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Processo n.º 477/12
Plenário
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Presidente da Assembleia Municipal de Barcelos submeteu ao Tribunal Constitucional, para efeitos de verificação preventiva da constitucionalidade e da legalidade, nos termos do artigo 25.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto (doravante LORL), que aprova o regime jurídico do referendo local (alterada pelas Leis Orgânicas n.ºs 3/2010, de 15 de dezembro, e 1/2011, de 30 de novembro,), a deliberação da Assembleia Municipal de Barcelos, de 22.06.2012, que aprovou a «realização de referendo local relativamente à pronúncia deste órgão deliberativo sobre a reorganização administrativa territorial autárquica, a efetuar nos termos dos n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio».
2. O requerimento vem instruído com o projeto de deliberação e com cópia da ata da sessão em que a iniciativa referendária foi aprovada.
3. Por despacho do Presidente do Tribunal Constitucional, de 29.06.2012, foi ordenada a distribuição do processo.
Elaborado o memorando a que alude o artigo 29.º, n.º 2, da LORL, e fixada a orientação do Tribunal, importa decidir conforme dispõe o artigo 30.º, n.º 3, da mesma Lei.
II – Fundamentação
4. Resulta dos autos, com relevância para a decisão, o seguinte:
A) Em 8.6.2012, os deputados municipais eleitos pelo Bloco de Esquerda apresentaram à Assembleia Municipal de Barcelos um projeto de deliberação para a realização de referendo local, relativamente à pronúncia da Assembleia Municipal de Barcelos sobre a reorganização territorial autárquica a efetuar nos termos do artigo 11.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, com o teor seguinte:
«(…) Projeto de deliberação para a realização de Referendo Local relativamente à pronúncia da Assembleia Municipal de Barcelos sobre a reorganização territorial autárquica a efetuar nos termos do artigo 11º, nº 1 e nº 3 da Lei nº 22/2012 de 30 de maio
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia Municipal de Barcelos
Os deputados municipais, eleitos pela BE para a Assembleia Municipal de Barcelos, ao abrigo do disposto no artigo 10º, nº 1 da Lei Orgânica nº 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica nº 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica nº 1/2011, de 30 de novembro, vêm apresentar Projeto de Deliberação para a Realização de Referendo Local relativamente à pronúncia da Assembleia Municipal de Barcelos sobre a reorganização territorial autárquica a efetuar nos termos do artigo 11º, nº 1 e nº 3 da Lei nº 22/2012, de 30 de maio. Para tanto requerem a Vossa Excelência a convocação de sessão ordinária ou extraordinária da Assembleia Municipal de Barcelos, no prazo de 15 dias após o exercício ou receção da iniciativa referendária, para deliberação sobre a mesma (artigo 24º, nº 1 da lei nº 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica nº 1/2011, de 30 de novembro).
Mais requerem que, pese embora não ser obrigatório nos termos do artigo 24º, nº 2 da lei Orgânica nº 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela lei Orgânica nº 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica nº 1/2011, de 30 de novembro, que seja solicitado à Câmara Municipal de Barcelos a emissão de parecer.
Nota Justificativa
Considerando que:
1 – Foi publicada a Lei nº 22/2012, de 30 de maio, conferindo competência às Assembleias Municipais para se pronunciarem sobre a reorganização administrativa do território das freguesias (artigo 11º., nº 1 e nº 4), sendo tal competência exercida nos 90 dias posteriores à entrada em vigor da lei (artigo 12º).
2 - As divisões administrativas são, por força das dinâmicas económicas e demográficas, mutáveis. No entanto, há que ter consciência da forte e arreigada identidade local de muitas freguesias e municípios do nosso país, com consequências ao nível da própria representação política enquanto comunidade.
3 - A lei que enquadre as dinâmicas da divisão administrativa das autarquias locais deve garantir uma adequada participação e adesão das populações. Aliás, a história ensina-nos isso com o célebre episódio da Janeirinha, revolta popular vitoriosa em 1868, especialmente direcionada para uma grande redução de freguesias e municípios operada pela Lei da Administração Civil de 1867, também conhecida como Lei Martens Ferrão.
