Imprimir acórdão
Procº nº 349/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. P... impugnou perante o Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa o despacho lavrado em 18 de Maio de 1998 pelo Comandante do Agrupamento Fiscal de
Évora da Brigada Fiscal da Guarda Nacional Republicana e no uso da competência que lhe foi delegada pelo Comandante Geral daquela Guarda, despacho esse que, por um lado, o condenou na coima de Esc. 210.000$00 pela infracção prevista e punível pelo nº 2 do artº 28º do Decreto-Lei nº 123/94, de 18 de Maio, aditado pelo artº 50º da Lei nº 39-B/94, de 27 de Dezembro, e pelos artigos 41º e 55º da Lei nº 52-C/96, de 27 de Dezembro, e por outro, na pena acessória de perdimento da viatura automóvel nº MQ-82-41, marca Toyota, modelo Hilux, propriedade do acoimado, para tanto invocando o disposto no nº 7 do artº 28º do aludido Decreto-Lei nº 124/94.
Por sentença de 1 de Março de 1999, o Juiz daquele Tribunal confirmou a condenação do impugnante na coima e decidiu não confirmar o perdimento da citada viatura, para tanto tendo recusado, 'por inconstitucionalidade decorrente da violação dos artigos 2º e 30, nº 4, da Constituição da República, o carácter automático atribuído à perda decretada no nº 7 do artº 28º do DL 123/94', pois que julgou 'não verificados os pressupostos de adequação e proporcionalidade necessários ao decretamento da perda do veículo'.
Na verdade, quanto àquela recusa de aplicação, na aludida sentença escreveu-se assim:-
'.......................................................................................................................................................................................................................................................................................
O nº 7 do artº 28 do DL 123/94 determina o perdimento do veículo, salvo se pertencerem a pessoa a quem não possa ser atribuída responsabilidade no cometimento da infracção. Trata-se de um perdimento automático; só que o carácter automático das sanções (ainda que acessórias), conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional, está proibido pelo artº 30, nº 4, e pelo artº 2º, da Constituição da República.
Haverá, assim, face ao disposto no artº 204 da mesma lei fundamental, que recusar a aplicação do carácter automático da perda decretada no normativo em causa.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
É dessa sentença, na parte em se recusou a aplicação daquele nº 7 do artº 28º 'na medida em que estabelece o carácter automático e sem margem de apreciação da respectiva proporcionalidade, estabelecidos nos artºs 30 nº 4 e 2º da Constituição da República', que o Ministério Público interpôs o vertente recurso para este Tribunal.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou o Representante daquela magistratura em funções neste órgão de administração de justiça a por si produzida do seguinte modo:-
'1. O nº 7 do artigo 28º do Decreto-Lei nº 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei nº 52-C/96, de 27 de Dezembro, deve ser interpretado no sentido de que a perda do veículo nele previstas não pode ser nunca um efeito automático da coima, nem pode ser decretada, se for manifestamente desproporcionada à gravidade da contraordenação e da culpa do agente
2. Deverá revogar-se a decisão recorrida, para que, sendo reformada, aplique a norma sub iudicio com a interpretação indicada '.
Cumpre decidir.
II
1. Pelo Decreto-Lei nº 123/94, de 18 de Maio (alterado pelas Leis números 39-B/94, de 29 de Dezembro, 10-B/96, de 23 de Março, 59-C/96, de 27 de Dezembro, e 87-B/98, de 31 de Dezembro) foi adequado o regime fiscal dos produtos petrolíferos aos actos comunitários que harmonizaram o imposto especial sobre o consumo dos óleos minerais (cfr. seu artº 1º), determinando-se que, por entre o mais, se sujeitavam à incidência de tal tributo os produtos destinados a serem utilizados, colocados à venda ou a serem consumidos em uso como carburante
[alínea b) do artº 3º] e que dele estavam isentos os óleos minerais que, comprovadamente, tivessem determinados destinos.
No nº 1 do artº 28º daquele Decreto-Lei nº 123/94 estatuiu-se que as infracções ao que no mesmo se encontrava prescrito (e na respectiva regulamentação) estavam sujeitas ao Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, vindo a consagrar-se nos seus números 2 e 7 (na redacção conferida pela Lei nº 52-C/96), respectivamente, que será punido com coima de 200 000$ a
100 000 000$ a utilização de gasóleo ou querosene marcados, ou coloridos e marcados, por veículos que não estejam legalmente habilitados para tal consumo
(nº 2) e que os veículos referidos no n.º 2 serão apreendidos e declarados perdidos a favor da Fazenda Nacional, salvo se pertencerem a pessoa a quem não possa ser atribuída responsabilidade no cometimento da infracção (cfr. os tipos e classes de máquinas admitidos a usarem gasóleo agrícola constantes do quadro do nº 3 do artº 1º do Decreto-Lei nº 124/94, de 18 de Maio)
2. Na sentença impugnada, como resulta da transcrição acima efectuada, a recusa de aplicação da norma constante do preceito vertido no nº 7 do artº 28º do Decreto--Lei nº 123/94 incidiu sobre aquela norma interpretada que foi no sentido de na mesma ser determinado o perdimento automático dos veículos que não estejam legalmente habilitados ao consumo de gasóleo ou querosene marcados ou coloridos e marcados.
