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Processo n.º 411/2012
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), do despacho proferido no Supremo Tribunal de Justiça que não lhe admitiu o recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b), c), f) e i), da LTC.
2. Compulsados os autos, cumpre relatar com interesse para a decisão:
2.1. O reclamante, inconformado com a decisão da 1.ª instância que havia julgado totalmente improcedente a oposição à penhora por si deduzida, dela recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 2 de junho de 2011, decidiu negar provimento ao recurso.
Na sequência, o reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por despacho do relator, decidiu não tomar conhecimento do mesmo com fundamento na sua inadmissibilidade.
Discordando desse entendimento, o executado reclamou para a conferência, na qual, por acórdão de 23 de fevereiro de 2012, se confirmou a decisão anterior.
2.2. Notificado dessa decisão, foi, então, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento com o seguinte teor:
“(...)
Vem agora recorrer do referido Acórdão de 23.2.12, bem como do precedente Acórdão do TRLx. De 2.6.11, de Fls.___, que negou provimento ao agravo e confirmou a decisão recorrida do TJ Almada de 18.10.10, de Fls ___, para o Venerando Tribunal Constitucional de Lx.,
Nos termos e com os fundamentos seguintes enunciados com a brevidade possível:
1.
O recurso ora interposto é movido ao abrigo das alíneas b), c), f) e i) do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional – Lei 28/82, de 15 de novembro, alterada pela Lei 13-A/98, de 26/2.
2.
O recorrente alegou violação dos princípios da legalidade, do legado humanista e personalista, do princípio constitucional da igualdade, o que foi feito de modo processualmente adequado, relativamente às seguintes normas:
Art. 817º, nº 2 do CPC, que remete para os arts. 787º a 791º do mesmo diploma adjetivo;
Art. 204º, nº 2, 2ª parte do Cód Civil, que contém a definição do prédio urbano;
Art. 3º, nº 5 da Lei 91/95, de 2/9, na redação que lhe foi dada pela Lei 64/2003, de 23/8, cuja solução legislativa deve ser qualificada como sendo de verdadeiro CONFISCO e eivada do vício da INCONSTITUCIONALIDADE.
3.
Tais normas foram interpretadas com sentido ilegal e inconstitucional, como profusamente foi invocado e demonstrado ao longo dos autos, porquanto a solução legislativa das AUGI(s) é gritantemente inconstitucional, na medida em que ofende o legado humanista e personalista dos direitos fundamentais.
4.
Foram violadas as seguintes normas:
- Art. 62º da CRP
- Art. 17º da DUDH, de 10.12.1948; e
- Art. 1º, 1º parágrafo do Protocolo Adicional nº 1 à CEDH, de 20.3.52
5.
A interpretação dada ao instituto da perequação compensatória é nitidamente inconstitucional, porquanto a obrigação global da comparticipação não estar ainda vencida e, nessa medida, verificar-se a inexistência de título executivo.
6.
Relativamente à norma do art. 817º, nº 2 do CPC ocorre violação/errada aplicação da lei processual porque o TJ Almada está obrigado a seguir os termos do processo sumário de declaração, como dispões os arts. 787º a 791º do mesmo diploma adjetivo.
7.
A ponderação feita pelo STJ relativamente aos art.s 923º e 757º do CPC, na redação anterior ao DL 303/2007,de 24.8 é excessivamente artificial e colide com o direito ao recurso consagrado constitucionalmente, porque o caso vertente está previsto no art. 922º-C (revista), porque se enquadra na alínea c) do nº 1 do art. 922º-B (Apelação).
8.
As ilegalidades/inconstitucionalidades foram suscitadas e ajuizadas respetivamente no decurso do processo, designadamente nas seguintes peças:
Nas alegações de agravo para o TRLx apresentadas em 9.2.11, a Fls. ___ ((cfr. Pontos 8, 9,10 e 13; Conclusões: Primeira, Segunda, Terceira, Quarta, Quinta e Sétima).
No acórdão do TRLx de 2.6.11, de Fls.____
Nas alegações para o STJ de 17.8.11, de Fls.____; (Cfr. Pontos 7, 8, 9, 12, 14, 15 e 16; Conclusões: Primeira, Segunda, Terceira, Quarta, Sexta, Oitava, Nona, Décima e Décima primeira).
Na exposição – requerimento apresentado em 16.10.11, de Fls. ___;
Na Decisão singular de 10.11.11, de Fls. _____;
Na reclamação deduzida em 20.11.11, a Fls. ___; e
No acórdão do STJ de 23.2.12, de Fls.
