o preceito legal que, interpretado da forma que o Tribunal Central Administrativo fez, é inconstitucional, ou seja, indicou o art.º 27º, n.º 2 do CPTA.
7 - Nesse mesmo requerimento, indicou também as razões porque entende que o referido preceito legal, interpretado da forma como foi pelo Tribunal, deve ser considerado inconstitucional - pontos 4 a 19 e 22 a 24, os quais, pela sua extensão, se dão aqui por reproduzidos.
8 - E indicou os princípios ou normas constitucionais que a interpretação dada ao referido preceito legal viola - pontos 20 e 21 - ou seja, indicou como normas e princípios violados, o art.º 2º da CRP, que consagra o princípio do Estado de Direito e os princípios da segurança jurídica, da legalidade e da proteção da confiança dos cidadãos – art.º 20º da CRP.
9 - Por outro lado, a recorrente indicou também a interpretação ou sentido dado pelo Tribunal àquele preceito legal, que considera inconstitucional e que, a ser exato o seu juízo, não deve ser aplicado - pontos 2 e 20 - isto é, a interpretação segundo a qual, no termo 'despacho' contido no n.º 2 do art.º 27º do CPTA, estão incluídas as decisões proferidas pelo juiz singular que tenham decidido sobre o mérito da causa, nos termos previstos no n.º 1, al. i) do art.º 27º do CPTA, ou seja, as sentenças.
10 - O mesmo procedimento adotou na reclamação para a conferência do Tribunal Central Administrativo Sul, por si apresentada em 09 de setembro de 2013.
11 - Na reclamação apresentada, a recorrente apresentou os preceitos legais que, interpretados da forma que foi pelo Tribunal, devem ser considerados inconstitucionais - pontos 2, 3, 21, 32 - ou seja, o art.º 27º, n.º 2 do CPTA e o art.º 153º do CPC, atual art.º 193º do CPC.
12 - Nessa reclamação, indicou também as razões porque entende que os referidos preceitos legais, interpretados da forma como foram pelo Tribunal, devem ser considerados inconstitucionais - pontos 5 a 27 e 30 a 32, os quais, pela sua extensão, se dão aqui por reproduzidos.
13 - E indicou os princípios ou normas constitucionais que as interpretações dadas aos referidos preceitos legais violam - pontos 17, 21, 22 e 32 - ou seja, o art.º 2º da CRP, que consagra o princípio do Estado de Direito e os princípios da segurança jurídica, da legalidade e da proteção da confiança dos cidadãos e do acesso ao direito e aos tribunais - art.º 20º da CRP - e ainda o princípio do contraditório consagrado no art.º 32º, n.ºs. 1 e 5 da CRP.
14 - Por último, a recorrente indicou também a interpretação ou sentido dado pelo Tribunal àqueles preceitos legais, que considera inconstitucionais e que, a ser exato o seu juízo, não devem ser aplicados - pontos 2, 3, 21, 29, 31 e 32 - isto é, a interpretação segundo a qual, no termo 'despacho' contido no n.º 2 do art.º 27º do CPTA, estão incluídas as decisões proferidas pelo juiz singular que tenham decidido sobre o mérito da causa, nos termos previstos no n.º 1, al. i) do art.º 27º do CPTA, ou seja, as sentenças; e a interpretação segundo a qual a admissão da convolação de um ato processual errado no correto, no caso concreto, do recurso em reclamação, só poder ser admitida quando o ato processual errado, neste caso, o recurso, tenha sido admitido dentro do prazo legalmente previsto para a apresentação do ato processual correto, neste caso, a reclamação, seja, dez dias.
15 - Verificam-se, pois, como atrás se demonstrou, todos os pressupostos legalmente exigidos, e nomeadamente os que resultam do art.º 72º, n.º 2 da LTC, para que o recurso possa ser apreciado.
16 - Alegou também o Sr. Juiz Conselheiro Relator que o requerimento de recurso apresentado pela recorrente não contém todos os requisitos legais exigidos pelo art.º 75º-A, n.º 1 da LTC, uma vez que se limitou a remeter para o 'sentido que foi dado na decisão recorrida', sem respeitar o ónus que sobre si recai de clara, precisa e expressa identificação do sentido normativo extraído das referidas disposições legais que reputa inconstitucionais.
17 - Com o devido respeito, parece-nos que também aqui não lhe assiste razão.
18 - Com efeito, são requisitos do requerimento de apresentação do recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do n.º 1 do art.º 75º-A da LTC: a indicação da alínea do n.º 1 do art.º 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie.
