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Processo n.º 250/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A., por apenso ao processo executivo para pagamento de quantia certa que a B., S.A., lhe moveu, veio deduzir oposição.
A oposição veio a ser julgada improcedente por sentença proferida em 12 de junho de 2011.
O Opoente recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão proferido em 6 de dezembro de 2012, julgou improcedente o recurso.
O Opoente recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido em 26 de setembro de 2013, julgou improcedente o recurso.
O Opoente, após lhe ter sido indeferido um incidente de arguição de nulidade desta última decisão, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, dizendo pretender recorrer do referido acórdão para o Venerando Tribunal Constitucional, com fundamento na inconstitucionalidade da norma do art. 812º-B do CPC na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, face às normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 2.º, 9.º/b), 20.º e 268.º/4 da CRP, quando interpretada e aplicada com a dimensão e sentido normativo que lhe foi atribuído no douto acórdão, de 12.12.2013, na parte em que decidiu que 'foi porque o Tribunal de 1ª instância considerou verificada tal situação que autorizou, ao abrigo do art. 812º-B do CPC, que a penhora de bens dos executados se efetuasse antes da realização da citação dos executados, situação que, em termos objetivos, não pode ser imputada à exequente' na parte em que confirmou a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.12.2012, que decidiu que 'após a citação, e tendo o executado sido igualmente notificado do despacho proferido no incidente de dispensa prévia, teria o executado de impugnar essa decisão mediante o recurso de agravo, o que não fez'.
A referida questão de inconstitucionalidade foi suscitada expressamente nas conclusões 1.ª, 2.ª e 3ª das alegações apresentadas pelo recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça e nas conclusões 1ª e 2ª das alegações apresentadas pelo recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa, inscrevendo-se assim na esfera de 'competência vinculada' do Venerando Tribunal Constitucional (vd. Ac. TC 162/92, de 6 de maio, Proc. 241/91, Cons. Messias Bento, www.tribunalconstitucional.pt).”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso com a seguinte fundamentação:
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
O Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 812.º-B do Código de Processo Civil, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, quando interpretada e aplicada com a dimensão e sentido normativo que lhe foi atribuído no douto acórdão, de 12.12.2013, na parte em que decidiu que 'foi porque o Tribunal de 1ª instância considerou verificada tal situação que autorizou, ao abrigo do art. 812º-B do CPC, que a penhora de bens dos executados se efetuasse antes da realização da citação dos executados, situação que, em termos objetivos, não pode ser imputada à exequente' e na parte em que confirmou a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.12.2012, que decidiu que 'após a citação, e tendo o executado sido igualmente notificado do despacho proferido no incidente de dispensa prévia, teria o executado de impugnar essa decisão mediante o recurso de agravo, o que não fez'.
Resulta da primeira citação efetuada pelo Recorrente que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que teria perfilhado a interpretação cuja constitucionalidade é impugnada é o proferido em 26 de setembro de 2013 e não o proferido em 12 de dezembro de 2013, sendo aquele o Acórdão recorrido.
A primeira frase transcrita não encerra a enunciação de um qualquer critério normativo cuja constitucionalidade possa ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, no uso das suas competências, limitando-se a decisão recorrida, nesse trecho, a descrever uma determinada situação processual ocorrida na tramitação da execução em 1.ª instância e a concluir que ela não era imputável à exequente.
Neste caso, o objeto do recurso não tem, pois, um conteúdo normativo.
Em terceiro lugar, a segunda frase transcrita pelo Recorrente corresponde a uma passagem do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o Recorrente afirma ter sido confirmada pela decisão recorrida.
Ora, se é verdade que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação foi confirmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente à questão a que respeita a mencionada frase, este último aresto limitou-se a dizer que a mesma estava fora do âmbito da revista, pelo que dela não conhecia, não sendo possível, pois, afirmar que a decisão recorrida subscreveu a afirmação do Acórdão do Tribunal da Relação transcrita pelo Recorrente.
Assim, não integrando esta segunda interpretação a ratio decidendi do Acórdão recorrido, não pode o Tribunal Constitucional apreciar da sua constitucionalidade, pelo que deve ser proferida decisão sumária de não conhecimento, nos termos permitidos pelo artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.
O Recorrente reclamou expondo as seguintes razões:
“1. Por sentença proferida em 12 de junho de 2011 foi indeferida a oposição à execução apresentada pelo ora recorrente no processo n.º 7771/04.3YVLSB, e, por não se conformar com esta decisão, recorreu da mesma para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão proferido em 6 de dezembro de 2012, julgou improcedente o recurso.