4 - No quadro atual, Portugal é um dos países da União Europeia com maior dimensão média dos Municípios, e quanto a uma eventual classificação do número de freguesias como elevado, há que lembrar que as mesmas apesar de ainda disporem de poucas competências e apenas cerca de 0,1% da despesa inscrita no Orçamento de Estado, têm uma área média idêntica à média dos municípios de vários Estados membros da U E.
5 - A Carta Europeia de Autonomia Local vem estabelecer no seu artigo 4º, nº 6, que “As autarquias locais devem ser consultadas, na medida do possível, em tempo útil e de modo adequado, durante o processo de planificação e decisão relativamente a todas as questões que diretamente lhes interessem.
6 - O artigo 5º da Carta Europeia de Autonomia Local estabelece a obrigatoriedade de audição das autarquias locais interessadas relativamente a qualquer alteração dos limites territoriais locais, eventualmente por via de referendo, nos casos em que a lei o permita.
7 - A Carta Europeia da Autonomia Local é um tratado internacional que vincula o Estado Português, cumprindo ao Estado e às autarquias locais honrar os compromissos internacionais da República Portuguesa, decorrentes do artigo 5º da Carta Europeia da Autonomia Local, da qual a República Portuguesa é parte, que determina a realização de referendo nestes casos, quando legalmente possível.
8 - A expressão “eventualmente por referendo, quando legalmente admissível” do artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local tem de se referir, no que à expressão legalmente respeita, à própria abertura constitucional para o efeito, que como abaixo se verá, é clara nesta matéria.
9 - O Tribunal Constitucional considerou já admissível o referendo local nesta matéria - veja-se o teor dos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 390/98, n.º 113/99, n.º 518/99, que abrem a porta ao referendo local nesta matéria - observados os requisitos legais, e a partir do momento em que a Assembleia da República solicite aos órgãos autárquicos competentes os pareceres que legalmente lhes compitam.
10 - Nem se pode vir invocar a alteração do Regime Jurídico do Referendo Local, ocorrido após a prolação dos acórdãos citados, designadamente a proibição de referendos locais em matéria de reserva de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 4.º, n.º 1, alínea a) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro), uma vez que, este referendo em nada condiciona a atividade desse órgão de soberania, respeita apenas ao exercício de uma competência própria e exclusiva da Assembleia Municipal, nos termos dos artigos 11.º, n.º 1 e n.º 4 da Lei n.º 22, de 30 de maio.
11 - E muito menos se pode invocar a vinculação das Assembleias Municipais à emissão obrigatória de pronúncia conforme, como motivo de exclusão do recurso ao referendo local nesta matéria (artigo 4.º, n.º 1, alínea b) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro), visto que a pronúncia não é obrigatória e pode até ser desconforme com os critérios estabelecidos pela Lei n.º 22/2012, de 30 de maio (ver artigo 13.º, n.º 2 e artigo 15.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio a contrario sensu).
12 - Aliás, o Professor Doutor Jorge Miranda, em anotação ao artigo 240.º da Constituição da República Portuguesa, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, a páginas 479: “E como a criação ou extinção de municípios, bem como a alteração das respetivas áreas, requer a consulta dos órgãos das autarquias abrangidas (artigo 249.º), nada impede que aí se realizem referendos - vinculativos quanto ao sentido da pronúncia a emitir por esses órgãos (cfr. artigo 219.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto)”.
13 - Assim, a realização de referendos locais sobre esta matéria não resulta numa violação da constituição, antes resulta no seu cabal cumprimento, designadamente das normas de direito internacional vigentes nos termos da Constituição e de caráter supra legal, nos termos do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
14 - Assim, a interpretação do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, no sentido de impedir o recurso ao referendo local quanto a matérias incluídas nas competências próprias dos órgãos das autarquias locais em matéria de criação, extinção e modificação territorial de autarquias locais, seria inconstitucional, o que expressamente se invoca, por violação do artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local e, consequentemente, do artigo 8.º., n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
15 - Da mesma forma que a exclusão da sujeição destas matérias a referendo local por força da sua eventual inutilidade, considerando o prazo de 90 dias estabelecido no artigo 12.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, determina a inconstitucionalidade dessa norma, que expressamente se invoca, considerando que a mesma violaria materialmente a sujeição a referendo prevista no artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local, esvaziando-a de qualquer efeito, e, consequentemente, violando o artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
16 - De resto, o recurso ao referendo nesta matéria encontra sólidos antecedentes na tradição histórica portuguesa, com expressão na l República, com a Lei n.º 621, de 23 de junho de 1916, que foi, aliás, aplicada em várias situações.