19 - Ora, da leitura do requerimento apresentado pela recorrente, verificamos que estes requisitos foram respeitados: a recorrente indicou a alínea b) como sendo a alínea do n.º 1 do art.º 70º da LTC ao abrigo da qual vem intentar o recurso, e indicou as normas cuja constitucionalidade pretende ver apreciada - o art.º 27º, n.º 2 do CPTA e o art.º 149º e o art.º 193º do CPC.
20 - Por outro lado, do n.º 2 do referido art.º 75º-A da LTC, são ainda requisitos do requerimento, quando o recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 70º da LCT, que do mesmo conste também a norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado, bem como a peça processual em que o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade.
21 - Também estes requisitos estão contidos no requerimento: a recorrente ali expressamente invoca a violação dos princípios da legalidade, da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, consagrados nos princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático, previsto no art.º 2º da CRP, e do acesso ao direito e aos tribunais, previsto no art.º 20º da CRP e que a inconstitucionalidade foi por si suscitada nos autos a fls. 222 e ss e na reclamação para a conferência que deu entrada em 09/09/13.
22 - Nem o art.º 75º-A, n.º 1 nem o art.º 75º-A, n.º 2 da LTC exigem a expressa identificação pelo recorrente, no requerimento de interposição de recurso, do sentido normativo extraído das referidas disposições legais que reputa inconstitucionais,
23 - Esse ónus de invocação, como já vimos, apenas existe perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, neste caso, o Tribunal Central Administrativo Sul – art.º 72º, n.º 2 da LTC - e foi, como já atrás demonstrámos, respeitado pela recorrente.
24 - Pelo que, forçoso é também concluir que o requerimento de interposição de recurso apresentado pela recorrente obedece a todos os requisitos legalmente exigidos.
25 - Mas mesmo que assim não se entendesse, o que apenas por mero dever de ofício se concede, devendo o recurso ser apreciado por se verificarem todos os pressupostos legais insupríveis, nomeadamente os constantes do art.º 72º, n.º 2 da LTC, como atrás defendemos, deve a recorrente ser convidada a prestar indicação do elemento que falta, nos termos previstos no art.º 75º-A, n.º 5 da LTC.»
5. Não foi apresentada resposta.
II. Fundamentação
6. Vem a recorrente reclamar para a Conferência da decisão sumária que concluiu pelo não conhecimento do recurso, defendendo que obedeceu plenamente aos ónus impostos pelo artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, e que se encontram verificados os pressupostos e requisitos de que depende o conhecimento do recurso. Subsidiariamente, para o caso de persistir o entendimento de que não respeitou o disposto no n.º 1 do citado preceito, peticiona de que lhe seja dirigido o convite previsto no seu n.º 6, com vista a suprir a menção em falta.
Não lhe assiste, todavia, razão.
Vejamos
6.1. O raciocínio expendido pela recorrente em defesa do cumprimento do ónus que sobre si recaia assenta na consideração de que “[n]em o art.º 75.º-A nem o art.º 75.º-A, n.º 2 da LTC exigem a expressa identificação pelo recorrente, no requerimento de interposição de recurso, do sentido normativo extraído das (...) disposições legais que reputa inconstitucionais”. Porém, a falência desse juízo mostra-se evidente, pois contraria frontalmente a prescrição contida no referido n.º 1, do artigo 75.º-A, da LTC. O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional carece de indicar, para além da alínea do n.º 1, do artigo 70.º, ao abrigo da qual é interposto – o que foi respeitado, através da indicação da alínea b), relativa ao recurso de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo -, a norma cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie, e bem assim o preceito ou a articulação de preceitos em que se encontra alojada.
Essa exigência assume particular intensidade quando não se esteja perante norma decorrente do sentido literal de um preceito, antes consubstancie padrão ou critério normativo resultante da articulação de vários preceitos. Importa, então, que o recorrente enuncie, em termos claros, precisos e inequívocos, qual o sentido normativo obtido interpretativamente que considera colidente com regras ou princípios constitucionais.
Nessa medida, tem a jurisprudência constitucional, de que é exemplo o Acórdão n.º 367/94, referido na decisão reclamada e citado na reclamação em apreço, sublinhado que o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, atenta a função delimitadora do objeto do recurso para o Tribunal Constitucional que cabe a essa peça, não se pode limitar a remeter para os termos da decisão recorrida, transferindo substantivamente para o Tribunal o ónus que sobre si recai, de identificação e enunciação do sentido normativo efetivamente aplicado como determinante do julgado pelo Tribunal a quo.
