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Processo n.º 144/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A agente do MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, da sentença de 7 de Dezembro de 1998.
A sentença recorrida recusou aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade
- 'por violação dos princípios da proibição dos efeitos necessários das sanções e da proporcionalidade' -, ao n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de
18 de Maio (redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro), 'na medida em que estabelece o carácter automático e sem qualquer margem de apreciação da respectiva proporcionalidade da perda do veículo utilizado'.
Pretende a recorrente se aprecie a constitucionalidade da norma constante daquele n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio (redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro), na dimensão apontada.
Neste Tribunal, alegou o PROCURADOR-GERAL ADJUNTO aqui em funções. Depois de dizer que, embora a norma sub iudicio preveja o perdimento do veículo 'como efeito necessário da coima que for aplicada pela utilização de gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados por veículos que não estejam legalmente habilitados para tal consumo', a verdade é que, no caso, não foi aplicada qualquer coima. E conclui como segue: Prever-se, como se prevê no n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio (na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro), a sanção do perdimento dos veículos sempre que nestes se tenha utilizado gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados, quando tais veículos não estejam legalmente habilitados para tal consumo, independentemente da natureza e gravidade da infracção e da responsabilidade do agente, ofende manifestamente o princípio da necessidade e da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio: O Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva do Conselho n.º 92/81/CEE, de 19 de Outubro, e o artigo 2º da Directiva do Conselho n.º 92/108/CEE, de 14 de Dezembro. Desse modo, adequou o regime fiscal dos produtos petrolíferos aos actos comunitários que harmonizam o imposto especial sobre o consumo de óleos minerais. Este Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio - que foi sucessivamente alterado pelas Leis nºs 39-B/94, de 27 de Dezembro, 10-B/96, de 23 de Março, 52-C/96, de
27 de Dezembro, e 87-B/98, de 31 se Dezembro - dispõe, no seu artigo 27º, que as infracções ao disposto nesse decreto-lei e respectiva regulamentação estão sujeitas ao Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro. Nas alíneas a) a n) do n.º 1 do seu artigo 28º (redacção das Leis nºs 39-B/94,
10-B/96 e 87-B/98), tipificam-se várias contraordenações fiscais; e, no n.º 2 desse mesmo artigo 28º (agora na redacção da Lei n.º 52-C/96), pune-se com a coima de 200.000$00 a 100.000.000$00 'a utilização de gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados, por veículos que não estejam legalmente habilitados para tal consumo'.
O n.º 7 do mesmo artigo 28º (também na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro) - norma que aqui está sub iudicio - dispõe como segue:
7. Os veículos referidos no n.º 2 serão apreendidos e declarados perdidos a favor da Fazenda Nacional, salvo se pertencerem a pessoa a quem não possa ser atribuída responsabilidade no cometimento da infracção.
A norma constante deste n.º 7 foi, como se referiu, desaplicada pela sentença recorrida, que, assim, revogou o despacho do Director da Alfândega de Setúbal, que tinha decretado o perdimento, a favor da Fazenda Nacional, do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, da marca Mitsubishi, com a matrícula QF-99-89, que pertencia ao aqui recorrido, em virtude de este, em 11 de Fevereiro de 1998, o conduzir, utilizando, como combustível, gasóleo verde, a que tinha acesso para utilizar na sua exploração agrícola. Nesse despacho, não se aplicou qualquer coima ao recorrido.
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. A sentença recorrida, parte do princípio de que o mencionado n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio (redacção da Lei n.º
52-C/96, de 27 de Dezembro) prevê, como efeito necessário (automático), da aplicação da coima correspondente à respectiva contraordenação, a perda do veículo que, sem estar legalmente habilitado para o consumo desse combustível, utilize gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados; e, na sequência desse entendimento, conclui que tal norma viola o artigo 30º, n.º 4, da Constituição. E, depois de sublinhar que 'impende sobre o órgão que exerce a autoridade a demonstração dos elementos que permitam formular esse juízo fundamentador da aplicação da sanção', mas que, 'no caso concreto dos autos é manifesta a insuficiência de dados para formular tal juízo' - ou seja: ao cabo e ao resto, depois de dizer que, só pelo facto de o juiz não dispôr, no caso, de elementos que lhe permitam ajuizar se a perda do veículo é ou não proporcionada ao grau de ilicitude da conduta, ao modo da sua execução, à gravidade das respectivas consequências e à intensidade da culpa do agente, é que ela 'surge como desproporcionada' - extrai a consequência de que a norma em causa estabelece a perda do veículo 'sem qualquer margem de apreciação da respectiva proporcionalidade', por isso que, também por essa razão, seja inconstitucional.