17 - A iniciativa de referendo local compete aos membros do respetivo órgão deliberativo (artigo 10.º, n.º 1 da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro).
18 - Os atos em procedimento de decisão, ainda não definitivamente aprovados, podem constituir objeto de referendo local (artigo 5.º, n.º 1 da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto), suspendendo-se o procedimento até à decisão do Tribunal Constitucional sobre a verificação da constitucionalidade ou legalidade do referendo local, ou, no caso de efetiva realização do referendo, até à publicação do mapa dos resultados do referendo (artigo 5.º, n.º 2 da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro).
19 - Os referendos locais poderão comportar 3 perguntas (artigo 7.º, n.º 1 da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro), não podendo ser realizados simultaneamente mais de um referendo local sobre a mesma matéria (artigo 6.º, n.º 3 da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro).
20 - É assim possível submeter a referendo local a matéria constante da eventual pronúncia da Assembleia Municipal, assegurando a efetiva oportunidade de audição dos cidadãos eleitores e cumprindo-se o comando do artigo 6.º, n.º 3 e 7.º, n.º 1 da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de dezembro, e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro.
21- As forças políticas e elementos que integram a Assembleia Municipal de Barcelos não se pronunciaram aquando da sua eleição, sobre uma eventual reorganização territorial das freguesias, em concreto ou abstrato, carecem de uma inequívoca legitimidade política para decidir nesta matéria.
22 — Em sessão ordinária realizada em 20 de abril de 2012, a Assembleia Municipal de Barcelos aprovou uma moção, que entre outros pontos, deliberou o seguinte:
1 — Repudiar o Decreto da Assembleia da República originado pela Proposta de Lei n.º 44/XII,
2 —Defender a audição das populações sobre a modificação, extinção, fusão e alteração territorial das autarquias locais, através de referendo, dando cumprimento ao artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local,
3 — Apesar destas posições de princípio, a Assembleia Municipal de Barcelos sempre se submeterá, nos termos da lei, aos resultados de um referendo local que se venha a realizar sobre esta matéria.
Proposta
A Assembleia de Municipal de Barcelos delibera, nos termos do artigo 23.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto aprovar a realização de um referendo local, submetendo ao Tribunal Constitucional a sua fiscalização preventiva, nos termos do artigo 28.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, com a seguinte pergunta:
“Concorda que a Assembleia Municipal de Barcelos se pronuncie a favor da reorganização das freguesias integradas no Município de Barcelos, promovendo a agregação, fusão ou extinção de quaisquer uma delas?”»
B) A Assembleia Municipal de Barcelos, reunida em sessão de 22.6.2012, deliberou aprovar, por maioria (com zero abstenções, 63 votos contra e 66 votos a favor), a proposta de referendo local relativamente à pronúncia da Assembleia Municipal de Barcelos sobre a reorganização territorial autárquica, apresentada pelo Bloco de Esquerda.
C) O presente requerimento, para fiscalização preventiva da constitucionalidade e legalidade do referendo, foi apresentado no dia 29.06.2012.
5. Compete ao Tribunal Constitucional, em fiscalização preventiva obrigatória, verificar a constitucionalidade e a legalidade do referendo (artigo 223.º, n.º 1, alínea f), da Constituição; artigos 11.º e 105.º da Lei do Tribunal Constitucional; e artigos 25.º e s. da LORL).
O requerente tem legitimidade para o pedido de fiscalização preventiva do referendo local, na qualidade de presidente do órgão da autarquia que deliberou a sua realização, o pedido foi apresentado em tempo e o processo mostra-se regularmente instruído (artigos 25.º e 28.º, n.º 1, da LORL).
No caso presente, a iniciativa referendária foi exercida pelos membros da Assembleia Municipal de Barcelos, eleitos pelo Bloco de Esquerda, em conformidade com o disposto nos artigos 10.º, n.º 1, e 11.º, e foi aprovada pelo órgão competente, no prazo e com a maioria previstos na lei (cfr. artigos 23.º e 24.º, n.ºs 1 e 5, da LORL).
Pode, assim, concluir-se pela inexistência de irregularidades formais ou de procedimento de que cumpra conhecer.