E, sendo assim, entende-se que constitui objecto do vertente recurso a norma ínsita no mencionado preceito com a indicada interpretação ou, se se quiser, na dimensão normativa que lhe foi conferida na decisão ora sob censura, e isto independentemente de se entrar na questão de saber se, em face do teor do preceito, este não permitiria outra interpretação, designadamente aquela que foi levada a efeito no Acórdão deste Tribunal nº 327/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 19 de Julho de 1999), tendo, inter alia, em consideração que não existe subordinação hierárquica entre o regime geral consagrado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 17 de Outubro, e o diploma onde o dito preceito se insere (cfr. voto de vencida aposto a esse aresto pela Ex.ma Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).
Vejamos, pois, se tal norma padece do vício de inconstitucionalidade.
2.1. Consagrando-se no nº 4 do artigo 30º da Constituição que
[n]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, daí decorre que a Lei Fundamental veio estabelecer uma proibição, não de existência de penas que impliquem a perda de direitos daquela natureza, mas sim que essa perda seja uma mera decorrência automática (isto é, sem que seja resultado de uma aplicação concreta pelo juiz, ponderadas que sejam a tipificação da infracção, a culpabilidade e a adequação da sanção à gravidade do ilícito, a culpa e outras circunstâncias rodeadoras do ilícito e do respectivo cometimento) da condenação em outra pena ou pela comissão de um determinado ilícito (cfr. a discussão transcrita no Diário da Assembleia da República, 1ª Série, de 9 de Junho de 1982, aquando dos trabalhos visando a revisão do Diploma Básico e que veio dar origem à Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro e, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 16/84, in Diário da República, 2ª Série, de 1 de Maio de 1984, 75/86, idem, idem, de 12 de Junho de 1986, 165/86, idem 1ª Série, de 3 de Junho de
1986, 353/86, idem, 2ª Série, de 9 de Abril de 1987, 209/93, idem, idem, de 1 de Junho de 1993, e 748/93, idem, 1ª Série-A, de 23 de Dezembro de 1993).
É duvidoso que, tendo em conta a interpretação normativa sub iudicio, dela resulte inequivocamente que a perda dos veículos se possa subsumir a uma situação de perda dos instrumenta sceleris em que se visa obstar ao risco de continuação criminosa e, assim, se configurar como se pretendendo adoptar uma sanção de natureza similar à das medidas de segurança.
2.2. Seja como for, e como da referida interpretação resultou o carácter automático do perdimento dos veículos que não estejam legalmente habilitados ao consumo de gasóleo ou querosene marcados ou coloridos e marcados
(ou seja, sem a prévia formulação de um juízo ponderador das circunstâncias do caso, onde relevam as anteriores e posteriores ao cometimento da infracção, o tipo de instrumento, a sua relevância quanto à ocorrência do ilícito, a gravidade deste, a perigosidade do agente quanto à utilização e a própria gravidade objectiva do instrumento), a questão que se coloca é, justamente, a de saber se aquele carácter automático vai conflituar com a Constituição.
Desde logo se sustentará que um tal automatismo se iria postar como violador do nº 4 do artigo 30º da Lei Fundamental, pois que a perda do veículo tinha, inequivocamente, repercussão no direito de propriedade (e, desta sorte, num direito de natureza civil) do agente que desse direito ficou privado em consequência da prática de um acto ilícito ou da condenação por essa prática.
E nessa senda se moveu, aliás, o Acórdão, nº 327/99, já citado, nos passos em que aí se disse:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
4.2. Se a norma sub iudicio - a norma constante do n.º 7 do artigo
28º do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio, na redacção da Lei n.º 52-C/96, de
27 de Dezembro - previsse a perda do veículo como efeito automático da coima aplicada pela contraordenação prevista no n.º 2 do mesmo artigo 28º, seria, de facto, inconstitucional: desde logo, poder-se-á dizer que ela violaria, directamente, o artigo 30º, n.º 4, da Constituição. E se - nos dizeres do Ministério Público - a perda do veículo fosse aplicada, ‘independentemente da natureza e gravidade da infracção e da responsabilidade do agente’, a mesma norma violaria também o princípio da necessidade e da proporcionalidade das sanções, decorrentes do artigo 18º, n.º 2, da Constituição e do próprio princípio do Estado de Direito.
Na verdade, o artigo 30º, n.º 4, da Constituição dispõe que ‘nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos’.