4.2. Se a norma sub iudicio - a norma constante do n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro - previsse a perda do veículo como efeito automático da coima aplicada pela contraordenação prevista no n.º 2 do mesmo artigo 28º, seria, de facto, inconstitucional: desde logo, poder-se-á dizer que ela violaria, directamente, o artigo 30º, n.º 4, da Constituição. E se - nos dizeres do Ministério Público - a perda do veículo fosse aplicada, 'independentemente da natureza e gravidade da infracção e da responsabilidade do agente', a mesma norma violaria também o princípio da necessidade e da proporcionalidade das sanções, decorrentes do artigo 18º, n.º 2, da Constituição e do próprio princípio do Estado de Direito.
Na verdade, o artigo 30º, n.º 4, da Constituição dispõe que 'nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos'. Esta norma não proíbe que as penas possam traduzir-se, elas próprias, na perda de direitos civis, profissionais ou políticos (por exemplo, na interdição do exercício de uma profissão por determinado período de tempo ou na demissão da função pública). Questão é que tal pena seja aplicada pelo juiz de acordo com as regras competentes (princípio da culpa, regra da tipificação, adequação da pena
à gravidade da infracção, etc.). A norma em causa proíbe, isso sim, que essa perda de direitos se siga, automaticamente (ou seja: por mero efeito da lei e independentemente de decisão judicial), à condenação em certas penas ou pela prática de certos crimes.
É que, se tal fosse permitido, estar-se-ia a acrescentar à pena do crime uma outra pena, que redundaria na 'morte civil, profissional ou política' do cidadão. E a fazê-lo, de maneira mecânica - ou seja: sem respeito pelas exigências dos princípios da culpa, da necessidade das penas e da jurisdicionalidade. E, com isso, ao mal da pena aplicada, que é inevitável, ia ainda juntar-se, de forma automática, um efeito estigmatizante ou infamante que serviria para dificultar a ressocialização do delinquente [ cf., sobre esta matéria, entre outros, os acórdãos nºs 16/84, 91/84, 310/85, 75/86, 94/86,
249/92, 209/93, 442/93 e 748/93 (publicados no Diário da República, II série, de
12 de Maio de 1984, I série, de 6 de Outubro de 1984, II série, de 11 de Abril de 1986, de 12 de Junho de 1986, de 18 de Junho de 1986, de 27 de Outubro de
1992, de 1 de Junho de 1993, de 19 de Janeiro de 1994 e I-A série, de 23 de Dezembro de 1993, respectivamente)] .
O que acaba de dizer-se vale não apenas para os crimes, mas também para os restantes domínios sancionatórios (maxime, para as contraordenações), como este Tribunal decidiu no seu acordão 282/86 (publicado no Diário da República, I série, de 11 de Novembro de 1986). Neste aresto, estava em causa a norma constante do § único do artigo 160º do Código da Contribuição Industrial, que previa que, se a decisão fosse condenatória, a inscrição do técnico de contas seria cancelada. Escreveu-se, aí: O facto de não se estar aqui no terreno criminal não impede a aplicação do princípio constitucional do artigo 30º, n.º 4. Se às penas criminais não pode acrescentar-se, a título de efeito da pena, a perda de direitos profissionais, por maioria de razão, isso está vedado quando se trate de penas sem carácter criminal.
Assim, pois, à aplicação da coima prevista no mencionado n.º 2 do artigo 28º, não pode seguir-se, ope legis, como efeito automático, a perda do veículo. E esta perda também não pode ter lugar, 'independentemente da natureza e gravidade da infracção e da responsabilidade do agente'.
É que, do artigo 18º, n.º 2, da Constituição e do próprio princípio da proporcionalidade, inerente ao Estado de Direito, decorre o princípio da necessidade das sanções: estas (no caso das contraordenações, as coimas e as respectivas medidas acessórias) só devem ser aplicadas quando outros meios menos onerosos de política social se mostrem insuficientes ou inadequados para organizar a protecção dos respectivos bens jurídicos. E mais: as coimas impostas pela prática de contraordenações devem ser proporcionadas à gravidade da contraordenação e, bem assim, à intensidade da culpa e à situação económica do agente. Do mesmo modo, as apreensões de objectos, visando o seu perdimento a favor do Estado, não devem decretar-se, se isso for desproporcionado à gravidade da contraordenação e à culpa do agente.