6. A possibilidade de realização de consultas referendárias a nível local está prevista no n.º 1 do artigo 240.º da Constituição, segundo o qual «[A]s autarquias locais podem submeter a referendo dos respetivos cidadãos eleitores matérias incluídas nas competências dos seus órgãos, nos casos, nos termos e com a eficácia que a lei estabelecer.»
O referendo em análise tem uma única pergunta com o seguinte teor:
«Concorda que a Assembleia Municipal de Barcelos se pronuncie a favor da reorganização das freguesias integradas no Município de Barcelos, promovendo a agregação, fusão ou extinção de quaisquer uma delas?»
A criação ou extinção de freguesias é matéria que cai no âmbito da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 164.º, alínea n), da Constituição).
A pergunta referendária tem por objeto a pronúncia a emitir pela Assembleia Municipal de Barcelos sobre a agregação, fusão ou extinção de freguesias que integram o respetivo Município. Essa pronúncia insere-se no procedimento legislativo de reorganização administrativa do território das freguesias (artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio), intervindo a assembleia municipal, nesse procedimento, a título não deliberativo.
Mas o facto de este órgão autárquico não gozar, nesta matéria, de competência deliberativa não obsta, após a mudança operada com a revisão constitucional de 1997, a que ele possa recorrer a referendo. Na verdade, a anterior redação da previsão constitucional do referendo local (artigo 241.º, n.º 3), que o restringia a matérias de competência exclusiva dos órgãos autárquicos, foi alterada, aquando da mencionada revisão, dando hoje corpo ao artigo 240.º, n.º 1, preceito que, como vimos, permite às autarquias locais submeter a consulta referendária as “matérias incluídas nas competências dos seus órgãos”. O artigo 3.º, n.º 1, da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, é, aliás, expresso em incluir nas matérias do referendo local as que se integrem nas competências não exclusivas dos órgãos autárquicos.
Acrescente-se que, quanto ao lugar paralelo da criação ou extinção de municípios, em que a consulta dos órgãos das autarquias abrangidas está garantida constitucionalmente (artigo 249.º da CRP), é consensualmente admitido que o sentido da pronúncia possa ser determinado por via referendária – cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4.ª ed., Coimbra, 2010, 760, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, III, 521.
Não se vislumbra que qualquer dos sentidos possíveis do resultado da consulta popular determine a prática de atos ou a adoção de medidas desconformes com a Constituição.
Deve, assim, passar-se à verificação da legalidade do referendo, atendendo aos requisitos legais do referendo local e ao regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica.
7. A Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, que aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, estabelece os objetivos, os princípios e os parâmetros da reorganização administrativa territorial autárquica e enquadra os termos da participação das autarquias locais na concretização desse processo (n.º 1 do artigo 1.º). A reorganização administrativa do território é consagrada com caráter obrigatório, para as freguesias, e não obrigatório, para os municípios (n.º 2 do artigo 1.º e alíneas d) e e) do artigo 3.º).
De acordo com o Anexo I à citada Lei n.º 22/2012, o Município de Barcelos – que integra, atualmente, 89 freguesias – é classificado como município de nível 2 e em conformidade com o Anexo II à mesma lei, Barcelos é o único lugar urbano do Município de Barcelos.
Nos termos do artigo 6.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 22/2012, em cada município de nível 2 devem ser alcançados os seguintes parâmetros de agregação: «uma redução global do respetivo número de freguesias correspondente a, no mínimo, 50% do número de freguesias cujo território se situe, total ou parcialmente, no mesmo lugar urbano ou em lugares urbanos sucessivamente contíguos e 30% do número das outras freguesias». E, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, desta lei, a assembleia municipal, no exercício da pronúncia prevista no artigo 11.º, goza de uma margem de flexibilidade que permite, em casos devidamente fundamentados, propor uma redução do número de freguesias do respetivo município até 20% inferior ao número global de freguesias a reduzir, resultante da aplicação das percentagens acima referidas.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 11.º da referida Lei estabelece que cabe à assembleia municipal deliberar sobre a reorganização administrativa do território das freguesias, respeitando os parâmetros de agregação e considerando os princípios e as orientações estratégicas definidas naquela lei, sem prejuízo das exceções consagradas nos seus artigos 6.º, n.ºs 3 e 4, e 7.º
Esta deliberação – denominada “pronúncia” (artigo 11.º, n.º 3) – deve ser entregue à Assembleia da República no prazo máximo de 90 dias a contar da entrada em vigor da Lei n.º 22/2012, que ocorreu em 31 de maio de 2012 (artigo 22.º da Lei 22/2012).