9.
Está, assim, determinado o âmbito do presente recurso de constitucionalidade e ilegalidade, de forma processualmente adequada, para ser admitido e conhecido.
Termos em que requer a V. Exªs se dignem admitir o presente recurso de ilegalidade/inconstitucionalidade interposto para o Venerando Tribunal Constitucional de Lisboa.”
2.3. Tal recurso não foi admitido pelo Supremo Tribunal de Justiça com base nos seguintes fundamentos:
“(...)
Vem agora o recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas b), c), f) e i) do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15.11.
Quanto à admissibilidade deste, há que distinguir entre:
As invocadas inconstitucionalidades da decisão que estava em causa no recurso para este STJ;
As invocadas inconstitucionalidades da decisão da conferência (da singular podia-se apenas reclamar para a conferência, como se fez, e não recorrer).
As primeiras aqui não nos importam, sendo inócua a invocação das inconstitucionalidades a ela atinentes.
Quanto ás segundas, há a considerar que:
Não foi recusada a aplicação de qualquer norma pelo [que] não pode ter existido violação do disposto nas referidas alíneas c) e i), falecendo, logo por aqui, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso com estes fundamentos.
Não foi suscitada durante o processo a inconstitucionalidade de qualquer das normas em que assentou a decisão da conferência em que se pretende recorrer.
Por isso, falece também um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, no respeitante, nomeadamente, às alíneas b) e f).”
2.4. Inconformado, o recorrente reclamou desse despacho, alegando o seguinte:
“(...)
A DECISÃO RECLAMADA DE 19.4.12, de FLS._
O questionado despacho de inadmissibilidade não admite o recurso:
Quer das invocadas inconstitucionalidades do ACÓRDÃO do TRLx de 2.6.11, de Fls.____, que negou provimento ao agravo e confirmou a decisão do TJ Almada de 18.10.10, de Fls.___, isto é, da decisão que estava em causa no recurso para o STJ;
Quer das invocadas inconstitucionalidades do ACÓRDÃO DO STJ de 23.2.12, isto é, da decisão da Conferência no STJ.
Mas, o interposto recurso das primeiras é tempestivo, assiste legitimidade ao recorrente e a decisão em causa é impugnável constitucionalmente nos termos em que o foi relativamente às normas e sentido normativo contrário à Lei Fundamental e à própria lei nacional e internacional.
Efetivamente, a parte considera-se prejudicada pelo despacho do Exmo. Relator do Venerando STJ, que não é de mero expediente e, em consequência, requer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão, devendo o caso ser submetido à Conferência, depois de ouvida a parte contrária.
Na verdade, as questões inconstitucionais/ilegais são interessantes, importantes e relevantes, não podendo a sua pertinência e oportunidade ser posta em causa.
Talqualmente, quanto às segundas inconstitucionalidades invocadas no ACÓRDÃO DO STJ de 23.2.12, de fls.___, porquanto foi implicitamente recusada a aplicação das normas invocadas, estando verificado o comando das alíneas c) e i) do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional – Lei 28/82, de 15 de novembro, alterada pela Lei 13-A/98, de 26/2.
Também foi adequadamente suscitada a questão da inconstitucionalidade e da ilegalidade, na sua natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas nas de cisões recorridas, em termos de deverem ser conhecidas. (atrs. 71º, 72º, nº 1, b) e nº 2).
Estão, assim, preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso atinentes, nomeadamente as alíneas b) e f); c) e i) do art. 70º da LTC.
E o recorrente não pode ser prejudicado pelo despacho reclamado,
Face ao exposto, deve ser admitido o recurso interposto, em 1.3.12, a Fls.___ para o Tribunal Constitucional.
É competente o Tribunal Constitucional para julgar a reclamação do Despacho que indeferiu o requerimento de recurso (arts. 76º e 77º, nº 1 da LTC)
O recurso segue para o Tribunal Constitucional, nos próprios autos, com efeito suspensivo, “ex vi” do preceituado nos arts. 69º e ss. da LTC,
O presente apenso é incorporado no processo principal (primeira parte do nº 4 do art. 688º do CPC).
O recorrente pretende que avance todo o processo original para o Tribunal Constitucional. (arts. 688º, nº 3 do CPC, aplicável “ex vi” do art. 69º da LTC)”.
2.5. Já neste Tribunal, o Representante do Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação, com base no seguinte entendimento:
“(...)
[7.] O executado fundamentou o seu recurso de constitucionalidade nas alíneas b), c), f) e i) do art. 70º da LTC.
