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Processo nº 327/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A... reclama do despacho do Desembargador relator da Relação de Lisboa, de 20 de Janeiro de 1999, que não admitiu o recurso que, ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, ele interpôs do acórdão da mesma Relação. Tal recurso não foi admitido com fundamento em que, durante o processo, nunca o reclamante suscitara, de forma adequada, a inconstitucionalidade das normas que pretende ver apreciadas.
O reclamante sustenta que 'a interpretação dada aos artigos 411º e 432º do Código do Processo Penal e a sua aplicação ao caso dos autos pelo tribunal ora reclamado foram, de todo em todo, imprevisíveis, não podendo exigir-se ao ora reclamante, à luz do razoavelmente previsível e do normalmente, continuadamente praticado pelos tribunais, contar com a interpretação perfilhada e a aplicação feita pelo mesmo tribunal ora reclamado', pois – diz – 'que se saiba, nunca dantes tribunal algum interpretara e aplicara as referidas normas legais no sentido de as mesmas obstarem, absoluta e terminantemente ao conhecimento imperativo e oficioso da nulidade insanável da falta de fundamentação das decisões judiciais'. O Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, no seu parecer, diz que 'é por demais evidente a improcedência da presente reclamação, já que o ora reclamante não suscitou durante o processo - isto é, antes da prolação da decisão que pretendeu impugnar – qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso de constitucionalidade interposto. E sendo também ostensivo, pela natureza da questão suscitada – que tem a ver com pretensa 'falta de fundamentação' da sentença que o condenou e com a cognição de tal vício pela Relação – que o ora reclamante teve plena oportunidade processual para suscitar, de forma tempestiva e adequada, tal questão de inconstitucionalidade, sendo-lhe naturalmente imputável o incumprimento de tal
ónus, de que dependia a admissibilidade da interposição do rejeitado recurso de constitucionalidade'.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Como o reclamante aceita que, durante o processo, não suscitou a inconstitucionalidade das normas que pretende ver apreciadas no recurso, a reclamação só será de deferir, se for caso de o dispensar do cumprimento do ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade – suposto, obviamente, que o tribunal recorrido aplicou tais normas com o sentido que ele reputa inconstitucional.
Pois bem: desde logo, é por demais duvidoso que o acórdão recorrido tenha aplicado os artigos 411º e 432º do Código de Processo Penal com o sentido de que eles obstam, 'absoluta e terminantemente ao conhecimento imperativo e oficioso da nulidade insanável da falta de fundamentação das decisões judiciais'. Tal aresto o que disse foi que 'as questões da inconstitucionalidade e da nulidade da sentença são questões novas que não haviam sido suscitadas no recurso', daí que seja 'obviamente extemporânea' 'a contestação à decisão da 1ª instância com estes novos fundamentos'.
Acresce que, só em casos muito contados, o recorrente pode ser dispensado do
ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade durante o processo (isto é, antes de proferida decisão sobre a matéria a que essa questão respeita): precisamente quando, e só quando, ele não teve oportunidade processual de suscitar tal questão a tempo de o tribunal recorrido a poder decidir. Ora, no caso, não se verifica uma situação anómala e excepcional, capaz de justificar a dispensa do cumprimento do ónus da suscitação da inconstitucionalidade dos artigos 411º e 432º do Código de Processo Penal, que o reclamante entende serem inconstitucionais 'no contexto e com a interpretação com que foram aplicados'. Na verdade, o reclamante recorreu para a Relação de Lisboa da sentença do Juiz do 2º Juízo Criminal da comarca de Almada (de 21 de Maio de 1997) que o condenou, como autor material de um crime de difamação, entre o mais, na pena de cento e vinte dias de prisão, substituída por cento e vinte dias de multa, à taxa diária de 1.000$00, ou, subsidiariamente, de oitenta dias de prisão, e no pagamento da indemnização de 500.000$00 ao ofendido C... Ora, na motivação desse recurso – recte, nas respectivas conclusões – não suscitou ele a inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica, nem tão-pouco imputou à sentença qualquer nulidade insanável: designadamente, não a acusou de falta de fundamentação. A Relação confirmou a sentença recorrida pelo acórdão de 15 de Abril de 1998. Notificado deste acórdão da Relação, o ora reclamante, veio, em 22 de Abril de
1998, 'arguir a ‘inconstitucionalidade’ e a nulidade do mesmo acórdão' e, 'em alternativa, requerer a respectiva aclaração'. Na oportunidade, alegou que, nesse acórdão, 'a fixação ou determinação da pena carece de fundamentação quanto
à personalidade do agente' e, bem assim, 'relativamente à situação económica do arguido'; e que 'nem na sentença nem no acórdão se encontra a mínima referência a tal matéria apesar de a mesma ser de averiguação oficiosa do tribunal, por imposição legal'. E concluiu dizendo que 'o acórdão não só viola a Constituição, como é absolutamente nulo'. A Relação, no acórdão de 15 de Novembro de 1998, indeferiu tal pedido, julgando
'improcedentes as deduzidas arguições de inconstitucionalidade e nulidade'. Ponderou aí, entre o mais, o seguinte: 'as questões da inconstitucionalidade e da nulidade da sentença são questões novas, que não haviam sido suscitadas no recurso', daí que 'a contestação à decisão da 1ª instância com estes novos fundamentos' seja, 'obviamente extemporânea – Código de Processo Penal, artigo
411º'. Acrescentou que o reclamante 'pretende alargar a contestação à deliberação' da Relação 'com os mesmos fundamentos – inconstitucionalidade e nulidade'. E concluiu dizendo que 'esta pretensão é ilegal - Código de Processo Penal, artigo 432º'.