..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
A norma em causa proíbe, isso sim, que essa perda de direitos se siga, automaticamente (ou seja: por mero efeito da lei e independentemente de decisão judicial), à condenação em certas penas ou pela prática de certos crimes.
É que, se tal fosse permitido, estar-se-ia a acrescentar à pena do crime uma outra pena, que redundaria na ‘morte civil, profissional ou política’ do cidadão. E a fazê-lo, de maneira mecânica - ou seja: sem respeito pelas exigências dos princípios da culpa, da necessidade das penas e da jurisdicionalidade. E, com isso, ao mal da pena aplicada, que é inevitável, ia ainda juntar-se, de forma automática, um efeito estigmatizante ou infamante que serviria para dificultar a ressocialização do delinquente [ cf., sobre esta matéria, entre outros, os acórdãos nºs 16/84, 91/84, 310/85, 75/86, 94/86,
249/92, 209/93, 442/93 e 748/93 (publicados no Diário da República, II série, de
12 de Maio de 1984, I série, de 6 de Outubro de 1984, II série, de 11 de Abril de 1986, de 12 de Junho de 1986, de 18 de Junho de 1986, de 27 de Outubro de
1992, de 1 de Junho de 1993, de 19 de Janeiro de 1994 e I-A série, de 23 de Dezembro de 1993, respectivamente)] .
O que acaba de dizer-se vale não apenas para os crimes, mas também para os restantes domínios sancionatórios (maxime, para as contraordenações), como este Tribunal decidiu no seu acordão 282/86 (publicado no Diário da República, I série, de 11 de Novembro de 1986).
Neste aresto, estava em causa a norma constante do § único do artigo
160º do Código da Contribuição Industrial, que previa que, se a decisão fosse condenatória, a inscrição do técnico de contas seria cancelada. Escreveu-se, aí:
O facto de não se estar aqui no terreno criminal não impede a aplicação do princípio constitucional do artigo 30º, n.º 4. Se às penas criminais não pode acrescentar-se, a título de efeito da pena, a perda de direitos profissionais, por maioria de razão, isso está vedado quando se trate de penas sem carácter criminal.
Assim, pois, à aplicação da coima prevista no mencionado n.º 2 do artigo 28º, não pode seguir-se, ope legis, como efeito automático, a perda do veículo. E esta perda também não pode ter lugar, ‘independentemente da natureza e gravidade da infracção e da responsabilidade do agente’.
É que, do artigo 18º, n.º 2, da Constituição e do próprio princípio da proporcionalidade, inerente ao Estado de Direito, decorre o princípio da necessidade das sanções: estas (no caso das contraordenações, as coimas e as respectivas medidas acessórias) só devem ser aplicadas quando outros meios menos onerosos de política social se mostrem insuficientes ou inadequados para organizar a protecção dos respectivos bens jurídicos. E mais: as coimas impostas pela prática de contraordenações devem ser proporcionadas à gravidade da contraordenação e, bem assim, à intensidade da culpa e à situação económica do agente. Do mesmo modo, as apreensões de objectos, visando o seu perdimento a favor do Estado, não devem decretar-se, se isso for desproporcionado à gravidade da contraordenação e à culpa do agente.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
2.3. Mas, independentemente da sustentação agenciada no precedente número, a verdade é que o analisado preceito, com a interpretação que dele foi feita, se revela desproporcionado.
Efectivamente, a ablação, efectuada de modo automático, da propriedade dos veículos ditada pela norma sub specie (e não estando agora em causa, como parece claro, uma situação de perigosidade especial, nomeadamente quanto ao uso de determinados instrumentos) não respeita, em face desse automatismo, o princípio segundo o qual se deverá ponderar as adequação e proporção dessa reacção criminal incidente sobre o direito civil de propriedade
(quer a título de medida análoga às medidas de segurança, quer como efeito necessário do cometimento do crime, quer como efeito da condenação por um determinado ilícito, o que não importará dilucidar) em face das concretas circunstâncias do caso (cfr., sobre a questão da exigência da proporcionalidade tocantemente às soluções normativas de perda de instrumentos do crime, Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime,
1993, § 999).
III
Em face do exposto, decide-se:-
a) Julgar inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 30º e do artigo 62º em conjugação com o princípio da proporcionalidade, um e outro da Constituição a norma constante do nº 7 do artº 28º do Decreto-Lei nº 123/94, de
18 de Maio, na redacção conferida pela Lei nº 52-C/96, de 27 de Dezembro, e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso. Lisboa, 22 de Março de 2000 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto (embora com dúvidas quanto à qualificação do direito de propriedade com um 'direito civil', para efeito do disposto no artigo 30º, nº4, da Constituição, devidas à consideração da ratio da proibição constitucional - questão que deixo, porém, em aberto, a benefício de melhor estudo) Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa (vencido, por subscrever o entendimento adoptado pelo Tribunal no Acórdão nº 327/99, em que interveio).