No entanto, como devidamente salientado pelo Senhor Conselheiro Relator, não houve lugar a nenhuma recusa de aplicação de uma qualquer norma, por parte do STJ, pelo que a invocação das alíneas c) e i) não tem, realmente, razão de ser.
[8.] Relativamente à alínea b) do art. 70º da LTC, não foi invocada a inconstitucionalidade de nenhuma das normas em que o STJ se baseou para não conhecer do objeto do recurso.
[9.] Este Supremo Tribunal, com efeito, não aplicou o art. 922º do CPC, por considerar que, “um despacho sobre a oposição à penhora não encerra qualquer conhecimento do mérito da causa. Conhece do mérito da própria penhora o que é completamente diferente” (cfr. fls. 436 dos autos).
Quanto ao art. 923º do mesmo Código, o mesmo Supremo Tribunal afirmou o seguinte:
“No que concerne ao artigo 923º, ali se refere que o agravo cabe «só até à Relação», com as ressalvas dos nºs 2 e 3 do artigo 678º e do nº 2 do art. 754º.
Os factos integrantes destas ressalvas tinham que ser carreados e demonstrados na fase da admissibilidade do recurso. E não o foram.
Quanto á insistência do recorrente de que o despacho em causa põe termo ao processo, não só não está ali prevista tal hipótese, como não tem, efetivamente, essa natureza. A fase da penhora não é mais do que isso e a decisão sobre esta não faz, por si, findar o processo.”
[10.] Ora, o executado apenas se referiu a uma questão de constitucionalidade, na sua reclamação para a conferência, da seguinte forma (cfr. fls. 383, 405 dos autos):
“De facto, a folhas 275 a 277 não se invocou, nem demonstrou – e não tinha que ser feito, porque o recurso foi admitido pelo TRLx – a contradição de acórdãos, que veio a ser feita no momento oportuno da audição das partes, que foi desencadeada pelo Despacho de 10.10.11, a fls. 341 e defender o contrário consubstancia indefesa proibida constitucionalmente.”
Todavia, uma observação como esta não se traduz em formular uma constitucionalidade normativa, na aceção exigida por este Tribunal Constitucional para assegurar a sua apreciação.
[11.] Por outro lado, quando anteriormente convidado a pronunciar-se sobre a possibilidade de o seu recurso não ser admitido, o executado veio referir, apenas, o seguinte (cfr. fls. 352, 364 dos autos):
“Aliás, o Acórdão recorrido viola a normação constitucional e as regras aplicáveis de direito internacional (Cfr. Conclusões Oitava, Nona, Décima e Décima Primeira, bem como o pedido final das alegações/conclusões.)”
[12.] E em momento anterior, nas suas alegações de recurso apresentadas perante o STJ, o executado havia-se referido (cfr. fls. 296-299, 320-323 dos autos) à garantia da propriedade privada prevista no art. 62 da Constituição, ao art. 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e ao art. 1º, 1ª § da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, invocando que “a solução legislativa imposta pela Lei 91/95, de 2 de setembro, na redação que lhe foi dada pela Lei 64/2003, de 23 de agosto, deve ser qualificada como sendo de verdadeiro confisco e, nessa medida, enferma de inconstitucionalidade material, por violação do legado humanista e personalista, em cujo núcleo central está a proteção de direitos fundamentais consagrada na Constituição da República Portuguesa”.
E, logo a seguir, acrescentou:
“Veja-se que o direito da propriedade é um direito análogo, em matéria de regime, aos direitos, liberdades e garantias,
A inconstitucionalidade material da legislação das AUGI(s) está materializada no facto de tratar com, desigualdade os proprietários no plano indemnizatório, «maxime» quando permite a penhora dos bens objeto da reconversão urbanística em espaço de génese ilegal, através de uma AUGI,
Eis uma solução gritantemente inconstitucional à luz do princípio constitucional da igualdade.” (cfr. igualmente Conclusões 9ª a 11ª, fls. 304-306, 328-330 dos autos).
O que também se não configura como a formulação de uma questão de constitucionalidade normativa.
Não se vê, pois, como poderá ser invocada a alínea b) do art. 70º da LTC, como fundamento do recurso de constitucionalidade apresentado pelo executado.
[13.] Finalmente, quanto à invocada alínea f) da LTC, pelas razões acabadas de invocar, também não foi invocada a ilegalidade de nenhuma norma, em que tenha assentado a decisão do STJ, designadamente com algum dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) da LTC.