Não se conformando com a referida decisão, o ora reclamante recorreu para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por Acórdão de 26.09.2013, negou provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo ora reclamante.
Não se conformando com o referido aresto, o ora reclamante recorreu para o Venerando Tribunal Constitucional, invocando novamente as questões de inconstitucionalidade já por si suscitadas anteriormente.
Por despacho proferido pelo Senhor Conselheiro Relatar do Supremo Tribunal de Justiça, foi admitido o referido recurso interposto para o Tribunal Constitucional quanto às questões de inconstitucionalidade suscitadas pela ora reclamante.
2. Na douta decisão sumária ora reclamada decidiu-se que não podia tomar-se conhecimento do recurso interposto, pois:
«A primeira frase transcrita não encerra a enunciação de um qualquer critério normativo cuja constitucionalidade possa ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, no uso das suas competências, limitando-se a decisão recorrida, nesse trecho, a descrever uma determinada situação processual ocorrida na tramitação da execução em 1.ª instância e a concluir que ela não era imputável à exequente.
Neste caso, o objeto do recurso não tem, pois, um conteúdo normativo.
Em terceiro lugar, a segunda frase transcrita pelo Recorrente corresponde a uma passagem do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o Recorrente afirma ter sido confirmada pela decisão recorrida.
Ora, se é verdade que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação foi confirmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente à questão a que respeita a mencionada frase, este último aresto limitou-se a dizer que a mesma estava fora do âmbito da revista, pelo que dela não conhecia, não sendo possível, pois, afirmar que a decisão recorrida subscreveu a afirmação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa transcrita pelo Recorrente.
Assim, não integrando esta segunda interpretação a ratio decidendi do Acórdão recorrido, não pode o Tribunal Constitucional apreciar da sua constitucionalidade, pelo que deve ser proferida decisão sumária de não conhecimento nos termos permitidos pelo artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC.»
Salvo o devido respeito - e é verdadeiramente muito -, cremos que a decisão reclamada não pode manter-se pelos motivos infra expostos.
3. Nos termos do disposto nos arts. 70º/1/b) e 72º/2 da LTC são pressupostos objetivos do recurso interposto para o Tribunal Constitucional:
a) Aplicação efetiva de uma norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade tenha sido suscitada adequadamente no decurso de um processo;
b) Necessidade de a decisão recorrida fazer caso julgado no processo principal;
c) Menção na petição de recurso dos elementos exigidos no art. 75º-A/1 e 2 da LTC.
A propósito do requisito da aplicação efetiva da norma julgada inconstitucional, este Venerando Tribunal Constitucional tem pacífica e uniformemente entendido que 'há aplicação da norma para efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 não só nos casos de aplicação expressa, como também nos casos da aplicação implícita'.
Além disso, este Venerando Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que 'a norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada haverá de servir de fundamento da decisão recorrida, aí sendo aplicada na sequência do desatendimento do vício de inconstitucionalidade que lhe era assacado', de modo a 'influir utilmente na decisão de fundo'.
Deste modo, só não haverá aplicação efetiva da norma quando:
a) 'A decisão da questão de constitucionalidade não seja suscetível de influir na decisão da questão de fundo', constituindo mero obiter dictum;
b) A norma não tenha 'interesse para a decisão das questões que constituíam o objeto do recurso';
c) 'A decisão final proferida não se tenha dela servido como fundamento legal e haja sido tirada com referência a outra disposição normativa'.
Aplicando os princípios e doutrina expostos ao caso sub judice, é manifesto que a decisão reclamada não pode manter-se.
4. Com efeito, o ora requerente apenas questionou a constitucionalidade da dimensão normativa dos referidos preceitos, face ao sentido e alcance que lhe foram atribuídos in casu (art. 70º/1/b) da LTC).
Como tem constituído jurisprudência pacífica deste Venerando Tribunal Constitucional:
a) “Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão só uma interpretação que do mesmo se faça';
b) 'Em causa está a interpretação de normas, pelo que é determinante do juízo a proferir o concreto teor da decisão recorrida, quer na dimensão com que configurou o problema posto no STA, quer no entendimento com que aplicou as normas questionadas ao caso';
c) 'É necessário que a desconformidade com normas e princípios constitucionais tenha sido imputada, de modo claro, percetível (...) a uma norma precisamente determinada, ainda que em certo sentido mediatizado pela decisão recorrida'.