A referida pronúncia será depois objeto de parecer da Unidade Técnica (que funciona junto da Assembleia da República), quanto à conformidade ou desconformidade da pronúncia com o disposto nos artigos 6.º e 7.º da lei (artigo 14.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 22/2012).
A deliberação da assembleia municipal que não promova a agregação de quaisquer freguesias é equiparada à ausência de pronúncia, com exceção dos casos de municípios em cujo território se situem quatro ou menos freguesias (n.º 2 do artigo 14.º).
8. Do enquadramento legal da pronúncia a emitir pela assembleia municipal resulta que ela representa muito mais do que o simples exercício do direito de audição em sede de procedimento legislativo.
De facto, aquele órgão autárquico não é confrontado com um concreto projeto de reorganização administrativa, com uma configuração acabadamente predefinida, em face do qual lhe incumbisse apenas exprimir o seu parecer. À assembleia municipal é antes requerida uma participação ativamente constitutiva da reorganização das freguesias integrantes do respetivo município. A Lei n.º 22/2012 limita-se a delinear, em termos gerais e abstratos, “os objetivos, os princípios e os parâmetros” que devem reger essa tarefa de reorganização, em concreto. E entre esses princípios avulta, precisamente, o da «participação das autarquias locais na concretização da reorganização administrativa dos respetivos territórios» (alínea b) do artigo 3.º).
A tal participação cabe, mesmo, um papel central na definição do figurino último da reorganização a levar a cabo. Na verdade, à Unidade Técnica para a Reorganização Administrativa do Território, criada nos termos do artigo 13.º, n.º 1, compete apenas um controlo de legalidade das propostas apresentadas pelas autarquias, nas suas pronúncias (alínea c) do n.º 1 do artigo 14.º). Só em caso de ausência de pronúncia das assembleias municipais ou de desconformidade das emitidas é que lhe cabe, no primeiro caso, “apresentar à Assembleia da República propostas concretas de reorganização administrativa” (alínea a) do mesmo artigo), ou propor às assembleias municipais projetos de reorganização, no segundo (alínea d)).
Quer dizer, a lei fixou vinculativamente os objetivos (inclusive quantitativos) a atingir, mas não preordenou os modos, em concreto, de os alcançar, deixando tal definição para a autonomia local.
9. Sendo mais do que o mero reconhecimento do direito de audição, a prevista participação das assembleias municipais no procedimento de reorganização administrativa territorial autárquica não pode, todavia, ser tida como objeto de uma injunção legal estritamente vinculativa.
É certo que, de acordo com o quadro legal, essa participação integra-se constitutivamente no percurso formativo desse procedimento, dando corpo a uma das suas fases nucleares, que se projeta diretamente no resultado final. De fato, da elaboração, pela assembleia municipal, de um projeto concreto de reorganização virá a resultar, em caso de conformidade com os parâmetros estabelecidos na Lei n.º 22/2012, o novo mapa das freguesias em cada município (ainda que a decisão final caiba, naturalmente, à Assembleia da República). E a lei “quer” essa participação, decerto no entendimento de que só ela assegura que a satisfação dos objetivos legislativamente fixados seja alcançada sem lesão séria de interesses locais, de que os órgãos autárquicos são representantes e porta-vozes qualificados.
Mas a mesma lei não deixa de prever realisticamente a hipótese de ausência de pronúncia das assembleias municipais, deferindo, nesse caso, competência à Unidade Técnica para “apresentar à Assembleia da República propostas concretas de reorganização administrativa do território das freguesias” (artigo 14.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 22/2012). Apenas desincentiva essa conduta omissiva, associando efeitos desfavoráveis para o município à não participação da assembleia municipal. Assim é que, por um lado, quando a competência para elaboração de um projeto concreto passa a caber à Unidade Técnica, a assembleia municipal perde a possibilidade de apresentar projeto alternativo (alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º e artigo 15.º a contrario), possibilidade, esta, ressalvada em caso de desconformidade da pronúncia emitida (n.º 3 do artigo 15.º). Por outro, impede que as freguesias que, nesse município, venham a ser criadas por agregação (em resultado da referida proposta da Unidade Técnica) beneficiem do aumento de comparticipação no Fundo de Financiamento das Freguesias (artigo 10.º, n.ºs 4 e 5). Obstaculiza, ainda, que sejam considerados os pareceres sobre a reorganização administrativa territorial autárquica eventualmente apresentados pelas juntas de freguesia à assembleia municipal (artigos 11.º, n.º 4, e 12.º, in fine). Por último, mas não menos relevante, a assembleia municipal perde a possibilidade de fundamentar uma redução até 20% inferior ao número global de freguesias a reduzir (artigo 7.º, n.º 1) e a possibilidade de aplicar proporções diferentes (artigo 7.º, n.º 2).