[14.] Pelo exposto, crê-se que a presente reclamação não deve merecer deferimento por parte deste Tribunal Constitucional.
(...)”.
Cumpre agora julgar.
II. Fundamentação
3. Como se relatou, o recurso de constitucionalidade em causa fora interposto junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), ao abrigo das alíneas b), c), f) e i) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, abrangendo não apenas o acórdão desse Tribunal, de 23 de fevereiro de 2012, mas também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, do qual o reclamante interpusera recurso para o Supremo.
Este último dado encontra-se relevado no teor do despacho posto em crise, onde se distingue, para efeito de admissibilidade do recurso, entre “as invocadas inconstitucionalidades da decisão que estava em causa no recurso para este STJ e as invocadas inconstitucionalidades da decisão da conferência do STJ”, para concluir que “as primeiras aqui não nos importam, sendo inócua a invocação das inconstitucionalidades a ela atinentes”.
O reclamante começa por discordar desse entendimento invocando que “o recurso das primeiras [inconstitucionalidades do Acórdão do TRL] é tempestivo, assiste legitimidade ao recorrente e a decisão em causa é impugnável constitucionalmente”.
Obviamente que tendo sido o recurso interposto junto do STJ, este Tribunal apenas podia decidir, como efetivamente o veio a fazer, da verificação dos pressupostos da sua admissibilidade na parte em que o reclamante impugnara a decisão proferida por esse Tribunal, não lhe cabendo apreciar, com esse desiderato, as “inconstitucionalidades” atinentes à decisão da Relação, como resulta do disposto no artigo 76.º, n.º 1, da LTC.
Não tem, por isso, razão o reclamante quando pretende contestar essa parte da decisão reclamada pugnando pela admissibilidade do recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação, porquanto, como se diz no despacho reclamado ponderando a admissibilidade do recurso, apenas havia que apreciar a verificação dos seus pressupostos quanto à decisão proferida pelo STJ, onde o recurso fora interposto.
Ultrapassada esta questão, vejamos se, no demais, a reclamação merece deferimento.
4. De acordo com o regime estabelecido nas alíneas do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, ao abrigo das quais se recorreu, “cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais” que “apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” [alínea b)], que “recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado” [alínea c)], que “apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)” e que “recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional” [alínea i)].
4.1. Começando por analisar a admissibilidade do recurso ex vi o disposto na alínea b) da citada norma, há que explicitar que o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, aí previsto, há de traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) previamente suscitada perante o Tribunal a quo e de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Destarte, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Nesse prisma, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo.
A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II Série, de 28 de março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de 21 de junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República II Série, de 18 de junho de 1994)].
Por outro lado, deve também referir-se que decorre dos referidos preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada em termos adequados, claros e percetíveis, durante o processo, de modo que o tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre tal matéria e que, desse ónus de suscitar adequadamente a questão de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo ficar obrigado ao seu conhecimento, decorre a exigência de se dever confrontar a norma sindicanda com os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só assim se possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional, que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de constitucionalidade fora da via de recurso (cf., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 352/94, 560/94 e 155/95, in Diário da República II Série, respetivamente, de 6 de setembro de 1994, de 10 de janeiro de 1995 e de 20 de junho de 1995).
No que tange à apreciação do cumprimento destes requisitos, considerou o Tribunal a quo que o reclamante, na parte em que impugnou a decisão aí proferida, não tinha suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade relativamente às normas que constituíram a ratio decidendi da decisão recorrida.
Assim sucedeu.
Na verdade, compulsado o teor da reclamação para a conferência (sendo esse o momento processual idóneo para a suscitação das questões de constitucionalidade de acordo com o regime estipulado no artigo 72.º, n.º 2, da LTC), constata-se que o reclamante não equacionou, nos termos atrás referidos, a inconstitucionalidade de qualquer norma, como se atesta pela consideração da única proposição daquele texto em que se faz uma referência “jurídico-constitucional”: “(...) a folhas 275 a 277 não se invocou, nem demonstrou – e não tinha que ser feito, porque o recurso foi admitido pelo TRLx – a contradição de acórdãos, que veio a ser feita no momento oportuno da audição das partes, que foi desencadeada pelo Despacho de 10.10.11, a fls. 341 e defender o contrário consubstancia indefesa proibida constitucionalmente”.
Efetivamente, com tal alocução não pode ter-se por suscitada uma questão de inconstitucionalidade, a qual pressupõe sempre a explicitação clara e objetiva da antinomia entre uma norma individualizada e um parâmetro constitucional também concretizado.