Pois bem: contrariamente ao que pretende a sentença, a norma sub iudicio não prevê o decretamento da perda do veículo como efeito necessário (automático) da prática da respectiva contraordenação. Nem tão-pouco essa perda tem que ser imposta, toda a vez que se pratique a respectiva infracção, independentemente da sua gravidade e da responsabilidade do agente. Ao invés, ela há-de ser decretada com observância das regras competentes; e, por isso, só o deve ser, se, em face dos contornos do caso, se apresentar como necessária e adequada (proporcionada)
à gravidade da contraordenação e à intensidade da culpa do agente, como claramente resulta do que se prescreve no artigo 21º, n.º 1, alínea a), da mencionada lei-quadro das contraordenações (citado Decreto-Lei n.º 433/82, na redacção do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro).
Na interpretação da norma sub iudicio deve, na verdade, atender-se às restantes normas que o caso convoca, designadamente ao que, a propósito, se preceitua no Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
376-A/89, de 25 de Outubro), pois o artigo 27º do citado Decreto-lei n.º 123/94, de 18 de Maio (redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro) manda aplicar esse Regime Jurídico às infracções previstas nele e na respectiva regulamentação. Ora, aquele Regime Jurídico prescreve, no artigo 4º, alínea a), que são subsidiariamente aplicáveis as disposições da lei-quadro das contraordenações, constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro - ou seja, para o que aqui importa, o referido artigo 21º, n.º 1, alínea a). E mais: na alínea b) do artigo 45º, n.º 1, do mesmo Regime Jurídico, dispõe-se que a perda dos meios de transporte utilizados na prática de certos crimes se não decretará, se o tribunal a considerar 'um efeito desproporcionado face à gravidade da infracção e, nomeadamente, ao valor das mercadorias objecto da mesma'.
Sendo este o quadro legal em que se inscreve a norma sub iudicio, é óbvio que uma sua interpretação razoável conduz ao entendimento de que a perda do veículo aí prevista (ou seja, do veículo com que foi cometida a contraordenação) não pode ser nunca um efeito automático da coima aplicada, nem pode ser decretada, se for manifestamente desproporcionada à gravidade da contraordenação e da culpa do agente. Assim interpretada, a norma sub iudicio já não é inconstitucional. Por isso, sendo esta uma interpretação que a norma consente, é ela que o intérprete deve preferir.
5. Conclusão: A sentença recorrida adoptou uma interpretação da norma sub iudicio que é incompatível com a Constituição. Por isso, nos termos do artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, há que determinar que a sentença recorrida seja reformada, para que aplique o n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º
52-C/96, de 27 de Dezembro, com aquela interpretação, que atrás se indicou como constitucionalmente irrepreensível.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). conceder provimento ao recurso;
(b). interpretar o n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro, no sentido de que a perda do veículo nele prevista (ou seja, do veículo com que foi cometida a contraordenação) não pode ser nunca um efeito automático da coima aplicada, nem pode ser decretada, se for manifestamente desproporcionada à gravidade da contraordenação e da culpa do agente;
(c). revogar a sentença recorrida, para que, sendo reformada, aplique o n.º 7 do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º
52-C/96, de 27 de Dezembro, com a interpretação que se indicou na alínea b).
Lisboa, 26 de Maio de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, conforme declaração de voto junta) Voto de vencida
Votei vencida, essencialmente, porque considero que a norma impugnada não comporta a interpretação que lhe foi dada no acórdão, sendo inconstitucional por violação do disposto no nº 4 do artigo 30º da Constituição e do princípio da proporcionalidade. Em meu entender, o texto do nº 7 do artigo
28º do Decreto-Lei nº 123/94, de 18 de Maio, na redacção resultante do nº 1 do artigo 41º da Lei nº 52-C/96, de 27 de Dezembro, só admite a interpretação perfilhada pela decisão recorrida, como claramente resulta da ressalva feita na sua parte final.
Não me parece possível interpretá-lo, nem à luz do regime constante da al .a) do nº 1 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 433/82, de 17 de Outubro, porque, não existindo nenhuma subordinação hierárquica entre os dois diplomas, prevalece o regime especial, nem de acordo com o princípio que informa o artigo
45º do Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro, apenas aplicável aos crimes nele referidos, e cuja razão de ser não está presente na norma em apreciação.
José Manuel Cardoso da Costa