Não obstante, a assembleia municipal conserva o poder discricionário de emitir, nos termos da lei, uma pronúncia sobre a reorganização do território das freguesias, ou de abster-se de o fazer, sujeitando-se então às consequências desvantajosas acima referidas. Essa é uma opção primária, de exercício ou não do direito de apresentar um projeto de reorganização territorial das freguesias, que lhe está em aberto. E a recusa, expressa ou tácita, em participar não impede a prossecução e consecução dos objetivos legais, apenas impõe uma via alternativa (ainda que menos desejável, na ótica legislativa) de os alcançar.
10. Importa agora ajuizar da conformidade desta iniciativa referendária com o disposto na LORL, conexionando-o com o regime da Lei n.º 22/2012.
Não sofre dúvida de que a questão objeto do referendo é “de relevante interesse local” (artigo 3.º, n.º 1, da LORL), não se verificando nenhuma das situações expressamente excluídas do âmbito de tal referendo (cfr. o artigo 4.º do mesmo diploma).
A pergunta, formulada com “objetividade, clareza e precisão”, admite uma resposta de sim ou não, resposta, em qualquer caso, vinculativa para a pronúncia a emitir pela Assembleia Municipal de Barcelos nos termos do citado artigo 11.º da Lei n.º 22/2012 (cfr. o artigo 219.º, n.º 1, da LORL).
Em termos de projeção da resposta na conduta futura da assembleia municipal, a pergunta vai centralmente dirigida a saber se este órgão deve ou não participar no procedimento de reorganização, “promovendo a agregação, fusão ou extinção” de qualquer das freguesias integrantes do Município de Barcelos. Mas essa questão não é diretamente colocada, sem mais, aparecendo interligada a um segmento anterior, no qual se interroga a concordância em que a Assembleia Municipal de Barcelos se pronuncie a favor da reorganização das freguesias. Note-se que não é simplesmente pedida uma manifestação de concordância ou não com a emissão de uma pronúncia, mas antes de uma pronúncia “a favor” da reorganização. Com essa precisão denotativa, a promoção ou não da agregação, fusão ou agregação de freguesias, constante da segunda parte da pergunta, ganha um significado que de outro modo não teria. Como o próprio termo verbal utilizado (o gerúndio) conota, essa forma de participação é vista como um modo de manifestar concordância com a decisão primária de efetuar uma reorganização das freguesias. Uma posição contrária a esta opção legislativa, maioritariamente resultante da resposta, implica que a Assembleia não promova a agregação, fusão ou extinção de freguesias. Dito de outro modo: uma posição a favor da reorganização das freguesias integradas no Município de Barcelos é uma condição para que a Assembleia Municipal promova, nos termos da Lei n.º 22/2012, a agregação, fusão ou extinção de quaisquer freguesias. Uma decisão participativa só será tomada nesse pressuposto. A resposta, tenha ela o sentido que tiver, abarca unitariamente as duas faces da pergunta: um sim ou um não representa simultaneamente concordância ou discordância com a reorganização e com a participação do município nesse procedimento.