4.2. Considerando agora o disposto na alínea c) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, e como se decidiu na decisão reclamada quanto a esta matéria, o STJ não recusou, expressa ou implicitamente, a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado, não sendo subsumível a essa alínea os casos em que os tribunais, ponderando as circunstâncias concretas em julgamento concluem pela não verificação de uma determinada hipótese normativa, afastando, et pour cause, a aplicação de uma norma ao caso concreto.
Explicitando um pouco mais, pode dizer-se que a referida alínea da LTC apenas se refere aos casos em que a decisão recorrida, apesar de considerar que uma determinada factualidade se subsume à hipótese de uma norma, recusa a aplicação desta com fundamento na violação de lei com valor reforçado.
No caso sub judicio não houve, pois, qualquer recusa de aplicação normativa com tal fundamento, pelo que, também nesta parte se confirma a decisão reclamada.
4.3. Em terceiro lugar, há que apreciar se o recurso de constitucionalidade preenche os requisitos relativos ao disposto na alínea f) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, onde se prevê o recurso para este Tribunal das decisões que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com os seguintes fundamentos: em violação de lei com valor reforçado, violação do estatuto de região autónoma ou de lei geral da República por parte de norma constante de diploma regional ou violação do estatuto de uma região autónoma por uma norma emanada de um órgão de soberania.
Da mera transcrição dos fundamentos do recurso da alínea f) resulta claro que os mesmos não se verificam na situação em apreço.
Afastando-se liminarmente os referidos em último lugar, restaria considerar se fora suscitada alguma questão de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado. Contudo, perscrutando o teor da reclamação para a conferência e tendo em conta a explicitação efetuada no ponto antecedente, conclui-se que o reclamante não suscitou qualquer questão enquadrável nesse fundamento, nem transparece da sua reclamação qualquer argumento que permitisse contestar essa mesma conclusão.
4.4. Por fim, o recurso fora também interposto ao abrigo da alínea i) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC.
Nos termos dessa norma da LTC, são admitidos, para o Tribunal Constitucional, recursos de decisões que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a que questão pelo Tribunal Constitucional.
Sobre o alcance dessa específica tipologia de recurso, escreveu-se no Acórdão n.º 290/02 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“(…)
Com efeito, nos termos desta última disposição legal, nestes casos, «o recurso é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicados na decisão recorrida».
Sobre a natureza destas questões, assinala José Manuel M. Cardoso da Costa ( A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed. rev. e act., Coimbra, 1992, pág. 27, nota 27):
Note-se que, no seu desenho legal, a competência agora reconhecida ao Tribunal não apresenta inteira homologia com a do controlo da constitucionalidade (ou da «legalidade»): não só porque apenas é contemplada em sede de controlo concreto, como ainda porque é limitada aos casos, referidos no art. 70º, nº 1, alínea i), cit., de desaplicação da lei interna pelos tribunais ou, então, de decisão destes contrária a orientação anterior do Tribunal Constitucional; e sublinhe-se, por outro lado, que o legislador se absteve intencionalmente de qualificar a situação, assim, e desde logo, não tomando posição sobre o controverso problema da primazia do direito convencional. Este, justamente, será um ponto a decidir pelo Tribunal, nele residindo o núcleo da questão ou das questões «jurídico-internacionais» que entram na sua competência; quando às questões «jurídico-internacionais», nelas caberá antes de mais, certamente, a da vigência e validade da convenção como instrumento jurídico-internacionalmente vínculante (cfr. cit. art. 71º, nº 2). Face a uma sua tal configuração, bem se poderá dizer que esta competência do Tribunal se aproxima de (se não rigorosamente se identifica com) uma competência de «qualificação normativa» (à semelhança de certa competência do Tribunal Constitucional Federal alemão, por vezes assim catalogada).
E, no mesmo sentido, sublinha J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Almedina, págs. 1031 e segs.):
São questões jurídico-constitucionais as que se localizam em sede de direito constitucional (cfr. art. 8º), devendo ser analisadas e resolvidas segundo as normas e princípios constitucionais consagrados e de acordo com os instrumentos hermenêuticos de interpretação e concretização específicos deste ramo de direito. Estão neste caso, por ex., as questões referentes ao sistema de «incorporação» das normas internacionais no direito interno (receção plena, receção condicionada), os problemas referentes à posição hierárquica das normas de direito internacional (valor supraconstitucional, valor constitucional, valor infraconstitucional mas supralegal, valor de lei) e os problemas relacionados com a qualificação de normas reguladoras de atos ou relações internacionais (ex.: exclusão do caráter jurídico-constitucional do direito diplomático).