Ora, no requerimento apresentado, a recorrente faz referência, no plural, a normas, que reporta aos artigos 27.º, n.º 2, do CPTA, e aos artigos 149.º e 193.º do CPC, mas abstém-se de enunciar qual o padrão ou critério normativo que considera efetivamente aplicado pela decisão recorrida. Bastou-se com a menção a que tinha em vista tais disposições “quando interpretadas no sentido que foi dado na decisão recorrida”, denotando que não procura ver afirmada a invalidade perante a Constituição de toda e qualquer dimensão normativa contida nos três preceitos, antes de interpretação resultante da sua conjugação ou articulação, cujo sentido normativo se abstém de apresentar.
Dúvidas não há, então, que, como se afirma na decisão sumária reclamada, a recorrente não respeitou integralmente o disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
6.2. Esta conclusão transporta-nos para a apreciação dos argumentos esgrimidos pela recorrente no sentido de que assegurou a sua legitimidade para o recurso, pois entende que suscitou adequada e previamente perante o Tribunal a quo questão normativa de constitucionalidade, idónea a suportar o impulso recursório que dirigiu ulteriormente a este Tribunal.
Ora, basta a necessidade que a recorrente sentiu de dar por reproduzida grande parte da reclamação apresentada, invocando a sua “extensão”, para confirmar que, como se entendeu na decisão reclamada, a recorrente, também perante o Tribunal a quo, eximiu-se de precisar o sentido normativo que considerava infringir a Constituição. Ao invés, nos pontos que menciona na reclamação – alguns transcritos na decisão reclamada – encontra-se a defesa da incorreção do entendimento infraconstitucional sufragado pelo relator no Tribunal Central Administrativo Sul e da impropriedade aplicativa do n.º 2, do artigo 27.º, do CPTA.
Por outro lado, não se encontra referência em qualquer desses pontos aos artigos 149.º e 193.º do CPC, nem a concretização de sentido normativo neles alojado que, isoladamente ou em conjunto com o prescrito no n.º 2, do artigo 27.º, do CPTA, deveria ser recusado, com fundamento em desconformidade com a Constituição. Novamente, e tomando os pontos 31 e 32 da reclamação dirigida ao Tribunal a quo, encontra-se a defesa da aplicação do disposto no artigo 153.º (a que corresponde, no Novo CPC, o artigo 193.º) ao caso sub judicio, impetrando genericamente de inconstitucional “[o]utro entendimento do art.º 153.º do CPC”. Diversamente do que se alega na reclamação (ponto 17), não foi colocada perante o Tribunal a quo questão de constitucionalidade de que faça parte a “convolação de um ato processual errado no correto”, ou ao seu afastamento em função da ultrapassagem do prazo pertinente (aplicável) ao ato devido, ou, ainda, problematizado o concreto prazo de dez dias.
Assim, o caso em apreço encontra sintonia com muitos outros, em que o recorrente, depois de abordar a problemática em questão sob o prisma da interpretação do direito infraconstitucional que tem como correta, limita-se a aludir à inconstitucionalidade de uma outra “interpretação”, que não concretiza, em termos de assegurar a sua legitimidade para o recurso perante o Tribunal Constitucional (artigo 72.º, n.º 2 da LTC).
Neste mesmo sentido, e perante recursos com evidentes pontos de identificação com o dos presentes autos, decidiram, entre muitos outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 724/2013, 727/2013, 728/2013, 729/2013, 765/2013, 818/2013, 833/2013, 834/2013 e 292/2014.
6.3. Mantendo-se a conclusão pela ilegitimidade da recorrente, fica afastada, do mesmo jeito, a pretensão formulada a título subsidiário.
O convite ao aperfeiçoamento previsto nos n.ºs 5 e 6, do artigo 75.º-A, da LTC, apenas versa as exigências incidentes sobre o teor do requerimento de interposição de recurso, suscetíveis de correção através de aditamento esclarecedor a apresentar na sua sequência. Não permite suprir a ausência de suscitação de questão normativa de constitucionalidade, que carece de ser colocada em termos de vincular o Tribunal a quo ao seu conhecimento, efeito que naturalmente não pode ser alcançado uma vez proferida a decisão recorrida.
Cumpre, pelo exposto, confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso.
III. Decisão
7. Pelo exposto, ao abrigo do nº 1 do artigo 78º-A da LTC decide-se:
a) Indeferir a reclamação e confirmar a decisão sumária; e
b) Condenar a recorrente nas custas, que se fixam, atendendo à dimensão e complexidade do impulso apreciado, em 20 (vinte) Ucs.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20140401.html ]