Mas esta associação da participação a uma posição favorável à reorganização das freguesias faz com que a pergunta, quanto a essa participação, perca um tom valorativamente neutro, roubando espaço à manifestação de uma posição favorável à participação, ainda que desfavorável à reorganização. Ao ligar a concordância com uma iniciativa própria de apresentação de um projeto concreto de reorganização à concordância com esta medida, a pergunta favorece uma resposta negativa, mesmo daqueles que se teriam pronunciado a favor dessa participação, se a pergunta lhes tivesse sido simplesmente formulada, sem condicionantes de teor valorativo. Não custa admitir, na verdade, que uma faixa dos cidadãos eleitores pudesse ser levada a optar por algo percecionado como o “menor dos males”, em face de uma decisão já definitivamente tomada, em forma legislativa, pelo órgão de soberania, com competência para tal, no sentido da reorganização das freguesias: o aproveitamento da possibilidade de participação para obviar a que ela, em concreto, possa ser levada a cabo sem ter devidamente em conta a realidade do Município de Barcelos.
Em face do exposto, ganha fundamento a conclusão de que os termos da pergunta sugerem indiretamente o sentido das respostas, mais precisamente, que eles induzem a uma resposta no sentido do “não”, em violação da segunda parte do n.º 2 do artigo 7.º da LORL. Essa intencionalidade subjacente está, aliás, em consonância com a posição tomada pela Assembleia Municipal de Barcelos, em moção aprovada na sessão de 20 de abril de 2012, de repudiar o Decreto da Assembleia da República que veio a dar origem à Lei n.º 22/2012 (cfr. o considerando 22, I, da proposta).
11. De todo o modo, é detetável nesta iniciativa referendária um vício que decisivamente obsta à sua admissibilidade, sem possibilidade de reformulação da pergunta.
As assembleias municipais foram chamadas a pronunciar-se, nos termos já expostos, sobre a reorganização administrativa do território das freguesias – em cumprimento do disposto no artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local, segundo o qual «as autarquias locais interessadas devem ser consultadas previamente a qualquer alteração dos limites territoriais locais, eventualmente por via de referendo, nos casos em que a lei o permita». Nesse sentido, não pode duvidar-se de que a questão objeto de referendo se prende com matéria em relação à qual aqueles órgãos dispõem de competência – a de tomarem a deliberação prevista no artigo 11.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 22/2012.
Mas essa conclusão não permite dar por assente, de imediato, que se encontra preenchido o requisito, fixado no n.º 1 do artigo 3.º da LORL, de integração da questão objeto deste referendo local nas competências do órgão autárquico que tomou a iniciativa. Para isso, há ainda que ajuizar se a decisão a que a questão se reporta é do tipo das decisões tidas em vista por aquela norma, ao definir as matérias do referendo local.
Ao perguntar, por via referendária, se deve ou não ficar vinculada a promover a agregação, fusão ou extinção de freguesias, a Assembleia Municipal de Barcelos está a pôr nas mãos dos destinatários da pergunta o exercício ou não de um poder que legalmente lhe foi conferido. Ora, tal não é possível, pois o exercício ou não de uma competência legalmente fixada a um órgão administrativo (neste caso, um órgão autárquico) não pode ficar dependente da vontade dos administrados.
Há que distinguir o exercício da competência do sentido da decisão que resulta desse exercício. O que é referendável não é o exercício, mas apenas o conteúdo e sentido do ato pelo qual esse exercício se efetiva.
É certo que a decisão de não participar no procedimento de reorganização não está excluída do campo de opções da assembleia municipal. Mas essa é uma decisão prévia que tem que ser tomada pelo próprio órgão, não podendo ele transferi-la para um centro decisor externo, sujeitando-se à força juridicamente constringente da resposta referendária. Tal não está na disponibilidade de um órgão titular de uma competência legalmente atribuída, pois equivaleria a uma reconfiguração manipulativa do sistema legal de repartição de competências. Uma assembleia municipal pode decidir participar ou não participar; o que não pode decidir é que seja outrem a tomar por ela essa decisão.
É de concluir, assim, que a questão objeto do referendo local sob apreciação, nos termos em que é colocada, não está dentro das matérias referendáveis, à luz do artigo 3.º, n.º 1, da LORL.
III. Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela ilegalidade do referendo local que a Assembleia Municipal de Barcelos deliberou aprovar, na sua sessão de 22.06.2012, relativo à pronúncia deste órgão deliberativo sobre a reorganização administrativa territorial autárquica, prevista na Lei n.º 22/2012, de 30 de maio.
Lisboa, 16 de julho de 2012 – Joaquim de Sousa Ribeiro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – José da Cunha Barbosa – Maria João Antunes – Carlos Fernandes Cadilha – João Cura Mariano – Ana Maria Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro - Rui Manuel Moura Ramos