Serão questões jurídico-internacionais as que se localizam no plano do direito internacional, geral, convencional e consuetudinário, cabendo discuti-las e analísá-las à face dos princípios e normas deste direito e segundo as suas regras de interpretação e concretização específicas. Estarão, porventura, neste caso, as questões relativas às relações entre o direito internacional e o direito interno (monismo, dualismo), ao campo de aplicação das normas internacionais (relação entre os estados, criação de direitos e deveres também para particulares), ao problema da vigência do direito internacional e aos conflitos entre as normas internacionais e as leis internas do estado (cumprimento de obrigações, responsabilidade internacional dos Estados).
[...]
Diferentemente, porém, dos processos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, não se trata de um verdadeiro processo de controlo de normas mas de um processo de verificação das questões jurídico-constitucionais ou jurídico-internacionais implicadas na decisão. Assim, por exemplo, num recurso motivado pela recusa de aplicação de uma norma legal contrária ao direito internacional convencional, o Tribunal Constitucional verifica se se trata de um tratado solene, caso em que admitirá porventura a superioridade hierárquica em relação a atos legislativos internos em contradição com ele, ou de um acordo em forma simplificada, hipótese em que poderá porventura julgar constitucionalmente mais correto a decisão da questão partindo do princípio da igualdade hierárquica entre lei e acordo internacional ou até do princípio de supremacia do direito interno quando estejam em causa leis com valor reforçado. Da mesma forma, o recurso para o Tribunal Constitucional permitirá a verificação e qualificação das regras de direito internacional. Assim, por exemplo, o Tribunal averiguará se a questão de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional relativa ao valor normativo de tratado-contrato deve, no caso concreto, ser decidida no sentido de o tratado-contrato ser um ato normativo, com possibilidade de fiscalização da constitucionalidade, ou se ele não reúne as características de uma norma, caso em que será arredado o «controlo de normas» (cfr., Ac 494/99 – Caso do Acordo de Segurança Social com o Chile).
O recurso para o Tribunal Constitucional permitirá ainda a este verificar, por exemplo, a vigência ou não de uma norma convencional ou se esta deixou de vincular o Estado português pela ocorrência da cláusula rebus sic stantibus (questão de natureza jurídico-internacional).
A LTC eleva, deste modo, o Tribunal Constitucional a intérprete qualificado (cfr. LTC, art. 70º/1/i, 2ª parte, e 72º/4) das questões jurídico-constitucionais (cfr. CRP, art. 221º) e jurídico-internacionais implicadas num processo concreto (cfr., sobretudo, LTC, art. 70º/1/i, 2ª parte) e a «guardião do valor paramétrico do direito internacional convencional» nos casos onde a parametricidade deste direito em relação ao direito interno se revelou justificada através da interpretação/concretização de normas constitucionais e normas internacionais. O processo de verificação consagrado nos art. 70º/1/i e 71º/2 da LTC converte-se, assim, no instrumento processual de concretização das normas constitucionais, em especial do art. 8º da CRP. Ao mesmo tempo, o processo de verificação de contrariedade de normas do direito interno com normas de direito internacional ou da desconformidade de decisões dos tribunais incidentes sobre o mesmo problema em relação a anteriores decisões do Tribunal Constitucional, abre o caminho para uma espécie de processo de qualificação de normas. Com efeito, se por qualificação de normas se entender a determinação da hierarquia de normas de direito internacional, então o TC tem um meio processual de, caso a caso, proceder a essa qualificação. Em conclusão: o TC verifica se uma norma convencional internacional faz parte do direito interno, se ela cria direitos e deveres para os particulares e qualifica essa norma para efeitos de inserção no plano da hierarquia das fontes de direito (cfr. CRP, art. 119º/1/b).
(…)”.
Ora, no caso dos autos é manifesto que não se coloca ou equaciona qualquer questão suscetível de ser reconduzida ao referido objeto do recurso previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, sendo manifesto que o Tribunal reclamado não recusou a aplicação de norma constante de ato legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, nem aplicou qualquer critério em desconformidade com o anteriormente decidido sobre essa questão pelo Tribunal Constitucional, não constituindo esse recurso um meio idóneo para discutir se uma decisão judicial viola, ou não, a lei, os preceitos constitucionais e internacionais.
III. Decisão
5. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 26 de setembro de 2012. – J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.