Nesta linha, referindo-se expressamente à questão em análise, Jorge Bacelar Gouveia defende que 'do ponto de vista do objeto do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, ao contrário do que literalmente se inculca, não se trata apenas do recurso das decisões de tribunais que aplicaram certa norma, constitucional ou inconstitucionalmente, mas também acolhe a aplicação como parâmetro decisório de certa decisão interpretativa que não seja adequada segundo um juízo de conformidade constitucional, o que implica a existência de dois distintos objetos processuais:
- a norma aplicada ou não aplicada contra a CRP;
- uma certa interpretação da norma considerada inconstitucional'.
Contrariamente ao que resulta da decisão reclamada, o ora reclamante não pretendeu sindicar a decisão recorrida, mas sim a dimensão e alcance normativo que foi atribuído ao art. 812.º-B do CPC pela decisão recorrida, ainda que de forma mediata.
Assim, o ora reclamante veio questionar perante este Venerando Tribunal Constitucional a conformidade constitucional de tal sentido normativo.
No caso sub judice está em causa um recurso de constitucionalidade interposto nos termos do art. 70º/1/b) da LTC de decisão de Tribunal que aplicou 'norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo', pelo que nunca poderia deixar de se estender que é 'determinante do juízo a proferir o concreto teor da decisão recorrida'.
Ora, o recorrido apenas questionou a constitucionalidade da dimensão normativa atribuída no douto aresto recorrido à norma sindicada, na medida do 'sentido medializado pela decisão recorrida', afronta normas as princípios constitucionais consagrados nos artigos 2.º, 9.º, al. b), 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP.
Contrariamente ao defendido na douta decisão ora reclamada, esse critério normativo constitui ratio decidendi da decisão recorrida, sendo certo que as questões de inconstitucionalidade em causa foram suscitadas pelos ora recorrentes como verdadeira ratio decidendi, pois, conforme se reconhece na douta decisão reclamada, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa foi confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que remeteu para a sua fundamentação.
5. Nesta conformidade, nunca se poderia entender que a norma constante do artigo 812.º-B não foi efetivamente aplicada in casu (arts. 70º/1/b) e 72º da LTC).
6. Registe-se que, caso se entendesse que a norma do art. 812.º-B do CPC, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, não foi expressamente aplicada como ratio decidendi pela decisão recorrida - o que se impugna -, sempre teria ocorrido aplicação normativa implícita pois o Supremo Tribunal de Justiça nunca poderia ter decidido confirmar a decisão do Tribunal da Relação, sem, pelo menos, ter implicitamente aplicado ou convocado a norma do art. 812.º-B do CPC;
Verifica-se assim que, no presente recurso, o ora reclamante apenas questionou a constitucionalidade das normas em causa com o alcance, sentido e dimensão normativa que lhes foi efetivamente atribuído in casu, pelo que se impõe a respetiva admissão (v. art. 70º/1/b) da LTC).
7. Do exposto resulta assim que o douto aresto recorrido aplicou a norma constante do art. 812.º-B do CPC, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, no sentido e com a dimensão normativa que lhe foram atribuídas in casu, pelo que é manifesta a admissibilidade do presente recurso (art. 70º/1/b) da LTC).
A Recorrida pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
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Fundamentação
O Recorrente, na reclamação apresentada, defende que a ratio decidendi do Acórdão recorrido inclui a interpretação do artigo 812.º - B, do Código de Processo Civil cuja inconstitucionalidade invoca, uma vez que confirmou o Acórdão do Tribunal da Relação que sustentou tal interpretação.
Contudo, omite o Recorrente que, quanto à interpretação do artigo 812.º - B, do Código de Processo Civil, efetuada pelo Tribunal da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça não aferiu do seu mérito, uma vez que se limitou a dizer que a mesma estava fora do âmbito da revista, pelo que dela não conhecia, não sendo possível, pois, afirmar que a decisão recorrida subscreveu a interpretação normativa sustentada no Acórdão do Tribunal da Relação.
Assim, conforme se afirmou na decisão reclamada, não integrando tal interpretação a ratio decidendi do Acórdão recorrido, não pode o Tribunal Constitucional apreciar da sua constitucionalidade, pelo que tem justificação a decisão sumária de não conhecimento, efetuada nos termos permitidos pelo artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.
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Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de maio de 2014. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.