Decorre de quanto se disse que a única referência que o reclamante fez à existência de uma inconstitucionalidade foi para a imputar ao acórdão da Relação, de 15 de Abril de 1998, e não a qualquer norma jurídica. Mas, suposto que a sentença da 1ª instância carecia de fundamentação e que esse vício constituía nulidade insanável - questão que a este Tribunal não cumpre decidir -, então, impunha-se que, na motivação do recurso para a Relação, o ora reclamante tivesse levado essa questão às conclusões, pois era aí que ele tinha que resumir as razões do pedido (cf. o artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal); e, como prescreve o artigo 410º, nº 3, do mesmo Código, o recurso pode ter, justamente, como fundamento 'a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada'. Não o tendo feito, não pode o reclamante vir, depois, dizer-se surpreendido com a afirmação da Relação de que a questão da eventual falta de motivação da sentença, quando colocada apenas na reclamação por nulidades do acórdão, em vez de, como devia, o ter sido no recurso, é uma questão nova – e, assim, extemporânea.
Respeitando a questão de constitucionalidade à eventual falta de fundamentação da sentença da 1ª instância e aos poderes de cognição da Relação relativamente a tal matéria, é óbvio que, como sublinha o Ministério Público, 'o ora reclamante teve plena oportunidade processual para suscitar, de forma tempestiva e adequada, tal questão de inconstitucionalidade'.
Contra esta conclusão não procede a objecção do reclamante de que, no caso, se está em presença de uma nulidade insanável cujo 'conhecimento é imperativo e oficioso'. De facto, o carácter insanável da nulidade é, justamente, o que abre a via do recurso (cf. o citado artigo 410º, n º 3). Depois, se tal nulidade for de conhecimento oficioso, estando a Relação obrigada a conhecer dela, como pretende o reclamante, não obstante não constituir objecto do recurso – questão que a este Tribunal não cabe decidir -, então, em vez de ter arguido a nulidade de falta de fundamentação, devia o reclamante ter arguido a nulidade de omissão de pronúncia [cf. artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal]. Finalmente, não se vê o que é que os artigos 411º e 432º do referido Código – que regulam, respectivamente, a interposição e a notificação do recurso, e os casos de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – têm a ver com a norma que o reclamante pretende que este Tribunal aprecie no recurso: de facto, segundo a norma que ele enuncia na reclamação, aqueles preceitos legais obstariam,
'absoluta e terminantemente, ao conhecimento imperativo e oficioso da nulidade insanável de falta de fundamentação das decisões judiciais'.
A tudo quanto se disse acresce ainda que, no requerimento de interposição do recurso – e é aí que se define o respectivo objecto (cf. artigo 684º, nºs 1, 2 e
3, do Código de Processo Civil) – o ora reclamante não indicou a interpretação dos mencionados artigos 411º e 432º do Código de Processo Penal que, no caso de vir a ser julgada inconstitucional por este Tribunal, pudesse ser enunciada na decisão como o sentido que os outros tribunais não podiam adoptar. Ao invés, limitou-se a dizer que pretendia ver apreciada 'a inconstitucionalidade, no contexto e na interpretação com que foram aplicados, dos referidos artigos 411º e 432º do Código de Processo Penal, uma vez que, tal como foram interpretados e aplicados pelo acórdão ora recorrido, violam frontalmente o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 205º, nº 1, 3º, nº 3, e 32º, nº 1, da Constituição, e do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem'. Ou seja: o recorrente não enunciou a questão de inconstitucionalidade de forma clara e perceptível, como se impunha que tivesse feito.
São tudo, pois, razões que obstariam ao conhecimento do recurso. Não se verificando os pressupostos do conhecimento do recurso interposto, tem que ser indeferida a reclamação apresentada contra o despacho que o não recebeu.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). indeferir a reclamação;
(b). condenar o reclamante nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 26 de Maio de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida